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Transcrição:

Tráfico Internacional de Mulheres: decisões judiciais e relações humanas Tania Teixeira Laky de Sousa OCIS: Observatório da Cidadania e Intervenção Social Faculdade de Psocologia e das Ciências da Educação da Universidade de Coimbra tate.adv@uol.com.br Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016) 251

Resumo: O tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual insere-se em um cenário de carências e ausências do Estado, de direitos e da proteção jurídica e social onde imperam os mecanismos de exploração da força de trabalho e de uso da pessoa como mercadoria, em contextos onde a perda de autonomia individual e a dificuldade de configurar alternativas de subsistência digna como nos ciclos de crise económica, cenários de guerra, fluxos de refugiados e catástrofes ambientais geram contingentes de populações, remetidas para situações de pobreza, ficando expostas e vulneráveis ao recrutamento e aliciamento. Enquanto crime hediondo, o seu enfrentamento e penalização tem vindo a ser operado principalmente por via judicial, na qual se inscrevem lógicas dicotimómicas nas relações entre ofensores e ofendidos no sentido de apurar um dano às vítimas para determinar uma culpa que habitualemente se imputa a sujeitos concretos. Fora desses olhares parecem estar as configurações sociais e as relações humanas que sustentam a existência e persistência das práticas de tráfico de pessoas, e, quando incidentes sobre as mulheres, os mecanismos de violência de género assentes na assimetria de relações de poder, que geram a tolerancia a comportamentos discriminatórios que, frequentemente, formatam um quadro de valores que informam a estrutura dos dispositivos jurídicos e normativos instituídos. O estudo tem como objetivo avaliar como as decisões judiciais, e o conjunto de abordagens e procedimentos estabelecidos pelos operadores do Direito, compreendem, apropriam e interpretam, no seu discurso e nas suas práticas, a diversidade e complexidade de dimensões que compõem as relações humanas em face de questões sociais que afectam os direitos e dignidade humana, como seja o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual. Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016) 253

Introdução O tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual insere-se em um cenário de carências e ausências do Estado, de direitos e da proteção jurídica e social onde imperam os mecanismos de exploração da força de trabalho e de uso da pessoa como mercadoria, em contextos onde a perda de autonomia individual e a dificuldade de configurar alternativas de subsistência digna como nos ciclos de crise económica, cenários de guerra, fluxos de refugiados e catástrofes ambientais geram contingentes de populações, remetidas para situações de pobreza, ficando expostas e vulneráveis ao recrutamento e aliciamento. Enquanto crime hediondo, o seu enfrentamento e penalização tem vindo a ser operado principalmente por via judicial, na qual se inscrevem lógicas dicotimómicas nas relações entre ofensores e ofendidos no sentido de apurar um dano às vítimas para determinar uma culpa que habitualemente se imputa a sujeitos concretos. Fora desses olhares parecem estar as configurações sociais e as relações humanas que sustentam a existência e persistência das práticas de tráfico de pessoas, e, quando incidentes sobre as mulheres, os mecanismos de violência de género assentes na assimetria de relações de poder, que geram a tolerancia a comportamentos discriminatórios que, frequentemente, formatam um quadro de valores que informam a estrutura dos dispositivos jurídicos e normativos instituídos. O estudo tem como objetivo avaliar como as decisões judiciais, e o conjunto de abordagens e procedimentos estabelecidos pelos operadores do Direito, compreendem, apropriam e interpretam, no seu discurso e nas suas práticas, a diversidade e complexidade de dimensões que compõem as relações humanas em face de questões sociais que afectam os direitos e dignidade humana, como seja o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual. Objetivos O objetivo central de investigação é o de verificar, pela análise de Acórdãos Judiciais que tratam do crime de tráfico internacional de mulheres, como as decisões judiciais, e os respectivos dispositivos processuais, consideram os sujeitos do processo vítimas e ofensores a partir de uma perspectiva de Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016) 255

Tania Teixeira Laky de Sousa análise sociojurídica da mulher, de sua identidade de género. Esta indagação sustentará a leitura das estratégias e mecanismos adotados para detectar, investigar e penalizar o tráfico de mulheres, no sentido de avaliar se a formação do processo e a decisão judicial contemplam olhares e respostas; ou seja, se participam, de facto, no enfrentamento do tráfico de mulheres e da violência de género, ou se, pelo contrário, as perpetuam. Diante desta complexidade, a pesquisa pretende desvelar as faces ocultas de uma realidade que se anuncia em estudos, relatórios e notícias, e levará em consideração: as categorias de análise mercado, trabalho, exploração e alienação na análise do tráfico para fins sexuais; o reconhecimento da pessoa em situação de tráfico como sujeito de direitos; a dissociação do conceito de tráfico dos conceitos de prostituição e imigração (embora existam relações sistêmicas entre prostituição, migração e tráfico); situar melhor o objeto de análise e a sua importância no conjunto das relações sociais, e; a criação de espaços de debate onde os sujeitos vulneráveis possam ter a oportunidade de participar das discussões que tratam de sua realidade. Procuraremos estabelecer, nessa pesquisa, uma abordagem metodológica pela óptica dos direitos humanos e das perspectivas de género, avaliando os efeitos do discurso jurídico e da decisão judicial na percepção e compreensão do tráfico de mulheres, considerando o conjunto de representações e valores sociais, éticos e civilizacionais que são veiculados. A pesquisa visa aprofundar o conhecimento do percurso sociojurídico da questão social do delito de tráfico de mulheres, tendo Portugal como território de destino e trânsito nos fluxos das redes de tráfico. Pretendemos analisar os argumentos as vozes pela escuta qualificada e activa das autoridades policiais, membros do Ministério Público e Juízes, dos ofensores e ofendidos, a partir de uma análise sob o enfoque da teoria social crítica, buscando destacar estereótipos discriminatórios em face da mulher. Cabe analisarmos as teorias do Serviço Social e das Ciências Jurídicas e Sociais na perspectiva da teoria social crítica. Dessa leitura pretendemos extrair os parâmetros que nos permitam avaliar a sua repercussão no enfrentamento, ou perpetuação, do tráfico de mulheres e da violência de género. Os discursos e as práticas são componentes fundamentais para a constituição das políticas sociais e avaliá-los proporciona a compreensão do seu alcance e efectividade. Sendo as políticas sociais o lugar privilegiado de atuação do Serviço Social, compreender suas articulações e vínculos com outros processos e discursos torna-se imprescindível à actuação profissional, bem como o desenvolvimento de instrumentos técnico-operativos, sustentados em campos teórico-metodológicos, socialmente contextualizados se comprometidos com as transformações sociais necessárias para o enfrentamento a todas as formas de dominação. 256 Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016)

Metodologia A pesquisa será apoiada na perspectiva da Teoria Social crítica. A Teoria Crítica, ao reconhecer que não há neutralidade nas suas análises, não se conforma com o abstracto ou o senso comum fenoménico, mantendo a crítica sobre suas próprias descobertas no sentido de buscar, em cada realidade a ser conhecida, as relações que estabelece com a totalidade e, esta, como se relaciona com especificidades e vivências concretas. Entre os desafios de uma análise, tendo como campo de abordagem a Teoria Crítica, está o desvelamento da realidade na perspectiva da construção de futuros, sendo que estes não são somente planejamentos para tempos vindouros, mas o próprio exercício do presente. Desvelar a realidade sem deixar-se levar pelo imediatismo dos acontecimentos torna-se um desafio teórico tão importante quanto a construção de processos particulares de aprendizagens que revelem os meandros da dominação. Nesta perspectiva, utilizaremos, primordialmente, quatro categorias analíticas que permitirão compreender os motivos que determinam o tráfico de pessoas na sociedade capitalista: mercado, trabalho, exploração e alienação. Essas categorias não devem ser vistas como determinantes do olhar e da explicação, mas como um meio de aprofundar e desvendar outras categorias de referência ao tema: mulher, género e migração. Trata-se de estudo preponderantemente qualitativo, que busca analisar Acórdãos Judiciais sobre tráfico de mulheres, em tribunais superiores de Portugal e Brasil, não em uma perspectiva de mera comparação de dispositivos e instrumentos jurídicos, mas de entendimentos gerados a partir de territórios políticos, económicos e sociais de dois países que, no âmbito das redes de tráfico de pessoas, desempenham papeis distintos e revelam, também, distintos interesses no seu enfrentamento; um é país de origem, o segundo país de destino e passagem. Faremos uso dos processos e métodos de pesquisa largamente experimentados pela instituição de acolhimento o OCIS. O Observatório da Cidadania e Intervenção Social (OCIS), da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (FPCEUC), constitui-se como um recurso pedagógico e uma estrutura multidisciplinar e interuniversitária, de activação da cidadania e de investigação nos domínios da intervenção social e das políticas e problemáticas sociais. Programaticamente, o OCIS privilegia: uma dimensão heurística associada à dinamização de uma cultura de investigação e de capitalização de saberes; uma dimensão cívica e de abertura à comunidade académica e não académica; uma dimensão pedagógica, objectivada na disponibilização de um conjunto sistematizado de referências teóricas, documentais e legislativa. O OCIS é constituído por investigadores das áreas das ciências sociais e humanas e da área das ciências comportamentais e jurídicas tendo albergado diferentes projetos de investigação, sendo um destes na área do Tráfico de Seres Humanos financiado pela União Europeia. Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016) 257

Tania Teixeira Laky de Sousa Resultados A produção de quadro de avaliação de resultados dos processos judiciais e do impacto das decisões judiciais sobre o conjunto de condições que levam à emergência e persistência das actividades do tráfico em Portugal é decisivo para a analisar o modo como estas compreendem as diversas dimensões das relações humanas, considerando que, em termos gerais, apenas 50% das investigações realizadas decorrem em condenações, e destas pouco se conhece sobre os destinos das vítimas e de ofensores, tendo em atenção que são pouco perceptíveis, estatísticamente, os efeitos no recrudescimento das atividades do tráfico de mulheres e das práticas de violência sobre elas execercidas. A compreensão e apropriação das práticas sociais associadas às diversas configurações das relações humanas, e dos campos do conhecimento e das práticas do Serviço Social, são relevantes para a formulação das políticas públicas que tratam de questões sociais de ampla e incidência no tecido social e económico, como é caso do tráfico de pessoas. Referências Brasil. Ministério da Justiça (2010). Relatório Final de Execução do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (1ª ed.). Brasília: Secretaria Nacional de Justiça. Castilho, Ela Wiecko V. de (2008). Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo. In Brasil. Ministério da Justiça, Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2ª ed.). Brasília : Secretaria Nacional de Justiça. Costa, Paulo Manuel (2005). O tráfico de migrantes em Portugal: perspectivas sociológicas, jurídicas e política. Lisboa: Observatório da Imigração. GAATW (1994). A proposal to replace the Convention for the Suppression of the Traffic in Persons and of the Exploitation of the Prostitution of Others. Utrecht: GAATW. Laky, Tania (2012). Tráfico Internacional de Mulheres: uma nova face da velha escravidão (Tese de Doutoramento). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. Leal, Maria Lúcia Pinto & PIinheiro, Patrícia (2007). A pesquisa social no contexto do tráfico de pessoas: uma abordagem marxista. In M. L. P. Leal (Ed.), Tráfico de pessoas e violência sexual (pp. 17-26). Brasília: Violes/Ser. Portugal. Observatório do Tráfico de Seres Humanos [OTSH] (2010). Brasil na rota do tráfico de seres humanos. Lisboa: OTSH. Santos, Boaventura de Sousa (Org.) (2007). Tráfico de mulheres em Portugal para fins de exploração sexual. Coimbra: CES. Santos, C; Albuquerque, C & Almeida, H (2013) (orgs) Serviço Social: Mutações e 258 Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016)

Desafios. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. UNODC (2006). Trafficking in persons. Global Patterns. Departamento das Nações Unidas contra a Droga e o Crime. Lusíada. Intervenção Social, Lisboa, n.º 47/48 (1º e 2º semestre de 2016) 259