Título: Cultura e consumo: um roteiro de estudos e pesquisas



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Transcrição:

Título: Cultura e consumo: um roteiro de estudos e pesquisas Autores: Everardo Rocha, Carlos Blajberg, Cristina Ouchi, Flávia Ballvé, Janaina Soares, Letícia Bellia e Marcos Leite Resumo O objetivo central do presente trabalho é oferecer uma contribuição no sentido de ampliar as possibilidades de troca e pesquisa conjunta entre o Marketing e a Antropologia Social. A perspectiva adotada é de pensar questões de mercados, produtos e consumidores, acentuando a dimensão cultural que atravessa todas estas práticas. Este trabalho, portanto, pretende abrir um espaço de pesquisa em Marketing - no campo do comportamento do consumidor, em particular - que articule necessidades concretas de entendimento do universo do consumo com possibilidades - teoria e método - oferecidas pela tradição da Antropologia no estudo da cultura. A proposta em tela é pavimentar uma trilha teórica e explicitar uma tradição que articula os temas do consumo e da cultura como uma referência importante para pensar a sociedade contemporânea. Desta forma, o objetivo deste artigo é duplo. Por um lado, sugerir algumas referências intelectuais, dentro da tradição antropológica, que contribuam para uma teoria do comportamento do consumidor e, por outro, mostrar como, no âmbito dos estudos de Marketing, crescem de forma significativa os esforços de convergência com esta perspectiva. Área Temática: Marketing

1 Introdução O objetivo central do presente trabalho é oferecer uma contribuição no sentido de ampliar as possibilidades de troca e pesquisa conjunta entre o Marketing e a Antropologia Social. A perspectiva adotada é de pensar questões de mercados, produtos e consumidores, acentuando a dimensão cultural que atravessa todas estas práticas. Este trabalho, portanto, pretende abrir um espaço de pesquisa em Marketing - no campo do comportamento do consumidor, em particular - que articule necessidades concretas de entendimento do universo do consumo com possibilidades - teoria e método - oferecidas pela tradição da Antropologia no estudo da cultura. Assim, este exercício visa solidificar certos eixos de convergência entre as disciplinas, submetendo ao exame crítico mais amplo, um esforço que tem sido realizado para desenvolver uma linha de pesquisas em Antropologia do Consumo. A proposta em tela é pavimentar uma trilha teórica e explicitar uma tradição que articula os temas do consumo e da cultura como uma referência importante para pensar a sociedade contemporânea. O consumo - fenômeno essencial no campo do Marketing - pode ser assumido como um dos principais vetores de elaboração da ordem cultural, expressando categorias, princípios, ideais, estilos de vida, identidades e projetos coletivos. Tudo isto aproxima o Marketing e a Antropologia, como necessidade efetivamente demandada pela compreensão dos universos simbólicos em que nos movemos. Existe um espaço significativo para a compreensão da vida social que passa pelo estudo de questões essenciais contidas nos projetos intelectuais das duas disciplinas. Esta inexorável tendência na direção de um campo comum e a necessária parceria entre as disciplinas já foi, há alguns anos, apontada de forma bastante incisiva em mais de uma oportunidade (Rocha e Rocha, 1993 e Rocha, 1995b). Nestes estudos, a convergência era mostrada, por um lado, através do esforço antropológico para examinar (...) questões relacionadas à interesses centrais do pensamento burguês tais como: televisão, consumo, publicidade, moda, objetos, arquitetura (...). (Rocha, 1995b: 226) E, do outro lado, através do uso, sempre mais freqüente e legitimado em Marketing, de técnicas como trabalho de campo e etnografia, que mostram uma presença incisiva da Antropologia nos estudos do comportamento do consumidor, seja no âmbito da academia ou fora dela. Rocha (1995b:226) observa ainda que este caminho pode levar à implementação de (...) perspectivas de análise possuidoras de um sentido menos etnocêntrico na construção de certos problemas de mercado., além de imprimir ao estudo do consumo uma interpretação que enfatiza sua dimensão coletiva, sistêmica e cultural. Para ele, o consumo - tanto a ideologia quanto a prática - não deve ser pensado como performance individual, subjetiva ou singular. Antes, de outra maneira, deve ser interpretado dentro de um jogo das trocas simbólicas coletivas que (...) amplifica o horizonte interpretativo, significando um passo além dos reducionismos implícitos na discussão psicológica generalista de um consumidor singularizado.. (Rocha, 1995b:227) De fato, o consumo - tal como uma linguagem - só é individual como instância de verificação, o fenômeno, tanto na lógica quanto na história, é necessariamente coletivo. Desta forma, o objetivo deste artigo é duplo. Por um lado, sugerir algumas referências intelectuais, dentro da tradição antropológica, que contribuam para uma teoria do comportamento do consumidor e, por outro, mostrar como, no âmbito dos estudos de Marketing, crescem de forma significativa os esforços de convergência com esta perspectiva. Cultura, troca e consumo: uma referência na tradição Na década de vinte, o antropólogo francês Marcel Mauss publicou o famoso Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. Este texto - um clássico da Antropologia - se constitui em um excelente ponto de partida para pensarmos a presença da

ordem cultural como elemento decisivo, relativizando a prevalência da razão prática e do viés utilitarista nas situações de troca. Para tanto, Mauss (1988) mapeou algumas convergências significativas no universo das trocas, envolvendo registros etnográficos das ilhas Trobriand, culturas indígenas da América do Norte e a sociedade industrial-moderna-capitalista. Mauss (1988) enfocou seu estudo nos aspectos econômicos e de direito relacionados às trocas realizadas nas diversas sociedades. As culturas que nos antecederam não apresentavam trocas simples de produtos e riquezas entre atores sociais. Os processos de troca, ensina ele, se davam coletivamente e eram associados a rituais onde a circulação de riqueza era apenas um termo dentro do contrato muito mais amplo e permanente entre os grupos envolvidos. Para dimensionar a complexidade do sistema de idéias acionado em tais trocas, tem que ser levado em consideração o princípio da necessidade de retribuir ao outro aquilo que é parcela de sua natureza e substância, já que (...) aceitar qualquer coisa de alguém é aceitar qualquer coisa da sua essência espiritual, da sua alma. (Mauss, 1988:68). No entanto, o dar e o receber eram considerados como obrigação: recusar-se ao jogo das trocas seria hostilidade, pois significaria a negação da aliança e da comunhão. Mauss também alerta para a noção de honra encontrada entre as transações nos grupos estudados. Honra envolvida no fato de que receber algo deixava o donatário em dívida com o doador, o prestígio de um chefe e de seu clã era associado aos gastos e à exatidão em retribuir sistematicamente as dádivas recebidas, transformando em obrigados aqueles que os tinham obrigado. Esta guerra de propriedade regula a posição social de cada indivíduo ou tribo envolvida. Nesta luta de riquezas, por vezes ocorriam casos em que o objetivo era evitar a possibilidade de retribuição: o consumo de riquezas era tão alto que os outros não teriam como retribuí-lo, sendo objetivo do doador alavancar sua própria projeção social e a do seu grupo de referência. Mauss observa que, nas tribos do noroeste americano, para o chefe conservar sua autoridade interna era necessário manter sua posição entre outros chefes - dentro e fora de sua nação. Para isto, deveria ser abençoado pelos deuses da fortuna, o que se traduziria, sobretudo, através de gastos, distribuição de riquezas e humilhação dos outros. Marcel Mauss aponta o fato de que a sociedade moderna revela práticas muito compatíveis com estas regras, permanecendo de alguma forma vinculada à atmosfera da dádiva, da obrigação e também da liberdade. Nem tudo está classificado exclusivamente em termos de compra e venda ou subsumido em nome da razão econômica ou das práticas racionais e utilitárias. Coisas como sentimentos, rituais, posições classificatórias ou espaços simbólicos ocupam uma dimensão importante e desempenham um papel significativo em nosso sistema de trocas. As regras são semelhantes: para não sermos vistos como inferiores, é necessário retribuir as dádivas aceitas; de preferência oferecendo algo com um valor superior àquele recebido. Por isso, mesmo uma família de vida modesta é capaz de oferecer grandes festas para seus hóspedes, como no caso de casamentos, comunhões e enterros, mesmo que os gastos envolvidos apareçam como algo próximo da completa irracionalidade. Nas trocas, troca-se muito mais do que poderia supor nossa razão prática, utilitária ou econômica. Mauss associa, ainda, o sistema de trocas primitivo com as moedas usadas no capitalismo. Os objetos trocados pelas tribos analisadas são ao mesmo tempo riqueza, meios de troca e de pagamento, podendo até ser dados ou destruídos. Eles servem como garantias que ligam as pessoas ou grupos, e apresentam sinais monetários a partir do momento em que surge o interesse de dá-los a fim de (...) poder possuir outros novos, transformando-os em mercadorias ou em serviços que por sua vez se transformarão em moedas.. (Mauss, 1988:195) Mesmo em tempos antigos, o objetivo perseguido através das trocas era (...) ser o primeiro, o mais belo, o mais afortunado, o mais forte e o mais rico.. (Mauss, 1988:196) Em seguida, o sistema obriga à confirmação das posições classificatórias através da redistribuição do recebido, num processo de transformar riqueza em um meio de prestígio. 2

3 Este ponto, onde notamos como a riqueza pode ser utilizada a fim de agregar prestígio ao seu possuidor, nos remete aos estudos sobre consumo conspícuo realizados por Thorstein Veblen. Na verdade levados de volta, uma vez que A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições - o clássico estudo de Veblen - é mais de duas décadas anterior ao de Mauss. Filósofo por formação, mas com uma reflexão no campo econômico, Veblen, na virada do século, foi pioneiro na investigação em profundidade das práticas de consumo sob o ponto de vista do seu significado cultural. Ele foi capaz de ultrapassar a visão utilitarista do consumo que acabou prevalecendo na teoria econômica. Remontando à cultura antiga, Veblen aponta o papel da idéia de ocupação como definidora da divisão de classes. As classes mais altas dedicavam-se às ocupações que conferiam honra e estima, como as atividades governamentais, guerreiras, religiosas e esportivas. Já às classes inferiores, restavam ocupações produtivas ou industriais. Veblen denomina essa classe de maior status na escala social de classe ociosa, por ser o ócio a expressão de sua superioridade. Nestes sistemas culturais, (...) o trabalho se associa nos hábitos do pensamento dos homens à fraqueza e à sujeição a um senhor. Ele é portanto marca de inferioridade, sendo considerado indigno do homem na sua plena capacidade.. (Veblen, 1965:48) Por outro lado, ócio significa domínio do tempo e sua disponibilidade para atividades não-produtivas, tanto pelo sentimento da indignidade do trabalho produtivo quanto para (...) demonstrar a capacidade pecuniária de viver uma vida inativa.. (Veblen, 1965:54) Entretanto, o ócio conspícuo é exigência secundária da emulação 1, que, por sua vez, é a base para o surgimento da propriedade. Para Veblen (1965:37), (...) a forma mais primitiva da propriedade é a propriedade que têm os homens capazes sobre as mulheres., que, muitas vezes, eram tomadas à força dos inimigos e exibidas como triunfo de um grupo sobre o outro. Com o tempo, o conceito de propriedade passa a incluir também a posse sobre os bens produzidos pelas mulheres, resultando na noção de propriedade de coisas além de pessoas. Neste universo, (...) a propriedade de coisas ou pessoas era útil principalmente pela comparação odiosa que se estabelecia entre o seu possuidor e o inimigo de que ele as tomara.. (Veblen, 1965:40) Porém, à medida que a sociedade atravessa no sentido da organização industrial, a posse de bens perde o caráter de prova do sucesso guerreiro para ser instrumento de comparação entre o proprietário e os outros. Isto porque com o chamado progresso diminuem (...) as oportunidades de distinção por meio da direta manifestação de força superior (...), enquanto que crescem as oportunidades para acumulação de riqueza. (Veblen, 1965:42) A riqueza acumulada obedece menos a uma lógica da necessidade que ao desejo dos indivíduos de sobrepujar uns aos outros. O ócio e o consumo conspícuos são os meios dos indivíduos demonstrarem sua força pecuniária: A base sobre a qual a boa reputação em qualquer comunidade industrial altamente organizada finalmente repousa (...). (Veblen, 1965:88) O consumo só supera o ócio como modo de exibição desta força quando a vida cotidiana torna-se complexa e a comunidade aumenta de tamanho, exigindo que (...) a marca da força pecuniária da pessoa deva ser gravada em caracteres que mesmo correndo se possa ler.. (Veblen, 1965:90) Não é por outra razão que a idéia central que pode ser derivada do trabalho de Veblen é a do sentido comunicacional e do destino de indexador simbólico que o consumo pode assumir. O consumo viabiliza leituras, é uma mensagem em uma língua, um discurso eloqüente, falando de lugares de poder e prestígio em um dado sistema de classificações sociais. 1 Significa competição, rivalidade.

4 Classificação e significado: o consumo na sociedade moderna Mais algumas décadas seriam necessárias - cerca de setenta anos depois de Veblen e cinqüenta de Mauss - para localizar uma segunda referência importante na discussão do consumo. Trata-se, agora dos trabalhos de Baudrillard, Sahlins e Douglas, onde se realiza todo um esforço teórico na captação da lógica que orienta o consumo na sociedade industrialmoderna-capitalista. Assumir estes autores como referência para o estudo do consumo no âmbito da Antropologia ou mesmo a própria idéia de reuni-los pode parecer uma ousadia. Com certeza é um corte arbitrário e cuja discussão mais profunda fugiria aos limites deste trabalho. De fato, Jean Baudrillard, Marshall Sahlins e Mary Douglas tocam - com mais ou menos ênfase, maior ou menor grau de sofisticação - o tema do consumo a partir de preocupações analíticas diferentes. No entanto, é possível perceber entre estes autores e seus textos um importante espaço de reunião que se dá, sobretudo, em uma prevalência do simbólico sobre o utilitário no viés de interpretação do significado do consumo. Em certo sentido, o primado da cultura sobre a razão prática os reúne, e refutar a explicação do consumo como satisfação de necessidades aparece como pano de fundo no desenvolvimento de suas reflexões. O consumo, como modo passivo de absorção de valores de uso, chegaria a um patamar de saturação, de satisfação das necessidades. Isto, entretanto não acontece na sociedade industrial-moderna-capitalista, marcada pela insaciabilidade do consumo. É, exatamente, essa constatação que motiva o exame do consumo por um viés menos determinista na obra destes autores. Em 1968 2, no livro O sistema dos objetos, Baudrillard afirma que só se pode falar em consumo quando os objetos tornam-se signos e passam a formar um sistema coerente entre si, ou seja, um sistema que adquire sentido a partir da relação abstrata de todos os objetos-signos que o constituem. Esta mudança de objeto para signo implica numa modificação simultânea da relação humana, que se torna uma relação de consumo, isto é, os objetos passam a atuar como mediadores obrigatórios das relações entre indivíduos. Assim, o consumido não é o objeto e sim a própria relação, e, portanto, o ato de consumir vai muito além de uma simples relação com objetos, ele é uma maneira de se relacionar com a coletividade, através da manipulação sistemática dos signos. 3 Dois anos mais tarde, em Sociedade de consumo, Baudrillard aprofunda o debate. O consumo, para ele, é um processo de diferenciação social, que se dá através da manipulação dos objetos e sua transformação em signos de uma linguagem (...) que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior.. (Baudrillard, 1991:60) Neste contexto, o consumo pode ser entendido a partir de dois eixos básicos: como processo de significação e de comunicação e como elemento de classificação e diferenciação social. O consumo, como processo de comunicação, é um sistema de permuta que opera como linguagem. Os objetos formam (...) um sistema global, arbitrário e coerente de signos, e são as apropriações destes objetos/signos que (...) constituem hoje a nossa linguagem e o nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e fala.. (Baudrillard, 1991:79,80) Para Baudrillard, é justamente essa passagem do consumo como algo ligado à ordem natural ou biológica para o consumo organizado em torno de um sistema de signos que formata o mundo moderno como sociedade de consumo. Esta é a verdadeira lógica do consumo - indivíduos procurando se diferenciar uns dos outros. Porém, o processo de diferenciação é perverso, pois, ao distinguir-se, o indivíduo restaura, de forma inconsciente, a diferença. Assim, só é possível obter uma diferenciação relativa - mais radicalmente diferenciação vicária - o que explica o caráter ilimitado do consumo. 2 Data da edição original francesa. A edição brasileira é de 1993. 3 A primeira publicação deste livro foi em 1970. A edição usada para este artigo é de 1991.

5 Baudrillard sustenta que apenas através da lógica da diferenciação podemos entender o consumo e a insatisfação definitiva a ele associada nos dias de hoje. A relatividade do processo de diferenciação induz o consumidor a estar sempre à procura de outros signos, dado que seu potencial de diferenciação se desgasta à medida que a concorrência entre as pessoas aumenta, gerando então um permanente estado de insatisfação. O processo de diferenciação é alimentado pelo renovar contínuo dos signos distintivos realizado no estrato superior da sociedade, caracterizando tanto uma forma de manter a distância social quanto uma reação ao desperdício dos signos distintivos anteriores. Assim, a necessidade - necessidade de signos, bem entendido - escoa para baixo na escala social, e só é ali experimentada como necessidade real, uma vez tendo participado do pacote do estrato superior, que já as substituiu por outras necessidades distintivas. Em Cultura e razão prática - trabalho publicado em 1976 nos Estados Unidos - Sahlins discute a idéia formulada por várias teorias, inclusive a marxista, segundo a qual as culturas humanas são formadas a partir de suas atividades práticas, ou, em suas palavras, (...) a cultura deriva da atividade racional dos indivíduos na perseguição dos seus melhores interesses.. (Sahlins, 1979:7) Nesta lógica, que denominou de razão prática, a produção material das sociedades é vista pela ótica restrita da satisfação de necessidades e a produção é regida pela noção de utilidade. Para Sahlins, contudo, a produção tem uma dimensão simbólica. A relação homem-natureza é mediada por um sistema simbólico criado pelo próprio homem e específico de cada sociedade, engendrando, assim, um modo de vida diferente para cada uma delas, o que não seria possível se a intenção da produção fosse somente racional. Os seres humanos, portanto, não produzem apenas para suas necessidades físicas; mas através da atividade produtiva eles (...) reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmos e definem-se em termos de objetos.. (Sahlins, 1979:188) Ou seja, a produção é mais do que uma atividade material, ela (...) é um momento funcional de uma estrutura cultural., refletindo o esquema classificatório da sociedade e atuando como uma instância de atribuição de significado aos bens. (Sahlins, 1979:190) Neste sentido, a singularidade da sociedade ocidental está no fato da ordem econômica ser o locus dominante na produção e transmissão do significado. Como para ele o sistema econômico é uma característica da cultura - e não simples atividade racional, prática - então necessariamente ele é produtor de significado, função que fica escondida dos agentes participantes (produtor e consumidor) tendo em vista as motivações conscientes de atuação no sistema, um procurando lucro, o outro bens úteis. Neste mesma direção de sublinhar o sentido comunicacional e classificatório presente nas práticas utilitárias e racionais, Mary Douglas no livro The world of goods: towards an anthropology of consumption aponta o caráter simbólico do consumo e sua relação com a cultura. Na mesma linha dos autores acima, o ponto de partida de seu argumento está na inconsistência da teoria econômica do consumo, segundo a qual o consumidor é considerado um ser racional - em certo sentido um homem que calculava -, cuja decisão de consumir bens se dá em função do nível de preços e da renda, sendo que qualquer variação de consumo que não seja explicada pela mudança dessas variáveis é atribuída à alteração das preferências de longo prazo 4. Segundo Mary Douglas, a posse material de bens é necessária para tornar visível a cultura, para que as pessoas se expressem através deles, utilizando-se dos significados sociais que carregam. Em outras palavras, o consumo pode ser entendido como uma forma de comunicação entre as pessoas, na qual os bens atuam como mediadores deste processo interativo. Assim, os bens têm uma dupla função - prover subsistência e promover relações 4 O fato das origens das preferências, ou das necessidades e desejos dos consumidores, nunca ter sido realmente objeto de estudo da ciência econômica, mereceu a crítica de Campell (1987), afirmando que, por este motivo, tais esforços teóricos não constituem uma teoria do comportamento do consumidor.

6 sociais. Mas, os significados são definidos socialmente por rituais e aqueles mais eficazes na construção de significados são os que se utilizam de objetos materiais. Sob esta perspectiva, os bens são acessórios do ritual, enquanto que o consumo é o próprio ritual, cuja função primária é dar sentido aos eventos cotidianos, é criar um universo inteligível a partir das coisas consumidas. Por sua vez, a formação de um ambiente inteligível é um processo social. Ou seja, o consumo é, sobretudo, a produção coletiva de um universo de valores. O consumo, neste sentido, (...) se utiliza dos bens para tornar firme e visível um conjunto específico de julgamentos no fluido processo de classificar pessoas e eventos. 5. (Douglas e Isherwood, 1978:67) Assim, a posse de bens é indicação, parte visível, materialização da cultura e marca física na hierarquia de valores que preside o universo dos consumidores. Desta forma, podemos dizer que Baudrillard, Sahlins e Douglas acabam por construir seu próprio espaço de reunião em torno do princípio básico de que o consumo é um fenômeno simbólico e cultural. Mas, não é só isso. Eles indicam pelo menos três dimensões que balizam uma alternativa consistente para colocar os estudos do comportamento do consumidor em nova perspectiva. De saída, ao apontarem na direção da relatividade das certezas do utilitarismo, e não reificar o cálculo economicista ou o primado da razão prática como viés privilegiado para a decifração do consumo. Em segundo lugar, ao evidenciar o que de certa maneira é o óbvio: o consumo é linguagem coletiva e, através dele, comunica-se incessantemente em sociedade. Finalmente, ao indicar que esta comunicação possui um tom dominante. O consumo é, provavelmente, o mais poderoso e eloqüente sistema de classificação social que nossa cultura dispõe. Assim, parafraseando Lévi-Strauss podemos afirmar que, no consumo, classifica-se como pode, mas classifica-se. Magia, romantismo e comunicação: novas perspectivas Em duas oportunidades, Rocha (1985 e 1995) nos mostra que os objetos assumem uma ampla gama de significados quando são por nós consumidos. No jogo do consumo objetos simples do nosso cotidiano podem se transformar em (...) algo pleno de significações muito distintas.. (Rocha, 1995:157). Estas significações em vários objetos e serviços assumem um caráter mágico como forma sedutora de articular produtos e pessoas em um sistema classificatório. Os objetos, no universo do consumo, são experimentados como distinções que, por sua vez, diferenciam-se em um processo de diferenciar os homens entre si. Ainda mais, estes objetos São antropomorfizados para levarem aos seus consumidores as individualidades e universos simbólicos que a eles foram atribuídos.. (Rocha, 1985:67). Colin Campbell (1987) no seu The romantic ethic and the spirit of modern consumerism afirma que há significados culturais envolvendo os produtos e serviços ofertados, tornando a exibição de riqueza um aspecto de menor relevância. Para ele, a noção econômica de status, defendida principalmente por Veblen, acentua apenas uma das múltiplas dimensões assumidas pelo consumo. Os consumidores se esforçam, de fato, para aproximar seu padrão de consumo daquele exibido por um grupo, ao mesmo tempo que se desviam do padrão evidenciado por outro grupo, mas esta ação não se deve somente à exibição de símbolos de status, mas sim a aspectos mais complexos como gosto e estilo. A identificação com o estilo de certo grupo é mais relevante que o status decorrente daquele consumo específico. Rocha (1995) esclarece que os meios de comunicação de massa - em especial a propaganda e os anúncios publicitários - socializam os indivíduos para o consumo, humanizando produtos e serviços. Atuam com a mesma lógica de um sistema totêmico e 5 Tradução livre de (...) consumption uses goods to make firm and visible a particular set of judgments in the fluid process of classifying persons and events.

7 classificador, algo intermediário entre produção e consumo. Esta oposição produção/consumo é homóloga àquela da natureza e da cultura, no que se refere à ausência ou presença do ser humano. Da mesma forma que os sistemas totêmicos - atuantes na cultura do outro - aliam as esferas da natureza e da cultura, a publicidade em nossa sociedade funciona como um elo que estabelece uma complementaridade entre os produtos e pessoas. Os produtos que possuiriam uma natureza impessoal recebem não apenas nomes, mas também situações de consumo, estilos e emoções variadas, construindo um edifício simbólico para torná-lo familiar a um certo comportamento de consumo esperado. Produtos e serviços atuam, dessa forma, como operadores totêmicos da nossa sociedade, categorizando consumidores através de marcas e personalidades incorporadas. Esta ação se dá de modo similar à distinção totêmica tradicional onde os grupos são identificados com elementos significantes da série natural e, na mesma operação, elaboram suas distinções subjacentes e recíprocas. Assim, neste complexo se manifesta a tendência humana de (...) pertencimento a grupos, castas, totens, famílias, linhagens ou alguma outra forma qualquer de unidade sociológica.. (Rocha, 1995:172). Os argumentos de Campbell e Rocha convergem no sentido da percepção da complexidade classificatória contida no consumo. Trata-se de algo além da intuição inicial de Veblen, pois Consumimos para fazer parte de grupos determinados e, no mesmo gesto, nos diferenciarmos de outros grupos (...). (Rocha, 1995:172). Os grupos montam identidades e classificam-se uns aos outros no complexo jogo de diferenças e semelhanças presente no consumo. Na mesma linha, Grant McCracken (1988) em seu livro Culture and consumption: new approaches to consumer goods and activities, mostra que há de fato um caráter dos bens de consumo que está além do utilitário e comercial: levar e comunicar significado cultural. O autor defende, porém, que este significado transmitido está em mudança constante, pois existem três locais distintos de alocação de significados (...) o mundo culturalmente constituído, o bem de consumo, e o consumidor individual.. (McCracken, 1988:71). Da mesma forma, há dois momentos de transferência de significado: mundo-bem e bemindivíduo. Assim, os produtos agem como meios de expressão para o significado cultural sobre o qual nosso mundo foi constituído. Em seu trabalho, McCracken (1988) visava esclarecer a relação entre consumo e cultura. Para o autor, cultura é o conjunto de idéias e atividades através das quais construímos e entendemos nosso mundo, enquanto a noção de consumo inclui os processos de criação, compra e uso de produtos e serviços. A relação entre os dois temas, segundo ele, é sem precedentes, de intensa mutualidade e profunda complexidade. O autor condena as ciências sociais por falharem em perceber que o consumo é um fenômeno cultural completo, pois foi a visão distorcida que o condena ao materialismo que obliterou nossa possibilidade de entender de forma mais profunda o significado cultural do consumo. McCracken (1988) e Campbell (1987) também discutem a insaciabilidade como característica marcante do consumo moderno. Para o primeiro, a insaciabilidade do consumidor seria a conseqüência negativa do caráter, assumido pelos bens de consumo, de manutenção de esperanças e ideais possuídos, o que levaria à renovação permanente das expectativas dos consumidores, condenados, dessa forma, a nunca poder declarar já tenho o bastante. Para Campbell, a insaciabilidade se liga ao hedonismo imaginativo, definido por ele como um exercício cotidiano de imaginação onde se pode vivenciar situações fantasiosas de prazer 6. O consumo, então, representa a busca da reprodução, no plano do real, do prazer obtido com a situação criada no plano imaginário, tentando-se obter prazer não através da compra ou uso direto dos produtos, mas das emoções advindas das experiências ilusórias vividas a partir das imagens e representações dos produtos, dos significados, enfim, a eles 6 A expressão original usada por Campbell (1987) é day-dream.

8 associados. Entretanto, como a realidade nunca se encaixa perfeitamente com as situações imaginadas, cada compra é uma desilusão. A busca pelo prazer ilusório gera um permanente estado de desequilíbrio, de falta e de descontentamento, um desejo difuso por alguma coisa que não se sabe o que é, uma vez que não se consegue nunca obtê-la. Vale dizer que o hedonismo imaginativo está associado à incorporação de novos valores e atitudes - como o culto ao amor romântico, a prática de atividades ligadas ao lazer (esportes, dança, teatro, música etc.) e a literatura de ficção - pela sociedade urbana inglesa em meados do século XVIII, não por acaso época da Revolução Industrial, tendo em vista que essa mudança dos hábitos de consumo serviu de base de sustentação para as novas escalas de produção estabelecidas por esse movimento. Etnografia e Marketing: breve roteiro da aplicação de um método A palavra ethnos é originária do termo grego que denota uma raça, povo ou grupo cultural. Funcionando como prefixo, combina-se formando a palavra etnografia, ou seja, a descrição sócio-cultural de um determinado grupo. A etnografia possui características básicas, tais como: ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social particular; entrevistas em profundidade; observação participante; análise de discursos de informantes; investigação em detalhe; perspectiva microscópica; e interpretação de significados e práticas sociais, que assumem a forma de descrições verbais. Ademais, pode-se destacar como traço mais marcante do estudo etnográfico, a investigação por dentro da realidade de um grupo, sendo o conhecimento científico gerado a partir do ponto de vista do outro. Esse esforço de captar informações em fonte primária, sem intermediações, exige uma certa dose, do que se convencionou chamar em Antropologia, de relativização. Sempre que (...) o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o outro nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando.. (Rocha, 1984:20) Este é o projeto etnográfico, seu poder e sua fragilidade. A grosso modo, duas foram as tradições que canalizam uma história da aplicação do método etnográfico. A primeira, voltada para as sociedades ditas primitivas, foi representada pelos fundadores da moderna Antropologia no início do século, como Radcliffe-Brown, Malinowski e Boas. Malinowski, por exemplo, conviveu de forma pioneira com tribos de aborígenes nas Ilhas Trobriand. Tal experiência originou a obra clássica Os argonautas do Pacífico Ocidental, marcando de forma definitiva o panorama da etnografia ao consolidar entre os pesquisadores o pensamento relativizador. A segunda tradição tornou-se conhecida como a Escola de Chicago. Formada entre outros por Park, Redfield, Mead e Foote-Whyte, buscou investigar grupos urbanos, que muitas vezes viviam em guetos. Estas comunidades sua cultura e seus valores eram estudados no contexto urbano da sociedade industrial, em metrópoles cada vez maiores. Um exemplo foi o dos italian americans de Boston, estudados por Foote-Whyte (Guimarães, 1990) nos anos 50. O mesmo autor introduziu o conceito de observação participante, ao vivenciar e agir como um dos italian americans no cotidiano do grupo. Uma vez estudando pequenos grupos urbanos e seus respectivos universos culturais, não demorou muito para que a etnografia passasse a analisar o fenômeno do consumo, mais visível nas grandes cidades. Tornou-se legítimo compreender as dimensões culturais presentes no comportamento de consumo de determinados grupos sociais para, assim, captar o sistema de classificações que compunha os seus universos simbólicos e definia as suas identidades particulares. Neste sentido, algumas revistas científicas especializadas em marketing publicaram, nos últimos anos, artigos que relatam os resultados da aplicação do método etnográfico no estudo e descrição de determinados grupos urbanos, além de investigarem a realidade de dois locais privilegiados para o exercício da atividade de consumo.

Para realizar esses estudos etnográficos, os pesquisadores utilizaram uma combinação de instrumentos de coleta e registro de dados. O primeiro instrumento foi a observação direta dos eventos, a fim de proporcionar uma perspectiva dos fatos na forma como estes se desenrolavam na realidade. Estas observações, dependendo do estudo, variavam no contínuo de participação total à nenhuma participação do pesquisador na situação investigada. O segundo instrumento utilizado em todos os estudos etnográficos foi a entrevista em profundidade com os participantes da pesquisa. Os pesquisadores, através deste segundo instrumento, buscavam coletar dados sobre a ideologia, ou seja, as percepções dos participantes no que tangia às situações sociais e hábitos de consumo que compartilhavam. Alguns pesquisadores tiraram fotografias de objetos, ambientes e encontros entre os integrantes dos grupos, a fim de complementar as suas notas de campo. Alguns estudos, ainda, realizaram investigação documental, utilizando-a como fonte secundária em uma primeira aproximação exploratória com a situação ou grupo objeto da etnografia. Por fim, os autores dos artigos optaram por organizar o relato dos resultados dos estudos etnográficos em temas conceituais, ao invés de privilegiar uma ordem cronológica dos fatos na forma como ocorriam no decorrer do período da pesquisa. O primeiro estudo etnográfico a ser sumariado foi o de McGrath (1989) que examinou o processo de escolha de presentes, a partir da perspectiva de uma loja de varejo no período das festas de natal. Três foram os temas principais relatados neste estudo. O primeiro deles tratava do ambiente criado no interior da loja para incentivar as vendas, sendo as áreas de exposição periodicamente renovadas para proporcionar aos clientes a sensação de que muitas novidades foram adquiridas, quando na verdade poucos eram os artigos que tinham sido comprados recentemente. O segundo tema conceitual dizia respeito à distinção nítida existente entre o padrão de comportamento adotado pelos vendedores na área pública da loja e aquele adotado nos espaços reservados somente para empregados. Na presença dos clientes, os vendedores apresentavam-se com roupas, maquiagem e cabelos impecáveis, postura ereta e muita polidez e paciência no tratamento, enquanto que nas áreas reservadas, relaxavam, fumavam, comiam seus lanches e, principalmente, conversavam entre si com maior naturalidade. O último tema conceitual tratou da evolução da percepção do processo de tomada de decisões eficazes - no início das operações da empresa tido como fortemente determinado pela sorte, e mais recentemente tido como resultante da competência da proprietária e dos empregados da loja. Hill e Stamey (1990) realizaram um estudo etnográfico que tinha por objetivo entender as estratégias de sobrevivência adotadas por um grupo de mendigos que viviam nas ruas de uma determinada cidade nos Estados Unidos. Os resultados deste estudo foram organizados em três amplos temas. O primeiro estava relacionado com a forma típica de aquisição de bens, onde os autores desvendaram as práticas adotadas para a seleção de produtos já descartados por outros. No segundo tema, os estudiosos buscaram relacionar quais os itens básicos - abrigo, comida, roupa, artigos de higiene pessoal, etc. - que formavam o universo de consumo dos integrantes do grupo. Foi interessante notar que todos estes itens deveriam ser de caráter provisório e portáteis, devido às constantes mudanças de localização do grupo. No último tema foi revelada a existência de um senso de comunidade entre os mendigos, parte motivado pela necessidade de proteção contra os perigos das ruas, parte motivado pelos benefícios derivados da partilha dos produtos que cada integrante do grupo possuía. Posteriormente, Hill (1991) realizou um outro estudo etnográfico sobre mendigos, só que desta vez pesquisando a realidade de mulheres residentes em um abrigo comunitário administrado por freiras e voluntários. Um outro estudo etnográfico, realizado por Schouten (1991), pesquisou o comportamento de consumo das pessoas consumidoras de cirurgia plástica. Um rosto e corpo atraentes parecem ser, em nossa sociedade contemporânea, um atributo pessoal valioso para 9

facilitar o sucesso nos campos pessoal, social e econômico. Sendo dessa forma, os autores do estudo classificaram a realização de uma cirurgia plástica como um ritual de reconstrução da identidade do indivíduo e organizaram os achados de sua investigação em quatro blocos principais. O primeiro tratou do momento em que as pessoas optam por uma cirurgia plástica, tendo muitos dos informantes relatando que a realização da cirurgia serviu para consolidar um importante período de mudança pelo qual estavam passando (separação do cônjuge, mudança de emprego, nascimento do filho etc.). Outro bloco reuniu as declarações de muitas mulheres sobre como ficaram mais satisfeitas em suas relações sexuais após terem passado por uma cirurgia. Um terceiro bloco dizia respeito ao fato de que a realização de uma cirurgia era por muitos considerada como uma forma de exercerem controle sobre o seu corpo e destino. Por fim, como forma de evitar futuras desilusões, a maior parte dos indivíduos afirmou que faziam simulações de como ficariam após a cirurgia plástica. Já a etnografia realizada por Wallendorf e Arnould (1991) tinha por objetivo principal pesquisar a realidade de uma comemoração do Dia de Ação de Graças em diversas famílias. Este feriado nacional, celebrado nos Estados Unidos na última quinta-feira de novembro, existe para agradecer todas as conquistas materiais alcançadas pelas famílias norte-americanas no decorrer do ano. O Dia de Ação de Graças é comemorado geralmente com um almoço em família, onde a abundância material se faz presente como forma de representar a certeza de maior prosperidade futura. Alguns foram os temas relatados nesta etnografia. O primeiro dizia respeito ao processo de seleção de convidados para a celebração, sendo a aceitação de agregados (amigos, namorados etc.) objeto de ampla negociação entre os familiares. Outro tema tratava dos valores de trabalho árduo para a preparação dos pratos e não desperdício. Poucos foram os informantes que demonstraram preferir comemorar o Dia de Ação de Graças em restaurantes ou utilizar utensílios descartáveis. Além disso, os resultados do trabalho árduo eram sagrados e não deviam ser desperdiçados, sendo as sobras guardadas em recipientes especiais para aproveitamento posterior. O último tema assinalado foi o da transformação, através de diversos processos de singularização, de produtos fabricados e comercializados para a massa em outro personalizado e caseiro. O estudo etnográfico, realizado por Celsi, Rose e Leigh (1993), pesquisou um grupo de pessoas adeptas das atividades de lazer de alto risco, no caso os praticantes do páraquedismo. Segundo os autores da pesquisa, este grupo desenvolvia um senso de communitas, ou seja, uma relação de camaradagem entre pessoas que tinham seguido diferentes caminhos na vida mas que compartilhavam de uma atividade comum de alta importância. Foram três os temas utilizados pelos pesquisadores para organizar os achados sobre o grupo. No primeiro, que tratava do processo de aquisição de experiência no esporte, os pesquisadores perceberam a existência de diversos ritos de passagem que serviam para testar as habilidades do praticante e, consequentemente, permitir a ascensão do mesmo na hierarquia social estabelecida no grupo. O segundo tema conceitual dizia respeito aos motivos que levavam um indivíduo a se engajar (contato com propagandas, influência de amigos e conhecidos etc.) e, posteriormente, continuar (desejo de vencer os desafios, participar do grupo, aliviar as tensões do dia a dia etc.) na prática de um esporte de alto risco. O último tema conceitual abordou o fato de que, ao contrário da maioria da população, os praticantes de pára-quedismo buscavam o risco, sendo as situações que o envolviam altamente desejadas. McGrath, Sherry e Heisley (1993) descreveram o dia a dia de um feira de produtos comercializados diretamente pelos pequenos fazendeiros ao consumidor final. Os resultados desta pesquisa foram organizados em três amplos temas. O primeiro tratou de classificar os vendedores em tipos, sendo o perfil mais comum o do produtor de sexo masculino, tendo cerca de cinqüenta anos, chefe de família e já com presença tradicional na feira. O segundo tratou dos fatores determinantes da escolha dos produtos, tendo a opinião dos vendedores sobre quais sejam os artigos da estação, mais frescos ou em promoção, uma importância 10

11 fundamental na decisão final do comprador. Por fim, o último tema relatou o processo de interação entre vendedores e compradores, revelando uma relação de fidelidade, em muitos casos, justificada pelo caráter, personalidade e competência do comerciante. Por fim, o estudo etnográfico, realizado por Schouten e McAlexander (1995), investigou um grupo de consumidores denominados new bikers, representados pelos proprietários das motocicletas Harley-Davidson. Este grupo se diferenciava dos demais membros da sociedade, não apenas por comungar de uma mesma atividade ou estilo de vida singular, mas também por compartilhar da adoração por um produto de uma marca específica. Os resultados do estudo etnográfico foram organizados em quatro temas conceituais. O primeiro lidava com a própria estrutura do grupo pesquisado, tendo os pesquisadores identificado subgrupos que possuíam interpretações particulares sobre os valores de sua cultura. Um outro tema tratava dos principais valores culturais compartilhados pelos integrantes do grupo, sendo devoção à marca Harley-Davidson, liberdade, patriotismo e reafirmação da masculinidade os mais importantes. O terceiro tema dizia respeito à transformação da identidade do indivíduo, na medida que aumentava o seu grau de integração aos valores do grupo de proprietários de Harley-Davidson. O último tema relatou que as empresas produtoras de motocicletas e acessórios se apropriavam dos elementos simbólicos do grupo para se comunicar com o restante da sociedade e conquistar novos clientes. Etnografias de consumo: a perspectiva brasileira No Brasil, a utilização do método etnográfico como forma de pesquisa é bastante recente, mas alguns estudos foram encontrados, especificamente na área de consumo. Esses estudos começaram a aparecer no Brasil, a partir de um projeto acadêmico desenvolvido no Coppead/UFRJ - primeiro programa de pós-graduação em Administração no País a instituir regularmente a cadeira de Antropologia Social nos currículos de todos os cursos que oferece (mestrado, doutorado e nos programas de MBAs) e a criar dentro da área de Marketing uma linha de pesquisa em Antropologia do Consumo 7. O primeiro estudo encontrado foi realizado por Carvalho (1997), retratando os aspectos simbólicos associados ao consumo de objetos decorativos de alguns casais de classe média sem filhos. Ele identificou que o consumo dos objetos decorativos desempenha um importante papel de transformação nos ciclos de vida e na dimensão ritual implicada em mudanças de posição e status social - separação, novos relacionamentos amorosos, casamento, nascimento ou saída dos filhos de casa, entre outras. O estudo mostra também como os objetos decorativos fixam e transmitem conceitos relacionados com a visão de mundo e com as expectativas das pessoas a respeito de si próprias e dos outros. Um outro estudo foi realizado por Kubota (1999) e investiga as práticas de consumo em um grupo de terceira idade, formado por doze moradores da cidade do Rio de Janeiro, maiores de sessenta anos e pertencentes à classe média. A análise das entrevistas permitiu identificar três temas que emergiram do discurso dos informantes. O primeiro tema, a dicotomia entre a casa e a rua, apresenta a influência de familiares e amigos no processo de compra, além da diferença de comportamento entre homens e mulheres. O segundo, a diferença entre as gerações, destaca hábitos de consumo arraigados no grupo estudado, e a perda de importância de alguns símbolos de status que marcaram sua geração. O terceiro ilustra a percepção dos informantes sobre marcas e sonhos de consumo. Utilizando esse mesmo método, a etnografia, um grupo de seis mestrandos do Coppead vem realizando pesquisas sobre as dimensões culturais presentes no comportamento de consumo de diferentes grupos sociais de camadas médias urbanas. As dimensões da 7 Esta linha vem sendo conduzida pelo professor Everardo Rocha, também orientador de todos os trabalhos abaixo relacionados.

pesquisa e os resultados preliminares foram apresentados no 7º Congresso de Administração do Coppead em 1998. O primeiro grupo, estudado por Soares, é o dos profissionais liberais negros bem sucedidos. Por força de um passado marcado pelo pauperismo, violência e enfermidades, a definição de negro ainda não corresponde à imagem de um profissional de sucesso. Vencendo os desafios do preconceito, os negros tem buscado cada vez mais seu espaço no sentido da ascensão social. Porém, aqueles que, nesse processo, passam a integrar grupos de convivência com os brancos, acabam por serem tidos como brancos, tornando-se como que invisíveis enquanto consumidores que possuem padrões particulares de consumo. Notando uma carência de estudos sistemáticos nesse sentido, Soares sentiu a necessidade de realizar este estudo com um grupo de fronteiras bem definidas - negros profissionais liberais bem sucedidos - esperando contribuir para a compreensão da especificidade que caracteriza seus sonhos, suas imagens, suas representações e práticas de consumo, tirando-o dessa espécie de lugar invisível que hoje ocupa nos estudos gerais sobre consumo. O grupo estudado por Bellia é o dos emergentes da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro. No que diz respeito ao consumo, esse grupo ocupa uma importante posição, por possuir predisposição e condições financeiras para adquirir tudo o que deseja. A categoria emergente foi criada pela colunista social Hildegard Angel, e originalmente designa os moradores do bairro carioca da Barra da Tijuca, que saíram do subúrbio após enriquecerem através de seus próprios negócios, geralmente em ramo tido como de menor prestígio, e têm o hábito de consumir bens de alto custo de aquisição. Este estudo se baseia nas afirmações de Veblen (1965), que dizia que conforme a riqueza se expande, o que guia o comportamento dos consumidores não é mais a necessidade de subsistência ou conforto, mas a obtenção da estima e da inveja de seus semelhantes e na dialética de Liebenstein (Dubois e Duquesne, 1993) do esnobe versus seguidores. O objetivo é compreender o aspecto simbólico do consumo desenfreado dos emergentes, a partir do mapeamento do high society tradicional como o grupo dos esnobes e dos emergentes como o de seguidores, que buscam como forma de identificação com o seu grupo de referência as práticas de consumo. Outro grupo de camadas médias urbanas, estudado por Ballvé, é o de crianças de uma escola particular da zona sul carioca. As crianças são um grupo importante principalmente porque na verdade representam três mercados em um só: são alvo de produtos específicos para o público infantil, são influenciadores nas decisões de consumo da família e são um importante mercado futuro, com alto potencial de consumo. Como em uma cidade com tantos contrastes como a do Rio de Janeiro, delimitar a faixa etária não basta, a pesquisa procurou enfocar crianças de um determinado colégio, já que a partir dessa delimitação é possível inferir sobre a classe social e a percepção da família quanto à educação dos filhos. O objetivo desse trabalho é entender como este grupo de crianças se comporta quando deseja algo, se pedem para os pais ou se conseguem relacionar o dinheiro como fonte de poder, acreditando que esse será um instrumento valioso para que se possa praticar marketing infantil no país. O próximo estudo, realizado por Leite, busca entender os fatores motivadores e as atitudes inerentes ao comportamento de consumo das mulheres descasadas, concentrando-se nas profissionais liberais recém-separadas moradoras do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. A pesquisa se depara com duas questões interessantes e contemporâneas para o marketing: o crescimento do contingente de mulheres descasadas na sociedade e a falta de literatura sobre o tema. Além disso, o estudo procura romper com a dominância do viés sócio-econômico nos estudos sobre a mulher, isto é, ao analisar o comportamento de consumo desse grupo social não se baseia apenas no novo status econômico da mulher (derivado de sua maior participação no mercado de trabalho), mas na sua condição geral de vida, dentro de um contexto específico (a sociedade carioca) e em um determinado momento do tempo (os dias atuais). 12

13 Outro grupo, que está sendo estudado por Ouchi, é o dos vestibulandos da elite de Juiz de Fora, uma cidade média do interior de Minas Gerais. Há uma grande especulação sobre a forma com que os jovens adolescentes vêem o mundo: seus valores, crenças e motivações. Isso se deve principalmente ao crescimento da sua participação política e a sua importância de mercado - o consumo dos jovens de classe A e B representa 0,3% do PIB, os jovens são influenciadores de compra familiar em várias categorias de produtos e serviços. Alguns estudos apontaram como características comuns de comportamento dos jovens a crescente individualização, a busca de auto-satisfação, a preocupação com o sucesso profissional, a valorização do corpo e a importância dada ao dinheiro. Apesar do processo crescente de globalização, pode-se observar a cultura atuando também no sentido inverso, promovendo a particularização. Acreditando que no caso específico do adolescente, há uma grande diferença entre grupos e comportamentos de jovens das cidades grandes e de cidades médias do interior e acrescentando a isso a descoberta de cidades do interior como lucrativos centros de consumo com enorme potencial de crescimento, o estudo busca compreender as especificidades do comportamento dos jovens da elite do interior de Minas que geram o seu consumo. Finalmente, o trabalho desenvolvido por Blajberg, nessa mesma linha, é sobre homens judeus bem sucedidos, relacionando brasilidade e judaísmo nas suas práticas de consumo. O povo judeu é peculiar, já que suas práticas religiosas influenciam grandemente o seu comportamento social. Após a diáspora, movimento de dispersão iniciado cerca de 300 a.c., houve uma assimilação de diversos aspectos culturais dos países aos quais se integraram, mas preocuparam-se em preservar a cultura original judaica como forma de pertencer a um grupo. No Brasil, através de instituições sociais como escolas, sinagogas e clubes, a comunidade estreita seus laços, mantendo as tradições. Estudando o mercado do Rio de Janeiro, percebeuse que há poucas lojas de produtos e serviços destinados especificamente aos judeus, apesar da comunidade ter uma importância significativa em termos econômicos e possuir padrões bem definidos de compra. O estudo visa entender o comportamento desse grupo e o que isso gera de demanda por produtos e serviços diferenciados, contribuindo para uma melhor segmentação de mercado. Assim, este trabalho procurou sinalizar um campo de reflexões, apontando um espaço de interseção entre Antropologia Social e Marketing. É evidente que nossa tentativa possui o sentido de projeto, balão de ensaio e, acima de tudo, deve ser vista como simples abertura para uma perspectiva. De fato; um inventário de possibilidades de pesquisa conjunta entre as duas disciplinas vai muito além dos limites do que aqui foi possível desenvolver. Muitas referências importantes no campo da Antropologia - os clássicos de Lévi-Strauss (1970) sobre totemismo ou o meritório esforço de reunião que faz John Sherry (1995) em seu livro sobre comportamento do consumidor, para citar apenas dois - ficaram de fora. Por isso, explicitar que realizamos apenas um roteiro de estudos não é mera retórica acadêmica. É muito mais: a consciência de que fazer crescer uma parceria intelectual supõe responsabilidade e paciência. Por outro lado, é importante que estudantes e pesquisadores das duas áreas possam tomar contato com estudos que, de forma mais ou menos explícita, transitam nesta promissora convergência de interesses entre Antropologia e Marketing. Este trabalho, portanto, possui o espírito de disponibilizar um caminho ou mapa - se o desejo motivar pessoas e reunir esforços de pesquisa, este exercício terá valido a pena.

14 Referências Bibliográficas Baudrillard, Jean 1991 - A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70. 1993 - O sistema dos objetos. São Paulo, Perspectiva. Campbell, Colin 1987 - The romantic ethic and the spirit of modern consumerism. Oxford, Blackwell Publishers. Carvalho, C.A.S. 1997 - Simbologia de objetos decorativos: uma interpretação em Antropologia do Consumo. Rio de Janeiro, COPPEAD/UFRJ. Dissertação de Mestrado. Celsi, Richard L., Rose, Randall L., Leigh, Thomas W. 1993 - An exploration of high risk leisure consumption through skydiving, in Journal of Consumer Research, v.20, n.1, p.1-23, June. DaMatta, Roberto 1997 - Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. 5.ed. Rio de Janeiro, Rocco. Douglas, Mary e Isherwood, Baron 1978 - The world of goods: towards an athropology of consumption. Middlesex, Penguin Books. Dubois, Bernard e Duquesne, Patrick 1993 The market for luxury goods: income versus culture, in European Journal of Marketing, v.27, n.1. Geertz, Clifford. 1978 - A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar. Guimarães, Alba Zaluar (org.) 1990 - Desvendando máscaras sociais. 3 ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves. Hill, Ronald Paul, Stamey, Mark 1990 - The homeless in america: an examination of possessions and consumption behaviors, in Journal of Consumer Research, v.17, n.3, p.303-320, Dec. Hill, Ronald Paul 1991 - Homeless women, special possessions, and the meaning of home : an ethonographic case study, in Journal of Consumer Research. v.18, n.3, p.298-310, Dec. Kubota, Luis Claudio 1999 - Consumo e ciclo de vida: um estudo em Marketing e Antropologia da terceira idade. Rio de Janeiro, COPPEAD/UFRJ. Dissertação de Mestrado. Lévi-Strauss, Claude 1970 - O pensamento selvagem. São Paulo, Cen/Edusp. Malinowski, Bronislaw. 1975 - Uma teoria científica da cultura. Rio de Janeiro, Zahar. 1976 - Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Abril Cultural. 1990 - Objetivo, método e alcance desta pesquisa, in Guimarães, Alba Zaluar (org.). Desvendando máscaras sociais. 3.ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves.

15 Mauss, Marcel. 1988 - Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. Lisboa, Edições 70. McCraken, Grant 1988 - Culture and consumption: new approaches to the symbolic character of consumer goods and activities. Indiana, Indiana Univesity Press. McGrath, Mary Ann 1989 - An ethnography of a gift store: trappings, wrappings and rapture, in Journal of Retailing, v.65, n.4, p.421-449, Winter. McGrath, Mary Ann, Sherry, John F., Heisley, Deborah 1993 - An ethnographic study of na urban periodic marketplace: lessons from midville farmers market, in Journal of Retailing, v.69, n.3, p.280-319, Fall. Rocha, Everardo 1985 - Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São Paulo, Brasiliense. 1991 - O Que é Etnocentrismo. São Paulo, Brasiliense. 1995 - A sociedade do sonho: comunicação cultura e consumo. Rio de Janeiro, Mauad. 1995b - Totemismo e mercado: notas para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro, ANPAD. Vol. I, n.º 5 Rocha, Everardo e Rocha, Angela 1993 - Controlling the future: a comparative analysis of u.s. and brazilian insurence advertisements. Rio de Janeiro, Relatório Coppead n.271. Rocha, Everardo et al. 1998 Antropologia do Consumo: um projeto de estudos etnográficos em grupos urbanos. Rio de Janeiro, Anais do 7º Congresso de Administração COPPEAD/UFRJ. Sahlins, Marshall 1979 - Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro, Zahar. Schouten, John W. 1991 - Selves in transition: symbolic consumption in personal rites of passage and identity reconstruction, in Journal of Consumer Research, v.17, n.1, p.412-425, Mar. Schouten, John. W., McAlexander, James. H. 1995 - Subcultures of consumption: an ethnography of the new bikers, in Journal of Consumer Research, v.22, n.1, June. Sherry, John 1995 - Contemporary marketing and consumer behavior: an anthropological sourcebook. London, Sage Publications. Veblen, Thorstein 1965 - A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo, Pioneira. Wallendorf, Melanie, Arnould, Eric J. 1991 - We gather together: consumption rituals of thanksgiving day, in Journal of Consumer Research, v.18, n.1, p.13-31, June.