Considerações sobre os processos de reconhecimento oficial de terras indígenas no Mato Grosso do Sul a partir de um caso Guarani Ñandéva 1

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Transcrição:

Considerações sobre os processos de reconhecimento oficial de terras indígenas no Mato Grosso do Sul a partir de um caso Guarani Ñandéva 1 Valéria E. N. Barros 2 - UFFS Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre os processos de reconhecimento oficial de terra indígenas no Mato Grosso do Sul a partir de uma área reivindicada por uma comunidade guarani ñandéva e que foi identificada como sendo o tekoha Yvy Katu através de processo administrativo devidamente conduzido pela FUNAI e que resultou na publicação da portaria nº 1289, de 30 de junho de 2005, que declara ser de posse permanente do grupo guarani em questão a terra indígena Yvy Katu. Processos judiciais movidos pelos proprietários de terras situadas dentro do perímetro demarcado suspenderam o andamento do processo administrativo. No contexto deste litígio, realizei duas perícias antropológicas na região em questão uma em 2011 e outra em 2013. Nelas, um dos pontos centrais a serem esclarecidos era como e porque os Guarani teriam deixado de viver nas terras atualmente reivindicadas. E isso, por sua vez, conecta-se com outro eixo de discussão proposto por este grupo de trabalho: as violações dos direitos dos Guarani no Mato Grosso do Sul. Assim, partindo dos dados levantados durante minha atuação como perita, pretendo tecer algumas considerações sobre aspectos principalmente metodológicos e éticos que colocam diferentes desafios para os antropólogos envolvidos nas diferentes etapas dos processos de reconhecimento oficial de terras indígenas e na realização de perícias antropológicas no âmbito judicial. Palavras-chave: antropológica. Guarani Ñandéva; reconhecimento de territórios tradicionais; perícia Introdução No início do século XX, entre 1915 e 1920, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) reservou no espaço que atualmente corresponde ao sul do estado de Mato Grosso do Sul oito lotes para serem destinados aos Guarani Ñandéva e Kaiowá, com superfície de 3600 hectares cada um. No entanto, a demarcação efetiva destas áreas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) deu-se, efetivamente, com extensões inferiores. Esse foi o caso da reserva indígena de Porto Lindo, localizada no município de Japorã, homologada por decreto presidencial em 1991, contemplando uma demarcação realizada pela FUNAI de aproximadamente 1650 hectares. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014 em Natal/RN. 2 Doutora em Antropologia Social; professora do curso de licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul. Contato: valeria.e.barros@gmail.com

Assim, a criação dessa reserva, bem como de outras na região em questão, significou apenas que a União procedeu ao reconhecimento da área reservada pelo SPI (ou de parte dela) para os Guarani, sem que fossem realizados os estudos e procedimentos necessários para a caracterização da posse tradicional e, consequentemente, para a delimitação da Terra Indígena (TI) em conformidade com os critérios definidos no artigo 231 da Constituição Federal de 1998. E, dessa forma, a FUNAI, através de procedimento administrativo relacionado à sua própria função de regularizar as terras indígenas, e atendendo ao que determina o decreto 1775/96, constituiu em 2001 um Grupo Técnico (GT), coordenado pelo antropólogo Fabio Mura, para realizar estudos de revisão de limites da TI Porto Lindo, que por sua vez resultaram na identificação e delimitação da TI Yvy Katu ampliando os limites da primeira, que passa a fazer parte dos 9454 hectares propostos para a delimitação desta última. O resumo do relatório circunstanciado produzido pelo GT sob a coordenação de Mura foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) no dia 02 de março de 2004. Em 30 de junho de 2005 o Ministro da Justiça assinou a portaria nº 1289 (publicada no DOU no dia 04 de julho de 2005), declarando ser de posse permanente do grupo Guarani Ñandéva a TI Yvy Katu. Atualmente, o processo administrativo está suspenso por conta dos processos judiciais movidos pelos proprietários de alguns dos imóveis rurais situados no perímetro já demarcado como TI Yvy Katu contra a FUNAI. No contexto desse litígio judicial, fui nomeada pelo Juízo da 1ª Vara da Justiça Federal de Naviraí, no Mato Grosso do Sul, para atuar como perita antropóloga em dois processos diferentes. Assim, estive na região de Porto Lindo/Yvy Katu realizando trabalhos in loco para subsidiar os laudos periciais em duas ocasiões diferentes: em 2011 e em 2013. Trabalhos dessa natureza devem responder aos quesitos colocados pelas diferentes partes envolvidas no processo judicial (que no caso em questão são os proprietários, a comunidade indígena da região de Porto Lindo/Yvy Katu, a FUNAI e o Ministério Público Federal), sendo que o ponto central a ser esclarecido é se a área em litígio é ou não território tradicional do grupo que o reivindica. E, justamente, tanto os dados levantados durante a perícia antropológica por mim realizada, quanto aqueles anteriormente apresentados no relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Yvy Katu (Mura e Thomaz de Almeida, 2002), demonstram que a região em questão era ocupada pelos Guarani Ñandéva em caráter permanente e quase que exclusivo ainda nas primeiras décadas do século XX. Os dados indicam um padrão específico de residência que é típico dos Guarani e amplamente descrito na literatura acadêmica produzida a respeito desse povo. O panorama que emerge do conjunto das entrevistas realizadas com os Guarani durante a realização da perícia aponta para o seguinte quadro: as famílias-extensas guarani originárias da terra

indígena Yvy Katu ocupavam uma extensa região cuja abrangência liga-se a rios e córregos que são afluentes do rio Iguatemi (Jakarey, Guassori, Arroyo i, etc.). A ocupação do território ligava-se ao tipo de organização social do grupo, e articulava-se também com o sistema econômico. Cada uma destas famílias-extensas (ou parentelas) possuía pequenas roças de subsistência (costumavam derrubar um hectare por vez, aproximadamente, pois havia um sistema de rotatividade), onde plantavam milho, mandioca, batata doce, feijão e outros produtos. De forma complementar, praticavam a pesca, caça e coleta de itens variados (mel, frutas, matérias-primas, etc.). Toda a região era coberta por mata cerrada e entrecortada por picadas ou trilheiros (tapé) que ligavam uma casa ou região à outras. Como as famílias estavam espalhadas, os momentos de concentração (que revelavam unidades sociológicas maiores) ocorriam por ocasião dos rituais coletivos ligados à esfera xamânica, realizados nas ogapysy sob o comando dos rezadores (ñanderu). Uma série de fatores obrigaram os Guarani a abandonar alguns dos espaços hoje reivindicados. No entanto, há que se destacar que o esforço de diferentes atores da sociedade envolvente para confinar os Guarani nas áreas arbitrariamente reservadas a eles, como Porto Lindo, nunca obteve êxito, pois eles continuaram ocupando a região segundo seu esquema cultural específico, ainda que para isso tenham tido que desenvolver uma série de estratégias (que iam desde deslocar suas residências para áreas ainda pouco exploradas pelos não-índios a empregar-se como mão-de-obra nas atividades ligadas à extração de erva-mate e, posteriormente, nas propriedades que começaram a ser tituladas a particulares). A saída dos Guarani das áreas de ocupação tradicional: processos de violência e esbulho Com o fim da guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), inicia-se um novo capítulo na história do contato das populações guarani com as frentes de exploração e colonização da sociedade ocidental, que já se desenrolava desde o século XVI, mas que a partir de então levaria a uma drástica transformação do território de ocupação tradicional dos Guarani no espaço ocupado atualmente pelo estado do Mato Grosso do Sul. Com o término da Guerra do Paraguai e a vitória da Tríplice Aliança, o governo brasileiro tratou de delimitar e, na medida do possível, proteger e ocupar, as fronteiras com o Paraguai e outros países sul-americanos. No caso da região de fronteira entre o Paraguai e o atual Mato Grosso do Sul, a região não estava despovoada: havia um contingente significativo de populações ñandéva e kaiowá ocupando o que eram seus territórios tradicionais. Mas o interesse do Estado brasileiro era ocupar essas regiões com não-índios, de forma que no período pós-guerra, observa-se um avanço das frentes

econômicas de ocupação das sociedades nacionais, tanto no Brasil, quanto no Paraguai (conforme Melià, 2004). Na região compreendida pelo atual Mato Grosso do Sul, o que se viu no pós-guerra foi a concessão de terras do Governo federal para terceiros e justamente muitas dessas áreas estavam dentro de territórios indígenas. Em 1872, quando a Comissão de Limites iniciou os trabalhos de demarcação das fronteiras entre o Brasil e o Paraguai, Thomaz Larangeira [sic], fornecedor de mantimentos para a Comissão, natural do Rio Grande do Sul, tomou conhecimento da região e de suas potencialidades quanto à exploração dos ervais ali existentes. Concluídos os trabalhos da Comissão de Limites, em 1874, Larangeira solicitou ao governo central a concessão para explorar os ervais existentes no antigo sul de Mato Grosso. Em 1882, através do decreto nº 8799, ele obteve do governo imperial o arrendamento das terras para a exploração de erva-mate (ylex paraguayense). Em 1892 fundou a Companhia Matte Larangeira [sic] (BRAND, 1997). Com o advento da República, a área de concessão é sucessivamente ampliada. Em 1895, a área arrendada para a Cia. Matte Larangeira ultrapassava os 5.000.000 de ha, que estendiam-se [...] desde as cabeceiras do ribeirão das Onças, na Serra de Amambay, pelo ribeirão São João e rio Dourados, Brilhante e Santa Maria até a Serra de Amambay e pela crista desta serra até as referidas cabeceiras do ribeirão das Onças (ARRUDA, 1986: 218). A Companhia não estava interessada na terra, mas sim na exploração dos ervais. Ainda que a área dessa concessão atingisse em cheio os territórios indígenas, de certa forma sua presença retardou a ocupação dessas terras por terceiros durante longo tempo, pois não ela permitia a entrada de colonos nas regiões de sua concessão. Os índios não foram expulsos, porque interessavam à Matte Larangeira como mão-de-obra, mas foram deslocados/desalojados de alguns dos locais que tradicionalmente ocupavam. Existem poucas publicações sobre o período em que a Cia. Matte Larangeira atuou em sua área de concessão que remetem para o fato de que a mesma localizava-se/sobrepunha-se a territórios indígenas, utilizando essas populações como mão-de-obra. Tal como afirma Ferreira (2007) 3, a maioria dos historiadores que abordam esse tema e período destacam muito mais o uso de mão-de-obra paraguaia e, em menor proporção, brasileira, bem como o pioneirismo do empreendimento e seu papel como vetor de desenvolvimento para a região. Mas com relação ao trabalho das populações indígenas kaiowa e ñandéva nos ervais, Salsa Corrêa (2002) afirma que a violência estava sempre presente, tanto pela repressão e trabalho compulsório, como pelo estado de miséria e desagregação dos grupos que estavam sujeitos a ele. 3 Justamente, no referido trabalho a pesquisadora tenta suprir um pouco desta lacuna.

Ferreira (2007: 60) também destaca que as atividades da Cia. Matte Larangeira provocaram significativas transformações na vida das populações kaiowá e guarani. Em regime de trabalho semi-escravo e exigindo constantes deslocamentos em busca de novos ervais, as relações alternavam-se entre a troca, por ferramentas e outros utensílios de interesse [dos indígenas], e relações de conflito, confronto e fuga. A partir de 1916, a Matte Larangeira perde o monopólio de exploração de erva-mate na região, mantendo apenas parte das terras arrendadas. Outros ervateiros passam a atuar na região, tanto brasileiros, quanto paraguaios. Nessa época, o Governo já libera a venda de lotes de terras a terceiros. Após a Revolução de 1930, o governo Vargas encerrou a concessão à Cia. Matte Larangeira. Isso foi entre 1943 e 1944. Além disso, transferiu as terras que estavam arrendadas para a Matte Larangeira para o governo do estado de Mato Grosso. Este, por sua vez, declarou os territórios indígenas não-titulados como terras devolutas e repassou/vendeu a terceiros aí sim iniciando um processo acentuado de esbulho contra as comunidades indígenas. Assim, o processo de ocupação dos territórios guarani no Mato Grosso do Sul por colonos brancos foi gradativo, e as terras só foram efetivamente ocupadas por particulares em fins da década de 1950. Há que se destacar que, conforme apontado anteriormente, as terras que foram reservadas às populações indígenas no espaço do atual estado de Mato Grosso do Sul entre 1915 e 1928 não atendiam a critérios dessas populações, mas sim a critérios do Estado brasileiro. Áreas arbitrariamente escolhidas foram destinadas a eles, pois, em última instância, a ação do Estado visava liberar áreas ocupadas pelos índios para a colonização e exploração econômica. Em 1927, Pimentel Barboza, funcionário do SPI, percorreu a região sul do Mato Grosso para escolher lugares onde demarcar quatro reservas indígenas para usufruto de índios ñandéva e kaiowá. Foram elas: Caarapó, Ramada, Porto Lindo e Pirajuy todas em locais de forte concentração de índios em função dos trabalhos de colheita e preparo de erva-mate. Um trecho de seu relatório, dirigido ao seu superior, ilustra bem as intenções de liberar espaços para a colonização branca acima mencionadas: Achando-se esses índios em terras particulares, legalizadas, torna-se imprescindível a obtenção, nas proximidades, de uma área de 3600 hectares, em a qual possam residir e trabalhar (BARBOZA, 1927: CXXXVIII). Nesse mesmo relatório, Pimentel Barboza relata a eleição do local destinado à criação da reserva de Porto Lindo, visto que, segundo ele, na região havia uma significativa população indígena: por isso escolhi também, na margem direita do Iguatemy, uma área de 3600 hectares, com os seguintes limites: o nascente pelo córrego denominado Porto Lindo, pequeno arroio que desemboca perto do porto com esse nome; no norte pelo rio Iguatemy; ao poente pelo córrego Guassori; e no sul com terras devolutas (ibidem).

No entanto, os limites indicados por ele não correspondem aos que cercam a área efetivamente delimitada pelo SPI para a reserva indígena de Porto Lindo que, situando-se mais ao sul, não alcança o rio Iguatemi em seu limite norte. Nessa região escolhida para a criação da reserva de Porto Lindo, a exploração da erva-mate era conduzida pelo Sr. Ataliba Viriato Batista, ex-funcionário da Cia. Matte Larangeira, que já atuava na região antes da criação da reserva. E, justamente, o escoamento da produção de erva-mate era feito através das vias fluviais, de forma que o acesso às margens dos rios (no caso da região em questão, o rio Iguatemi) era extremamente importante na dinâmica dessa atividade e da economia local como um todo (várias mercadorias só chegavam à região pelas vias fluviais, visto que ainda não havia estradas). Segundo foi levantado por Mura e Thomaz de Almeida (2002), Ataliba Viriato Batista participou na definição do local onde a área indígena Porto Lindo seria efetivamente demarcada, através de sua influência junto à políticos locais e mesmo junto a órgãos governamentais como o SPI, pois era de seu interesse a manutenção do acesso ao rio Iguatemi e seus portos. Assim, a reserva acabou sendo delimitada a cinco quilômetros do rio Iguatemi, de forma que os grupos familiares que viviam nas cabeceiras e ao longo dos córregos Arroyo i, Potrerito e Naranjaty, por exemplo, foram progressivamente afastados de seus locais de ocupação tradicional. Mas tudo indica que, por trás da expulsão dos Guarani desses locais de ocupação tradicional, estava não só o interesse em explorar e escoar a erva-mate sem empecilhos, mas também a intenção por parte dos ervateiros em, futuramente, regularizar a posse da terra. Ataliba Batista foi uma das primeiras pessoas a requerer a obtenção de títulos definitivos de propriedade na região não apenas na área do litígio ligada a Porto Lindo/Yvy Katu, mas também na região onde foi identificada a terra indígena Sombrerito (conforme Almeida, 2012). Assim, no caso da comunidade guarani ñandéva que atualmente reivindica o tekoha Yvy Katu, a interrupção da posse da terra não se deu por livre e espontânea vontade dos índios em deixarem aquela área, mas sim pela pressão para que deixassem o local ou mesmo pela remoção forçada por parte daqueles que se tornaram proprietários das terras. A memória dessa violência está presente nos relatos dos índios mais idosos do grupo, que vivenciaram essas situações. As pessoas entrevistadas apontam o Sr. Ataliba Viriato Batista como sendo a principal figura ligada à sua saída da área atualmente reivindicada. Os Guarani de Porto Lindo/Yvy Katu referem-se a ele sempre pelo primeiro nome, Ataliba, sendo que no caso de muitos dos entrevistados, ele teria sido o primeiro branco com o qual eles tiveram contato dentro do território que tradicionalmente ocupavam 4. Explorando erva-mate e 4 O que é significativo enquanto demonstração do esforço que essas famílias guarani faziam para manterem-se afastadas dos não índios que já circulavam na região por essa época (o contingente de pessoas envolvidas na Guerra do Paraguai, as expedições de reconhecimento e demarcação das fronteiras realizadas na época, etc.)

depois madeira, e posteriormente requerendo e obtendo títulos de propriedade na região, ele teria iniciado um processo onde exerceu diferentes tipos de pressão para que as famílias guarani se retirassem de locais que, até então, elas vinham ocupando continuamente e de forma tradicional. Apresento a seguir alguns relatos sobre a saída das famílias que anteriormente ocupavam o tekoha Yvy Katu, fornecidos pelos Guarani durante as entrevistas realizadas no contexto das perícias antropológicas por mim realizadas. Um dos entrevistados 5 tem 73 anos e nasceu na cabeceira do Guassori região ocupada pela família-extensa de seu pai. Outros parentes seus (família do lado materno, tios, primos, etc.) moravam também em locais próximos aos córregos Arroyo i e Potrerito. Segundo ele, por volta de 1925, 1926: Então o que que aconteceu antigamente? Foi em 1920, 1925, 26, mais ou menos, esse Ataliba Viriato Batista, ele tirou nossos parentes de lá por causa da erva. Que ele queria... erva dá dinheiro para ele. Para nós não. Nós apenas tomamos chimarrão e tereré. Aí então ele empurrou nossos parentes, nossos antepassados, vamos dizer, que agora não estão vivendo mais nossos antigos. Empurrou para cá. Tirou eles de onde era o lugar da erva, deixou para ele, e o pessoal, nossos antigos, mudou para cá, trouxe para cá. Que isso aqui era mato, mato alto. O que que é: tirou de nós a água, as nascentes ficou tudo para ele. E [para] nós só ficou esse rio aqui, rio Jacarey. Isso aqui chama Yvu, essa nascente 6. Os relatos de outros entrevistados, um jovem guarani (31 anos) e seu pai (que tem aproximadamente 88 anos) também são esclarecedores quanto à saída de sua família-extensa do local onde moravam antes de irem para a área reservada de Porto Lindo. Nesse caso, o homem mais velho teria nascido num local próximo a um córrego que desagua no rio Jakarey, chamado pelos Guarani de Passo Pindó. Posteriormente, sua família foi morar num local onde hoje está uma das propriedades rurais situadas dentro do perímetro demarcado, próximo ao local onde se estabeleceu uma missão presbiteriana no início dos anos 1960, chamado de Ladjea Kue em referência a um homem que morava lá, chamado Ladjea. Segundo o homem mais novo, seus pais, tios e avós moravam no local, mas tiveram que sair. Vieram embora para cá [Porto Lindo] porque na época o pessoal começou a trabalhar, tirando erva. Tinha mais erva ali, tinha erva e palmito também um pouquinho ali para baixo. E aí o pessoal pegava a erva para levar e mandaram o pessoal entrar aqui [Porto Lindo]. Que na época não tinha valor 5 Para preservar a identidade dos entrevistados, seus nomes não serão apresentados ao longo do texto. 6 Transcrição de entrevista realizada em fevereiro de 2013.

nada ainda a madeira. Então aqui [em Porto Lindo] era tudo mato. Então o patrão que veio mandou eles mudarem para cá para que eles trabalhassem lá sem ter nada de moradia lá [no Ladjea Kue] [ ] Aí os índios mudaram para cá. [ ] Sair, mudar para cá, para eles trabalharem lá. Tirar erva, essas coisas. Assim o pai falou. [ ] Ele não mandou assim expulsar. Mas só falou para eles se retirar. [ ] E aí os índios saíram de lá para [depois voltar e] trabalhar para ele [o ervateiro] de novo. E aí o pai do meu pai trabalhava para ele, tirando erva 7. O ervateiro que promoveu/exigiu a retirada de seus parentes do local onde moravam e para quem seu pai trabalhou, segundo ele, foi Ataliba Batista. Outro entrevistado, que tem 51 anos e vive desde criança em Porto Lindo (veio de Pirajuy com os pais e irmãos, quando era criança), afirma o seguinte sobre a saída das famílias guarani de seus antigos locais de residência: E: O Sr. Ataliba, eles cortaram... fez a divisa. O pessoal que morava lá no fundo, pulou para cá. Que a última aldeia que ficou é essa aqui, para nós. [ ] Naquela época era erval lá. E naquela época o que dava dinheiro era a erva. Como tem bastante erva lá... Porque quem comanda a aldeia... Naquela época ele que comandava a aldeia [Ataliba Batista]. Ele parece que era um... naquela época parece que era diretor da aldeia. Um chefe da aldeia. Aí ele tem... como tem a força, tem o poder do governo, cortou a aldeia. Fez a divisa. Então aqui não tinha nada, naquela época era só mato bruto. Aí o índio passou para cá. E ficou para ele o erval. Antropóloga: Mas todo mundo passou? Teve gente que não queria passar e ficou lá ainda? E: Tinha. Mas tem que passar. Porque isso é a lei. E naquela época nós índios era medroso, não sabia... Se chegava uma pessoa que falava: vocês tem que sair daqui, o índio já saía. [ ] Naquela época com certeza não descobriu nada ainda. E hoje não. O pessoal já sabe qual é o direito. Então aconteceu isso. Foi assim que o pessoal mudou daqui. Todo mundo que morava lá passou tudo para cá. [ ] Só por isso que aconteceu isso. Se a gente soubesse antes [as consequências] não ia acontecer 8. Além de reforçar o que já havia sido dito por outros entrevistados sobre o fato de Ataliba Batista ser o principal envolvido na saída das famílias de seus antigos locais de residência, este 7 Transcrição de entrevista realizada em fevereiro de 2013. 8 Transcrição de entrevista realizada em fevereiro de 2013.

relato acima apresentado destaca também um outro ponto: a autoridade (arbitrariamente imposta) de Ataliba sobre os Guarani. Há que se destacar o fato, já mencionado acima, que muitos dos Guarani que foram entrevistados em Porto Lindo/Yvy Katu afirmam que Ataliba Batista foi o primeiro nãoíndio com o qual tiveram contato e que, nessa época, não falavam português alguns começavam a aprender, justamente por iniciarem uma nova fase de interação social com os não-índios ao se engajarem (voluntária ou compulsoriamente) como força de trabalho. Esse tipo de autoridade arbitrariamente (e violentamente) imposta aos Guarani, remete para um contexto não apenas local, mas que se impôs a vários grupos guarani nas regiões de exploração de erva-mate. Segundo Ferreira (2007), os índios que trabalhavam nos ervais na área de concessão da Cia Matte Larangeira viviam sob a rígida autoridade dos encarregados. Mas mesmo os que não iam para o corte da erva, viviam sob as ordens da empresa, que dispunha de poder e polícia própria, cujo papel era monitorar toda a área de arrendamento. Instalada em pleno território indígena, a companhia perseguia qualquer pessoa que pudesse representar um concorrente ou um elaborador clandestino de erva e mesmo, em última instância, qualquer pessoa que por algum motivo fosse considerada um empecilho ao empreendimento ervateiro. Ataliba Batista, ex-funcionário da Matte Larangeira, com certeza impôs esse mesmo modus operandi na área que passou a explorar após o fim do monopólio da companhia. Nas entrevistas são várias as menções ao fato de que os funcionários do Ataliba já começaram a impedir os índios de circular livremente pela região (ainda que eles o fizessem, a despeito das proibições). Um homem cuja idade aproximada é 80 anos e que trabalhou para Ataliba quando jovem, afirma que O Ataliba era dono de tudo aqui. Não tinha outro. [ ] O Ataliba mandava em tudo isso aqui 9. Os trechos acima reproduzidos evidenciam pontos em comum nos percursos e trajetórias individuais dos sujeitos, mas também do grupo como um todo. Não são memórias apenas de trajetórias individuais. São memórias de trajetórias compartilhadas, repassadas de uma geração para outra. Algumas das pessoas mais velhas que foram entrevistadas (homens com idades entre 80 e 85 anos) remetem em suas falas para pontos em comum que descortinam um panorama de deslocamento dos locais de ocupação tradicional e de mudança no modo de vida por conta da presença dos não-índios que promoviam a exploração de erva-mate na região. Vários desses sujeitos teriam trabalhado na erva, nas regiões exploradas por Ataliba Batista, ou outros ervateiros, bem como na extração de madeira da região. Se inicialmente o interesse dos não-índios voltava-se apenas para a exploração dos ervais, posteriormente voltaria-se também para a exploração de madeira, que inicialmente era escoada também pelo rio Iguatemi, pois não havia estradas na região. Os índios também se engajaram nessa 9 Transcrição de entrevista realizada em fevereiro de 2013.

atividade. O próprio Ataliba Batista teria sido um dos primeiros a explorar madeira na região. Cortava na região do Yvy Katu e levava até o rio Iguatemi. Posteriormente, ele venderia as terras cujo título de propriedade obtivera na região. Há que se destacar também a atuação do INCRA na região, loteando pequenas propriedades, que depois foram sendo compradas por uma mesma pessoa, de forma que então grandes fazendas foram criadas na região. Assim, o que emerge dos relatos acima mencionados, é que, mais ou menos a partir das décadas de 1920/1930, os Guarani Ñandéva tiveram que deixar seus locais de ocupação tradicional por conta, principalmente, da ação do Sr. Ataliba Viriato Batista e que fizeram isso aparentemente sem opor resistência. É importante ressaltar, mais uma vez, que nem todas as famílias deixaram os locais de ocupação tradicional nessa época. De qualquer forma, a saída dos Guarani do perímetro maior de Yvy Katu foi um processo longo e complicado. Uma mulher que tem hoje aproximadamente 92 anos lembra-se que muitos índios foram expulsos de Yvy Katu para o outro lado (Porto Lindo). Alguns grupos eram perseguidos pelo Ataliba e chegaram a ser arrancados do lugar em que viviam 10. No entanto, para que possamos entender melhor a situação, algumas considerações são necessárias. A atitude dos Guarani de não oporem (pelo menos não de forma violente e combativa, travando embates diretos com os não-índios) a figuras como Ataliba Batista (e outros não-índios que depois também atuaram no sentido retirar famílias guarani de suas propriedades, ou de impedir a circulação delas no interior das mesmas) está ligada a estratégias de resistência que foram colocadas em prática por eles desde o período colonial (e que em certo sentido são usadas ainda hoje) e que se relacionam diretamente com uma característica própria do ethos guarani: uma atitude que evita enfrentamentos diretos, baseada num modo de ser não-agressivo, que está ligado a uma ética que perpassa o xamanismo e norteia o comportamento das pessoas ao longo de sua vida, nas diferentes situações vivenciadas por elas. Assim, ao contrário dos grupos de origem Jê, como os Kaingang e Xocleng, por exemplo, que na região sul e sudeste do país ofereceram forte resistência à entrada das frentes colonizadoras em seus territórios, travando com elas embates bélicos que resultariam em pesadas baixas para ambos os lados (conforme apontam, por exemplo, os trabalhos de Santos, 1987, Tommasino, 1995 e Mota, 1998), a estratégia dos Guarani, desde o início do contato, foi a de se manterem afastados tanto quanto possível dos brancos, evitando embates diretos e tentando preservar ao máximo sua autonomia. Dessa forma, ainda que aparentemente tenham deixado para trás suas casas e roças no local 10 Transcrição de entrevista realizada em abril de 2011.

que atualmente está sendo reivindicado, eles não o abandonaram em absoluto, pois nem todos saíram ao mesmo tempo (alguns resistiram ainda por décadas em seus locais de origem) e mesmo os que saíram continuaram a usufruir do local, percorrendo-o em busca de caça, pesca, lenha, remédios e outros produtos. É preciso ter claro então que o deslocamento dos Guarani para dentro das áreas reservadas foi um longo processo. Os relatos de diferentes pessoas indicam que na década de 1950 ainda havia famílias morando fora da área reservada de Porto Lindo, por exemplo na região próxima ao córrego Arroyo i e mesmo no local chamado Ladjea Kue. Um outro ponto que gostaria de considerar aqui é a questão da língua. Algumas das pessoas entrevistadas afirmaram que na época em que foram retirados de seus locais de residência por Ataliba Batista, os índios falavam apenas a língua guarani (algumas delas não falam fluentemente o português até hoje). Mas ervateiros como Davi Centurião, que era paraguaio, falavam o guarani. E no caso de Ataliba, que era brasileiro 11, alguns de seus funcionários eram paraguaios. Na verdade, nessa região de fronteira muitas pessoas não-índias falam o guarani paraguaio. E, quando começaram a trabalhar nas atividades ligadas à erva-mate, ou nas fazendas da região, os Guarani foram aprendendo o português. No entanto, do ponto de vista antropológico, há que se destacar que, por mais que houvesse uma comunicação entre os diferentes sujeitos envolvidos na situação da qual estamos tratando, com certeza ela era muito problemática. Isso porque, tal como coloca Cardoso de Oliveira (1998), para além da barreira lingüística, havia uma barreira cultural, e com certeza cada um dos lados envolvidos no processo expressava categorias simbólicas bastante distintas em seus discursos fossem eles proferidos em guarani ou português. No caso dos Guarani, não havia concepções de exclusividade territorial no interior de sua cultura, bem como não fazia sentido a idéia de terra como mercadoria da qual era possível dispor. É possível então dizer que, nessa época, os Guarani não estavam totalmente cientes das implicações contidas na afirmação do Sr. Ataliba Batista de que aquelas terras, tradicionalmente ocupadas por eles até então, passaram a ser sua propriedade privada (concepção desconhecida para os Guarani, bem como para outras etnias indígenas). Essa consciência, no entanto, seria construída ao longo do tempo, resultando no movimento de retomada das terras tradicionais que eclode na década de 2000, mas que estava em andamento muito tempo antes disso. Assim, trabalhos como os de Thomaz de Almeida (2001) reportam que, mesmo depois da criação de áreas reservadas para os índios no Mato Grosso do Sul, famílias ou grupos de famílias continuaram ocupando terras convertidas em propriedades particulares, insistindo em permanecer nelas por considerarem-nas seu lugar. Mantinham-se nos trechos que ainda contavam com mata, ou que eram pouco explorados pelos novos proprietários, circulando pelos interstícios da nova 11 Algumas das pessoas entrevistas durante os trabalhos da perícia afirmam que ele falava o guarani paraguaio. Outras afirmam que não.

configuração espacial estabelecida na região. Outra estratégia adotada pelos Guarani para permanecerem em seus territórios tradicionais e que estavam sendo requeridos e titulados por nãoíndios foi a de vender sua força de trabalho nas propriedades ali instaladas. Conforme se pode apreender dos depoimentos coletados durante a perícia, mas também de dados bibliográficos (Landa, 2005; Colman, 2007 e Brand, 1997, entre outros), a maioria das propriedades particulares da região do litígio foi formada com força de trabalho guarani, numa situação paradoxal onde os índios desbravaram seu próprio território para os brancos. Monteiro (1981) menciona um relatório de um funcionário do SPI datado de 1948, onde consta que no então distrito de Iguatemi (onde se localizava Porto Lindo), numerosas famílias indígenas estavam vivendo fora das áreas reservadas, muitas delas em propriedades particulares ou em terras tidas como devolutas e que estavam sendo rapidamente ocupadas, sendo então os índios expulsos desses lugares. Neste documento, consta um dado importante: a população indígena aproximada de Porto Lindo era de 250 pessoas; no distrito de Iguatemi, a população indígena aproximada era de 1500 pessoas. Esse grande contingente de índios seria aos poucos obrigado a se dirigir para as reservas, e o próprio SPI teria encaminhado muitas famílias para a área de Porto Lindo e também para a reserva Ramada (também chamada de Sassoró). No trabalho de Couto (2007), encontramos uma entrevista com o reverendo Rubens Carneiro, um dos responsáveis pela implantação da Missão Evangélica Presbiteriana na reserva de Porto Lindo. Nessa entrevista, ele afirma que quando chegou na região de Iguatemi, em 1960, havia em Porto Lindo apenas 80 índios, ao passo que quando ele deixou a região, transferindo-se para Dourados, em 1976, a população subira para cerca de 1500 pessoas. Essa afirmação não bate exatamente com os censos realizados na época pelo órgão indigenista (ver, por exemplo, o quadro apresentado por Mura e Thomaz de Almeida, 2002), mas o importante a reter dela, é que, de fato, ao longo dessa década a população aumentou muito. Ou seja: o aumento da população na terra indígena Porto Lindo ao longo do tempo de forma alguma deveu-se apenas ao crescimento vegetativo da população. Os dados demográficos disponíveis sobre Porto Lindo e apresentados por Mura e Thomaz de Almeida (2002:71), indicam que num período de 24 anos (entre 1947 e 1971), a população vivendo no interior da reserva teria se mantido mais ou menos constante (variando entre aproximadamente 250 e 310 pessoas). No entanto, em três anos esse número praticamente dobraria a população em 1974 chegando a aproximadamente 570 pessoas. No início dos anos 1980 a população girava em torno de 1100 pessoas. Os números, então, apontam mudanças repentinas no número de habitantes da terra indígena

Porto Lindo, indicando claramente a movimentação de grandes contingentes de famílias indígenas para dentro da área reservada. E não apenas as famílias que viviam no perímetro do tekoha Yvy Katu foram para lá. Segundo Mura e Thomaz de Almeida (ibidem), famílias que estavam sendo expulsas de seus territórios tradicionais em regiões próximas (tais como Sombrerito, Laguna Piru, Vito i Kue, Mbokajá, Garcete Kue, Cerrito e Jaguapiré) também se dirigiram para lá. Inicialmente então houve um inchaço populacional em Porto Lindo por conta dos vários grupos para lá deslocados ou que para lá se dirigiram (espontaneamente, porque eram aliados dos grupos do tekoha Yvy Katu; ou forçadamente, porque para lá foram conduzidos pelo órgão indigenista ou outros grupos/atores sociais 12 ). Apenas posteriormente seria possível observar um crescimento vegetativo significativo da população, constatado nas últimas gerações. E, dessa forma, é possível dizer que esta situação vivida pela comunidade Guarani Ñandéva de Porto Lindo/Yvy Katu não foi uma situação isolada. Com a entrada cada vez mais intensa de frentes de colonização nessa região do então estado do Mato Grosso a partir do século XX, inúmeras comunidades foram desalojadas de seus antigos tekoha e obrigadas a se instalar nas reservas oficiais. Brand (1997), em sua tese de doutorado, apresenta uma extensa relação de aldeias tradicionais guarani e kaiowá destruídas ao longo do século XX em Mato Grosso do Sul, bem como um mapa com suas localizações. Desalojados de seus territórios tradicionais, os Guarani viram sua organização política, social, econômica e religiosa ser profundamente abaladas. Além disso, a entrada dos contingentes populacionais ligados às frentes colonizadoras traria um outro problema para os Guarani: as epidemias. De acordo com Brand (1997) e Pereira (2004), nas primeiras décadas do século XX os Guarani foram intensamente atingidos por elas nessa região. No final da década de 1970 os conflitos se tornaram latentes (conforme Thomaz de Almeida, 2001 e outros), e a presença dos Guarani nas propriedades particulares da região passa a ser vista como ameaça. Os índios passam então a ser retirados das propriedades particulares de forma compulsória, com a anuência da própria FUNAI, sendo levados das fazendas para os postos indígenas. Essas expulsões e deslocamentos forçados levaram a um aumento populacional significativo em várias áreas indígenas, conforme já foi descrito acima para o caso de Porto Lindo, criando uma situação de superlotação, agravada pelos problemas decorrentes da sobreposição de grupos familiares de diferentes origens. Isso, por sua vez, desencadearia reivindicações cada vez mais incisivas por parte das indígenas para reaver seus antigos territórios tradicionais. 12 Muitos dos relatos administrativos do órgão indigenista analisados por Brand (1993, 1997) indicam a existência dessa prática de translado de índios, que eram removidos de seus territórios tradicionais e levados para as reservas. Isso era feito não só pelo órgão indigenista, como também por missionários e proprietários particulares. Assim, algumas das famílias guarani que atualmente reivindicam a terra indígena Sombreirito, por exemplo, moraram durante muito tempo na terra indígena Porto Lindo, apenas recentemente conseguindo retomar (ainda de forma parcial) seu antigo território tradicional.

É importante também destacar que nem todas as famílias que deixaram o perímetro maior do tekoha Yvy Katu foram viver na área reservada de Porto Lindo. Algumas famílias passaram a viver lá, mas outras foram para locais onde viviam seus parentes no Paraguai (como Bajada Guassu e Guavira Poty), ou ainda para outras áreas indígenas demarcadas no próprio estado de Mato Grosso do Sul (como Amambai, Sassoró, Cerrito e Dourados) ou no Paraná (principalmente juntando-se a grupos que vivem na região de Guaíra). Algumas pessoas, ainda, passaram a viver em fazendas ou nas cidades da região, e mesmo em áreas que estão sendo atualmente reivindicadas pelos Guarani, mas que ainda não foram regularizadas. Esse foi o quadro possível de compor a partir do que narraram as pessoas entrevistadas durante os trabalhos de campo, de forma que possivelmente, se mais pessoas fossem entrevistadas teríamos um quadro mais preciso. De qualquer forma, ele remete para uma situação de desarticulação das famílias extensas que viviam na região do litígio, à qual eles mesmos se referem a partir do termo em guarani sarambi, que pode ser traduzido como esparramo. Algumas famílias extensas perderam o contato, seus membros sendo incorporados a outras parentelas e redes de reciprocidade; outras mantiveram os laços, ou porque voltaram posteriormente para a região de Porto Lindo/Yvy Katu, ou porque mantiveram-se em contato através de visitações constantes. Assim, mesmo sendo forçados a se retirar de seus locais de ocupação tradicional para a área reservada de Porto Lindo, os Guarani continuaram ocupando esses locais através de diferentes formas 13 (caçando, coletando, pescando, etc., vendendo sua força de trabalho nas propriedades que ali se instalaram, etc.). E, justamente quando não foi mais possível manter-se neles, ainda que através de interstícios, o movimento para sua retomada tem início. O trabalho antropológico no contexto das perícias judiciais: dificuldades e desafios Tal como coloca Brand (1997), à medida que ocorre uma radicalização do confinamento ao longo do século XX, também inicia-se um movimento de quebra desse processo histórico por parte dos índios. Conforme foi possível levantar a partir das entrevistas realizadas com os Guarani de Porto Lindo/Yvy Katu, a falta de espaço e de acesso aos antigos locais de caça, pesca e coleta, foi um dos fatores principais para o início do movimento de retomada das terras tradicionais, que começou a ser articulado pelo grupo ainda no final dos anos 1970. Assim, é possível dizer que ao longo do contato com a sociedade ocidental, os Guarani foram criando estratégias e formas de atuação política no novo contexto em que se viram inseridos 13 Cabe aqui destacar que Porto Lindo fazia parte do que eles consideravam ser o tekoha Yvy Katu, mas era apenas uma pequena parte dele, já ocupada por determinadas famílias, às quais os grupos expulsos de seus próprios locais de assentamento foram obrigados a se sobrepor.

seja em relação às políticas indigenistas, seja em relação aos segmentos sociais que ocuparam suas terras transformando-as em fazendas agrícolas e/ou pastoris e mesmo cidades. Esse processo resultou no movimento de retomada de seus territórios tradicionais no presente. A primeira reivindicação oficial da comunidade guarani ñandéva de Porto Lindo no sentido de recuperar o que eles consideram seu território tradicional é uma carta com a data de 24 de abril de 2001 dirigida à FUNAI. Trata-se de um documento/carta manuscrita, assinada pelas lideranças e membros da comunidade e encaminhada ao órgão indigenista. Conforme foi possível levantar a partir das entrevistas realizadas durante a realização da perícia e mesmo das informações contidas no laudo de Mura e Thomaz de Almeida (2002), a mobilização da comunidade guarani ñandéva de Porto Lindo em torno da reivindicação expressa nesse documento manuscrito enviado à FUNAI teve como uma de suas motivações o fato de que, na época, os Guarani foram surpreendidos por um processo paralelo de reivindicação fundiária. Uma das fazendas que fazem parte do território que os guarani reconheciam como sendo seu antigo tekoha, foi declarada improdutiva pelo INCRA e passou a ser pleiteada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ou seja: o grupo já estava se articulando em torno do movimento de reivindicação e esse fato se somou a um conjunto maior de motivações, levando a uma postura mais incisiva dos Guarani no tocante à reivindicação da regularização da terra que já então afirmavam ser sua, requerendo, através do documento que encaminharam à FUNAI, que as medidas necessárias para isso fossem tomadas. Em resposta à essa reivindicação, a FUNAI constituiu o grupo técnico coordenado pelo antropólogo Fabio Mura (portaria nº 727, assinada pelo presidente da FUNAI e publicada no Diário Oficial da União em agosto de 2001) para realizar as devidas pesquisas na região. O relatório de identificação e delimitação da terra indígena Yvy Katu havia sido concluído e entregue à FUNAI em 2002, sem que, no entanto, o processo administrativo tivesse algum prosseguimento. Assim, no final de 2003, os Guarani Ñandéva resolveram ocupar as propriedades particulares situadas dentro do perímetro da área por eles reivindicada. O que se seguiu a esse movimento de ocupação das propriedades localizadas dentro do perímetro da área reivindicada pelo grupo como sendo o tekoha Yvy Katu e que, do ponto de vista dos Guarani, era uma retomada de seus territórios foi que no dia 14 de janeiro de 2004 a Justiça Federal de Dourados, na figura do juiz Odilon de Oliveira, concedeu aos proprietários a reintegração da posse, determinando que a FUNAI retirasse as famílias indígenas do local. O procurador da República Ramiro Rochemback entrou com recurso no Tribunal Regional Federal, na 3ª Região, em São Paulo. O caso teria sido redistribuído para a desembargadora Consuelo Yoshida, que em 21 de fevereiro de 2004 suspendeu a reintegração de posse, determinando a permanência dos Guarani no local até a finalização dos processos judiciais.

Assim, por expressa autorização da Justiça Federal, foi fixada em 2004 uma área de 10% de cada uma das três propriedades maiores dentro desse perímetro para a permanência provisória dos Guarani Ñandéva, enquanto o processo de demarcação da terra indígena Yvy Katu segue os trâmites legais. Desde então várias famílias estão instaladas nesses locais, ali construindo suas casas e roças. Dessa forma, os Guarani conseguiram pressionar a FUNAI, no sentido de fazer com que o órgão indigenista desse continuidade ao processo envolvendo a demarcação da área já identificada e delimitada e, em 30 de junho de 2005, o Ministro da Justiça assinou a portaria nº 1289, declarando de posse permanente do grupo indígena Guarani Ñandéva a terra indígena Yvy Katu. No entanto, tal como já mencionado anteriormente, o processo administrativo encontra-se novamente suspenso em função dos processos movidos na esfera judicial por diferentes proprietários. E é neste contexto de luta e disputas que se insere minha atuação como perita. A pesquisa antropológica no contexto de uma perícia judicial é realizada através de um tipo de interação que foge dos padrões clássicos dessa área do conhecimento (por exemplo porque tem como pano de fundo uma situação de disputa judicial onde os sujeitos pesquisados estão entre as partes envolvidas, pelo fato de que o antropólogo tem que ser acompanhado em todas as etapas pelos assistentes técnicos das partes e suas respectivas equipes de apoio, e porque se realiza num curto espaço de tempo). No caso das perícias aqui referidas, o trabalho de campo conduzido por mim na região de Porto Lindo/Yvy Katu foi acompanhado por grupos significativos de pessoas, formados pela perita e seu assistente, os assistentes técnicos das diferentes partes e suas respectivas equipes, e as lideranças indicadas pela comunidade indígena. Dessa forma, cada entrevista foi acompanhada por essas pessoas, ainda que só a perita e os assistentes técnicos (dos proprietários, da FUNAI e do Ministério Público Federal) pudessem fazer perguntas para as pessoas entrevistadas. De minha parte, a adoção de um protocolo mais rígido para conduzir as entrevistas teve o objetivo de garantir o andamento dos trabalhos e evitar tensionamentos ainda maiores do que os que já estavam colocados por conta de toda a situação. Da parte dos proprietários, havia a questão dos prejuízos materiais que tiveram durante os eventos ocorridos na região no final de 2003, quando os Guarani ocuparam as propriedades localizadas dentro do perímetro da terra indígena Yvy Katu. E, para além dos prejuízos materiais, havia o desgaste emocional pelo qual passaram naquela ocasião e que vivenciam ainda, pois aguardam o desfecho da disputa judicial. A trajetória de vida foi por alguns deles narrada nas entrevistas realizadas por ocasião dos trabalhos in loco, e em muitos casos trata-se de famílias que vivem há décadas na região, e que investiram toda uma vida de trabalho nos imóveis rurais de sua propriedade. Para os Guarani não é diferente, e o desgaste sofrido por eles também é grande, tendo em

vista que os processos (tanto o administrativo, quanto o judicial) já estão em andamento há anos, sem que se chegue a um desfecho. Apesar das áreas provisoriamente fixadas pela Justiça Federal em 2004 terem possibilitado que várias famílias ali se instalassem, construindo suas casas e roças (e diminuindo as pressões internas em Porto Lindo), as relações entre índios e não-índios se deterioraram na região, e os conflitos agravaram-se ainda mais. A presença da perita e dos assistentes técnicos na região em 2011 criou nessas pessoas a expectativa de que a situação poderia chegar finalmente a um desfecho. Mas quando retornei em 2013 para realizar a segunda perícia, a situação foi de muita tensão, pois ficou claro para as pessoas envolvidas, principalmente os Guarani, que o fim do litígio ainda não estava próximo. E como é preciso usar nos laudos periciais os dados coletados em campo na presença dos assistentes técnicos das diferentes partes envolvidas no processo, muitas das pessoas entrevistadas por ocasião da segunda perícia foram demandadas a falar de temas já comentados anteriormente (em 2011) e muitos revoltaram-se com isso, afirmando que estávamos duvidando deles e até mesmo ameaçando não cooperar. Isso num contexto em que, para poder esclarecer se houve ou não ocupação tradicional na área do litígio, se fazia necessário reconstruir as relações que se estabeleciam e se estabelecem ainda entre as famílias indígenas e o local que está sendo reivindicado por elas atualmente. Ou seja: era fundamental trabalhar com as narrativas do próprio grupo acerca dos acontecimentos vivenciados por eles ou seus antepassados. E nesse sentido, uma outra dificuldade se colocou: muitas das pessoas que vivenciaram os fatos que procurávamos esclarecer estão já em idade avançada e, em alguns casos, com a saúde debilitada, de forma que as entrevistas eram ocasiões muito cansativas para elas. Soma-se a isso toda a problemática da tradução (feita simultaneamente por uma liderança guarani que estava acompanhando os trabalhos periciais) para o caso de quem não falava português ou que, mesmo falando um pouco, preferia expressar-se em guarani. Há que se destacar que o que emerge das entrevistas é um panorama de violência contra os Guarani que ocorre há muito tempo, mas que nas últimas décadas se exacerba ainda mais. Na época em que as primeiras propriedades foram tituladas e que seus proprietários começaram a abrilas, retirando a vegetação nativa para a formação de pastos ou para a implantação de atividades agrícolas nos moldes ocidentais, os Guarani foram uma mão-de-obra extremamente útil e sua presença nas propriedades era tolerada. Na década de 1970, quando ainda havia muitos pequenos proprietários na região, em sua maioria cultivando algodão e café, os Guarani igualmente puderam se engajar como mão-de-obra nas atividades agrícolas ligadas ao cultivo desses produtos e, novamente, podendo circular ou mesmo morar dentro de seus antigos territórios. Mas à medida que estas pequenas propriedades foram dando lugar às fazendas e à pecuária, os Guarani não conseguiram mais empregos e viram