ÁGORA Revista Eletrônica ISSN Ano XIII Nº 25 Dezembro de 2017 Páginas ÉDIPO: O INVESTIGADOR DA VERDADE NA TRAGÉDIA ANTIGA

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Transcrição:

ÉDIPO: O INVESTIGADOR DA VERDADE NA TRAGÉDIA ANTIGA Ricardo Cocco 1 Carmem Regina Cocco 2 Resumo A tragédia Édipo Rei, escrita por Sófocles, é considerada a mais trágica das tragédias do teatro grego. É a história do herói que luta contra as forças invisíveis do destino, das angústias e incertezas humanas. Que busca a verdade e se recusa a sucumbir aos desígnios divinos, mas que se depara com a precariedade e a finitude da condição humana. Não renuncia em compreender o curso do mundo e assume a luta, como uma ação racional deliberada, que não se trata exclusivamente da existência, mas da dignidade do ser humano. O texto apresenta alguns elementos que nos ajudam a compreender o lugar da tragédia grega na passagem da ignorância para a sabedoria, do mito ao logos, do numinoso ao racional elucidada na ação humana que se debate entre a liberdade e os condicionamentos impostos pela própria natureza humana. A tragédia Grega insere-se num contexto de transição, ou seja, de passagem de uma consciência mítica, onde os costumes e ações humanas são pré-determinadas pelos deuses impedindo, destartes, o ato livre e autônomo da subjetividade para uma perspectiva racional. Ela representa o período intermediário caracterizado pela consciência trágica. O mito não foi ainda totalmente superado e ainda não se firmou a consciência filosófica. A tragédia retoma os mitos antigos com uma nova forma de vê-los, sob uma nova luz. É um mito antigo visto com os olhos dos indivíduos que se conhecem livres e capazes de argumentação. Sófocles (496 406 a. C.) destaca-se como um dos principais autores trágicos deste processo fundante da racionalidade ao lado de Ésquilo e Eurípedes. Dentre seus principais textos está o sempre novo e intrigante Édipo Rei 3. Nele, Sófocles narra o esforço do Herói 1 Universidade Federal de Santa Maria e PPGEdu Universidade de Passo Fundo. ricardo.cocco@ufsm.br. 2 Prefeitura Municipal de Frederico Westphalen-RS. carmemreginafw@gmail.com. 3 O mito Édipo Rei narra a história do rei Laio, esposo de Jocasta, que após uma consulta aos oráculos, lhe é revelado que seu filho o matará e se casará com a rainha. Para evitar o parricídio e o incesto, Laio ordena ao seu servo que abandone a criança no alto da montanha com os pés amarrados. Porém, o servo do rei fica comovido e decide entregar a criança a Polípio, rei de Corinto, para que ele e sua esposa Mérope cuidem dela. E assim é feito, Polípio leva o menino para sua casa e lhe dá o nome de Édipo. Passam-se os anos e Édipo, em uma curiosa 97

trágico em sua luta contra o seu destino. Aquele se torna herói da tragédia pela recusa de sucumbir aos desígnios divinos e tenta transcender o que lhe é dado com um ato de liberdade. É a dicotomia sofocliana entre a vontade humana e as disposições do destino (LESKI, 1996, p. 164). Édipo, aquele que sabe (decifrador de enigmas), lúcido devido à sua vontade de investigação, procura, a partir de novos métodos e procedimentos ver o mundo, superando as práticas míticas, investigar as origens dos males que pairam sobre Tebas (V 30 4 ). Deve-se esclarecer que em Édipo Rei perpassa incessantemente a relação conflituosa entre as duas formas de conhecer presentes na época e que evidencia-se claramente na narrativa. A primeira o caráter numinoso, o qual recorre a recursos do saber divino para esclarecer os fatos e ocupa-se de práticas míticas e interpelações dos deuses, disponíveis através de oráculos, profetas e/ou diretamente em contato com os deuses. Um mundo de referências e significações religiosas, sacralidades, preces, um âmbito transcendental do saber e divina do conhecimento. A segunda fonte de saber, a saber, é o caráter empírico, caracterizado pela investigação e interpretação dos sinais e provas. Caminho mais trabalhoso, mas que acaba por ser a única alternativa à Édipo após romper com o numinoso. Este caráter hermenêutico empírico faz do herói trágico o protagonista sobre todas as ações. Se, no final, aparentemente vence o irracional, Édipo não foi um ser passivo. É o logos nascente. O que faz Aristóteles proclamar na Poética Édipo Tirano como paradigma da passagem da ignorância para o conhecimento (MARSHALL, 2000, p. 170). Saber que... inaugura, referencia, sustenta e encerra o drama trágico, mas a ele acrescenta-se um saber de natureza prática, empírica; (...) uma força que nega à divindade o papel de determinadora, legando ao homem a possibilidade de chegar ao conhecimento (MARSHALL, 200, p.172). A investigação da verdade acerca dos fatos responsáveis pelos males que assolam Tebas é, indubitavelmente, o fio condutor da narrativa de Édipo Rei. Édipo, então, posto como o herói da tragédia, assume seu papel de investigador instaurando uma espécie de inquérito consulta aos oráculos, descobre que ele matará seu pai e se casará com sua mãe. Sem saber que Polípio e Mérope não são seus pais biológicos, Édipo decide sair de Corinto, pensando que assim, evitaria a consumação das profecias oraculares. Na fuga de Corinto, Édipo é atacado pela tropa do rei Laio e, em legítima defesa, acaba matando o rei. Édipo chega à Tebas, vence a esfinge, se torna tirano e casa-se com Jocasta, ou seja, desconhecendo a sua história, Édipo vai ao encontro do seu trágico destino: mata o próprio pai e casa-se com a mãe. Depois disso, uma violenta peste atingiu a cidade e Édipo foi consultar o oráculo, que respondeu quea peste não teria fim enquanto o assassino de Laio não fosse castigado. Ao longo das investigações, a verdade foi esclarecida e Édipo cegou-se e Jocasta enforcou-se. 4 Os versos (V) aqui citados foram retirados de: SOFOCLES. Edipo Rei. Trad. Gama Kury, RJ: Joge Zaar editor, 1990. 98

judicial composto por processo jurídico e histórico, com traços marcantes da própria processualística ateniense. Essas maneiras empíricas que possibilitam a identificação da verdade têm como objetivo central a descoberta do assassino do Rei Laio e que, posteriormente, no desenrolar da tragédia, incorre noutro elemento que consiste na descoberta da própria identidade de Édipo, sua biografia. Ou seja, quem de fato ele é. Assim, se concatenam as duas formas de saber incomensuráveis uma à outra. Aquela além e aquém do conhecimento, a via numinosa e a via discursiva/racional que se plasma em conceitos, que pode ser captada no tempo físico através de indícios que o discurso racional encadeia e que se orienta sob as categorias da razão. A tragédia de Édipo é a tragédia do desenvolvimento do conhecimento empírico. Por mais que a razão fracasse e possa nos levar ao erro, é a única ferramenta que o homem possui no intuito de buscar a verdade. O protagonista da tragédia de Sófocles é o homem que enfrenta seu destino, o herói da tragédia. a verdadeira tragédia se origina da tensão entre as incontroláveis forças obscuras a que o homem está abandonado, e a vontade deste para lhe se opor, lutando. Essa luta é em geral sem esperança, afundando, mesmo, o herói cada vez mais nas malhas do sofrimento, e muitas vezes até ao naufrágio total. Todavia, combater o destino até o fim é o imperativo da existência humana que não se rende. O mundo dos que se resignam, dos que se esquivam à escolha decidida, constitui o fundo diante do qual se ergue o herói trágico, que se opõe sua vontade inquebrantável à prepotência do todo, e, inclusive da morte, conserva integra a dignidade da grandeza humana (LESKI, 1996, p. 165). A atividade principal do personagem protagonista é investigar e descobrir a verdade. Verdade esta que se dá a conhecer ao espectador desde o início quando Édipo arranca do velho adivinho Tirésias, que quer calar, a revelação de que é ele próprio o autor do crime de assassinato (v. 350) e que vive agora incestuosamente. Édipo, portanto sempre sabe, mas há indicadores de que ele não tem certeza absoluta então começa a levantar suspeitas e hipóteses que fazem parte do processo investigativo. Édipo pretende reunir o maior número de evidências possíveis que o conduzam a uma história completa, inteligível e coerente, que explique com clareza o que e como se passou os fatos. O verbo zeteín (investigar) aparece seis vezes na tragédia (v. 110, 266, 362, 450, 658 e 1112). Édipo aceita as determinações de Apolo (v. 97) e se compromete por ele (como cidadão, rei e implicado no processo), e pela pólis com a apuração da verdade. No discurso de abertura, Édipo expõe ao público toda a questão e se apresenta como perseguidor do culpado e apurador do crime (v. 220). É o instrumento inaugural do processo. 99

Ao inaugurar o processo investigativo já há uma condenação sumária até o fim do processo penal fundada na concepção de impureza do autor e do perigo de contaminação da comunidade (v. 240). Convoca também aos atenienses mediante imunidade e recompensa (v. 227). Preliminarmente, a ação se realiza sob o âmbito do nume, convoca-se o vidente e não as testemunhas (v. 287). No entanto, a terrível revelação de Tirésias, na qual a cidade padece por causa de Édipo (v. 365) Pois ouve bem: és o assassino que procuras! ofende a Édipo que fala de conchavo e dúvida da eficácia da interpretação de Tirésias. Ela lhe parece ocultadora e dolosa e, para Édipo, nada ajuda na zétesis. Ele teme pela perda do poder e acusa Tirésias mais Creonte de conspiração (v. 377). Ele, Édipo, se manifesta como aquele que sabe, mas parece cegar a si próprio diante de tal informação vinda da interpretação feita por Tirésias dos oráculos. Há desavenças entre a razão e o conhecimento religioso que tanto Édipo questiona. Para tanto afirma: impus silêncio à Esfinge; veio a solução de minha mente e não das aves agoureiras (v.400) a fim de evidenciar que é a razão que descobre a verdade. Enquanto segue-se o interrogatório com Tirésias uma dúvida surge, que desvia a preocupação do investigador do problema principal, a saber, a própria identidade do herói trágico (v. 450). A procura inicial desanda em suas angústias. Há uma mudança de atitude de Édipo que mostra claramente um desequilíbrio por passar de uma identidade rapidamente para outra. Está agora inseguro em relação ao seu poder e à sua origem, o medo e o temor o assolam. Édipo que participara da clarividência dos deuses e vira a incapacidade do homem não admite a sua própria fragilidade. Mas a matéria do drama é fundamentalmente um processo de descoberta. Édipo privilegia a busca de indícios e informações e quer chegar a saber com base em evidências palpáveis. Aí está o drama central: o conflito entre o poder divino dos oráculos e a compreensão dos fatos (saber racional). O herói trágico procura aproximar-se da verdade através da comparação das histórias lembradas por ele e por Jocasta a fim de construir uma única versão coerente sobre o episódio (v.725ss). A disposição de Édipo é investigante. A partir desse ponto é o momento em que se encaminham as informações e perguntas que levarão à conclusões trágicas sobre a vida de Édipo (MARSHALL, 2000, p. 189). O rei de Tebas, no entanto, tem um grande zelo com as evidências e toma cuidado na condução da investigação pois quer compreender tudo até o fim, mesmo que para isso tenha que tornar evidente a sua própria impureza e crime. Jocasta, ao ser interrogada, põe dúvidas sobre a veracidade das informações do informante (v. 480), o pastor, e tenta impedir a investigação (v. 940) para provar a ineficácia do oráculo pois incorrem sobre ela e Édipo. No 100

entanto, mais tarde, apesar de ainda não totalmente solucionado o drama, quando ainda as verdades se apresentam deduzidas mais pelas prédicas de Apolo, Delfos e Tirésias do que pela comprovação racional, atenta contra si mesma cometendo o suicídio (v. 1200). Édipo procura averiguar cuidadosamente as origens das informações distinguindo as presenciadas das transmitidas por outros. Ele tem o domínio sobre a ação e comanda, como historiador e juiz os interrogatórios, indiciamentos, averiguações e acareações. Ao todo são aproximadamente 98 intervenções interrogativas dirigidas ao Corifeu, Tirésias, Creonte, Jocasta, ao Mensageiro e ao Pastor. Ele não tem por objetivo nem pode intuir ou prever o futuro, mas sim, conhecer e entender toda a verdade relacionada ao assassinato de Laio e sua própria identidade. É um saber hábil e consistente em suas finalidades. Com um golpe genial de reunir várias pessoas numa só, Sófocles consegue uma concentração inaudita no desenvolvimento da ação. Assim como o Mensageiro de Corinto é o mesmo homem que outrora recebeu no Citérion a criança voltada à morte e a levou a Corinto, assim também o Pastor tebano, que a entregou no monte, é precisamente aquele que acompanhava Laio em sua viagem a Delfos, que foi testemunha de sua morte e posteriormente fugiu da cidade com o conhecimento do segredo do novo rei (LESKY, 1996, p. 164). As dúvidas e hipóteses ainda seguem-se até o verso 1185 quando se desfazem para Édipo: Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que a contemplo! Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! O herói deixa de se apresentar como modelo para se tornar o problema da tragédia. O Conhece-te a ti mesmo dirige Édipo aos limites de sua essência e revela a precariedade e finitude da condição humana, mas que não renuncia em compreender o curso do mundo e assume a luta, que não se trata exclusivamente da existência, mas da dignidade do ser humano. No esforço de contrariar os deuses, Édipo padece pela sua própria eficiência em apurador da questão posta por Delfos. Foucault chega a pontuar esta tragédia como uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso, de ordem retrospectiva, não mais da ordem da profecia, mas do testemunho (MARSHALL, 2000, p. 203). O herói trágico é vítima de um destino, no entanto tem certa liberdade de ação. O herói faz do destino o seu destino, como uma ação que ele assume deliberadamente. Passa de vítima a herói trágico. Há tragédia quando a existência humana acede à consciência, ao mesmo 101

tempo exaltada e lúcida, tanto por seu preço insubstituível quanto por sua vaidade (VERNANT, 1991, p. 26). Referências Bibliográficas ARANHA, Maria Lucia e MARTINS, Maria Helena. Filosofando: introdução à filosofia. SP: Editora Moderna, 1993. LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad.: J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. SP: Editra Perspectiva, 1996. MARSHALL, Francisco. Édipo Tirano: a tragédia do saber. POA: Ed. Universidade/UFRGS, 2000. SOFOCLES. Édipo Rei. Trad. Gama Kury, RJ: Joge Zaar editor, 1990. VERNANT, Jean Pierre e NAQUET, Pierre Vidal-. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Trad.: Bertha Gurovitz. SP: Editora Brasiliense, 1991. 102