RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM GOIÂNIA: ENTRE PRÁTICAS E PRECONCEITOS Clarissa Adjuto Ulhoa 1,3 ; Eliesse Scaramal 2,3 1 Bolsista PBIC/UEG - Projeto ABEREM Financiamento: CNPq 2 Pesquisadora Orientadora 3 Curso de História, Unidade de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas, UEG CieAA Centro Interdisciplinar de Estudos África-Américas. RESUMO: Com o objetivo de auxiliar na compreensão dos processos que contribuíram para o histórico encobrimento das comunidades religiosas de matriz africana, tanto no que diz respeito à organização territorial do sagrado, quanto à prática de negativação semântica e ideológica de elementos que compõem essas religiões e religiosidades, foi realizado um levantamento a partir de fontes catalográficas dos templos, igrejas e terreiros da cidade de Goiânia, assim como a coleta de fontes orais e reportagens que abordavam a questão. Este levantamento serviu, de maneira parcial, como ferramenta para a observação prática do processo de encobrimento que vivenciam as religiões de matriz africana na cidade de Goiânia. O presente levantamento de dados e fontes contribuiu, ademais, para o desvelar de formas negociáveis de manutenção da hierocracia católica e da prática de negativação semântica empreendida pelo segmento evangélico/neo-pentecostal contra as religiões de matriz africanas no Estado de Goiás, de uma maneira geral, e em Goiânia, de uma forma particular. Palavras-chave: religião, invisibilidade e encobrimento. Introdução Um dos segmentos que compõe as religiões de matriz africana, tais como a Umbanda e o Candomblé, marcou sua presença em Goiás a partir da década de 1970. Contudo, a partir do seu estabelecimento até os dias atuais, esse segmento religioso passou por um processo de invisibilidade, o que pode ser constatado por meio do total desconhecimento de grande parte da sociedade goiana a respeito da existência de templos umbandistas e candomblecistas, tanto na capital do estado quanto nas cidades do Aglomerado Urbano de Goiânia (AGLUG). Ainda, é possível notar que o dito processo de invisibilidade é continuado/legitimado pela própria comunidade das religiões de matriz africana, uma vez que as mesmas continuam por
2 denominar seus templos como centros espíritas, ocultando numa designação kardecista práticas religiosas completamente distintas e particulares. Na cidade de Goiânia é possível notar a existência de uma forte intolerância religiosa das comunidades evangélicas quando relacionadas às comunidades de matriz africana. Frequentemente os evangélicos lideram manifestações que expressam o desprezo pela Umbanda e pelo Candomblé, demonizando tais práticas e não aceitando a divisão do espaço público para diferentes expressões religiosas. Pode ser também observado, ainda no âmbito da configuração do espaço público, a predominância de Igrejas Católicas, tanto no que diz respeito à quantidade de instituições religiosas, quanto em face das localizações privilegiadas/centrais. Já as Igrejas de Matriz Africana, estão em menor número e localizadas em regiões periféricas da capital goiana. Materiais e Métodos Grande parte do material levantado para esse estudo foi coletado na Secretaria de Planejamento Municipal (Seplam). Dentre esse, inclui-se mapas que demonstram a configuração religiosa do espaço em Goiânia e uma listagem que consta o nome de igrejas das religiões católica, espírita e de matriz africana. Outros recursos utilizados foram entrevistas orais, micro-etnografias e reportagens de jornais locais. Nesse último caso, utilizou-se a Análise do Discurso (AD), que aliada à pesquisa e crítica bibliográfica, nortearam teórica e metodologicamente a presente pesquisa. Resultados e Discussões Apesar de existirem religiões de matriz africana na cidade de Goiânia, com presença marcada a partir da década de 1970, a maior parte da sociedade que vive nesta capital desconhece tal realidade. O fato pôde ser observado na ocasião em que fotos dos cultos de Umbanda e Candomblé em terreiros goianos foram divulgadas pela equipe do Projeto ABEREM- 1, causando a surpresa de diferentes interlocutores, os quais alegavam desconhecer a existência deste tipo de expressão religiosa em Goiânia. Contudo, por meio do estudo da listagem das igrejas do município apenas aquelas registradas na Seplam foi possível perceber a existência de pelo menos vinte e quatro terreiros situados em diversos bairros da capital goiana, sendo seis deles com denominações do segmento Candomblé de Ketu (ou Nagô). 1 Projeto ABEREM África no Brasil: estudos de comunidades, religiosidades e territórios. Coordenação Geral: Profa.Dra. Eliesse Scaramal UEG. 2006-2008. Financiamento: CNPq.
3 È possível observar que ocorre em Goiânia um processo de invisibilidade das religiões de matriz africana, processo este causado por dois agentes distintos: a) por meio de religiões que negam a sua legitimidade e b) por meio dos próprios componentes das comunidades religiosas de matriz africana que se auto-invizibilizam. A hipótese que norteia a presente problemática aponta para uma discussão já apresentada pelo estudioso pós-colonialista Enrique Dussel (1993), que enuncia o conceito de encobrimento do Outro no intuito de explicar a subalternização da cultura do colonizado pela cultura do colonizador no âmbito da dominação de países europeus na América dos séculos XV e XVI. Segundo o autor, o encobrimento ocorre a partir da dominação que torna este Outro um ser excluído de toda racionalidade e validade religiosa possível (Dussel, 1993: 65). No presente projeto de pesquisa, conjectura que religiões monoteístas de uma forma geral as religiões de matriz européia e de forma mais especifica as religiões evangélicas/neopentecostais, obedecem à lógica do encobrimento do Outro. Fato que pode ser corroborado posto que descartam a validade das religiões de matriz africana, as quais se apresentam como diversas e hibridizadas por práticas e logos africanos e americanos. Logo, por serem as religiões de matriz africana (ou afro-americanas) frutos de duas porções subalternizadas pela racionalidade eurocêntrica sofrem um encobrimento duplicado. Desta forma, a fim de exemplificar esta prática no contexto da cidade de Goiânia, remete-se ao episódio ocorrido no Parque Vaca Brava, em novembro de 2003, quando a exposição de esculturas dos orixás do artista baiano Tatti Moreno, exposição essa que foi inaugurada na capital goiana no dia da Consciência Negra e que permaneceu, não sem meio a conflitos religiosos, até o final do natal do mesmo ano. O que estava previsto para ser uma forma de divulgação e valorização da cultura africana, foi interpretado como uma afronta às demais religiões por grande parte dos evangélicos de Goiânia. Segundo o evangélico Misael Oliveira, em entrevista ao Jornal Diário da Manhã, aqueles monumentos estampam a figura do demônio 2 e nada representam para o cidadão goiano, este que não possui uma cultura de terreiro. Para Misael, as estátuas consistiam em uma provocação a evangélicos e católicos da capital. Desta forma, é possível notar a forma como certos religiosos impõem uma hegemonia das religiões de matriz européia, tornando a moderna cidade de Goiânia modernidade esta calcada no multiculturalismo pertencente em sua essência às referidas religiões hegemônicas (Scaramal, 2006). 2 Jornal Diário da Manhã, 20 de novembro de 2006, Fabiana Pulcineli, Goiânia/Go.
4 Desta forma, noções baseadas no determinismo, no essencialismo e no próprio darwinismo social são transportadas para o debate religioso. Na tentativa de justificar a hegemonia das religiões de matriz européia, o discurso da inferioridade racial se mistura com o discurso sobre a invalidade religiosa dos afro-descendentes. Para legitimar estes discursos, o grupo hegemônico lança mão da demonização, isto é, da negativação semântica das religiões de matriz africana. É o que se pode observar na fala da pastora da Igreja da Paz, Sandra Cardoso Miranda: Esses tipos de crenças vêm cooperar para dar abertura a influências demoníacas nas vidas das pessoas 3. Ainda, a pastora afirma que o posicionamento contra a exposição vem da necessidade de se proteger a cidade de influências espirituais negativas. Outra questão discutida a partir do evento ocorrido no Parque Vaca Brava foi a do espaço público como local de expressão religiosa. De acordo com os depoimentos colhidos pelo Jornal Diário da Manhã, alguns evangélicos reivindicam que o uso deste espaço seja democrático, ou seja, direcionados a todas as igrejas, alegando que muitas vezes lhe foram privados este direito. Já os representantes da Igreja Católica que foram entrevistados parecem compreender que o espaço público é utilizado por todas as vertentes religiosas. João Daiber, vigário-geral da Arquidiocese de Goiânia, se refere aos evangélicos com a seguinte pergunta: E os presépios? Todo Natal há esse tipo de imagem no parque e eles nunca se manifestaram contra 4, o que demonstra que esta reivindicação não pode ser vista de forma generalizada. A segunda maneira de invisibilidade das religiões de matriz africana, isto é, de encobrimento das mesmas, diz respeito à ação dos próprios componentes desta comunidade religiosa. Não apenas em Goiânia, mas também em outras cidades do país, a maioria dos Terreiros de Umbanda e Candomblé recebem a denominação de Centros Espíritas. Através dos registros do Seplam, foi possível enumerar alguns casos na capital, tais como: Centro Espírita Axé Yle Aganju e Boiadeiro José de Mina, Centro Espírita Cabana de Oxossi Abuquere Matan, Centro Espírita Caboclo Índio da Serra Negra, etc. Este fenômeno consiste na vinculação entre duas vertentes religiosas religiões Espíritas, Candomblé e Umbanda que são bastante distintas e particulares, criando a falsa idéia de que consistem em uma religião só. A problemática referente à denominação dos terreiros de Umbanda e Candomblé se une à questão da periferização dos mesmos. De acordo com alguns cartogramas elaborados pelo Seplam, o qual diz respeito à quantidade de Centros Espíritas segundo as regiões da cidade de Goiânia, de duzentos centros registrados, trinta e nove deles se encontram na região 3 Jornal Diário da Manhã, 22 de novembro de 2006, Sandra Cardoso Miranda, Goiânia/Go 4 Jornal Diário da Manhã, 21 de novembro de 2006, Ludmila Viana, Goiânia/Go
5 sul da cidade. Todavia, destes trinta e nove centros, apenas cinco foram identificados como Terreiros, dos quais três se localizam em áreas periféricas. Desta forma, é possível lançar as seguintes questões: Existem mesmo poucos terreiros em Goiânia ou a Seplam não realizou estes registros de forma suficiente? Se a última questão for positiva, este fato ocorreu devido a não realização de registros pelos donos de Terreiros ou pela falta de interesse do referido órgão da prefeitura? Afinal, a própria Seplam compreende as religiões de matriz africana como se fossem religiões espíritas. Sobre as duas formas de encobrimento assinaladas, é possível extrair alguns dados importantes da entrevista realizada com importantes figuras das religiões de matriz africana em Goiás. Nesta entrevista, ao serem questionados a respeito da maneira como denominam seus terreiros de Centro Espírita, uma grande polêmica foi gerada. Com a palavra, Elmo Alâburu Omolokô, Presidente do Conselho Sacerdotal da FUEGO (Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de Goiás) o qual explica que esta prática nasceu no período de ação da Santa Inquisição Católica que proibia a utilização de elementos africanos em cultos religiosos no Brasil. Inclusive, segundo o entrevistado, os cultos das religiões de matriz africana só podiam ocorrer em mesa kardecista. Sem contar o forte sincretismo religioso ocorrido com o catolicismo, também fruto da imposição inquisitorial. Conclusão Assim, faz-se necessário desvelar o motivo da perpetuação desta prática até a atualidade, mesmo após a lei de 1988 que assegura a liberdade de culto a todos os brasileiros. A partir dessa diretriz, pode-se perscrutar sobre as forma que as religiões de matriz africana sofreram um processo de encobrimento no século XV com a chegada dos europeus no continente africano e, durante a diáspora, sofreram o que denomino de re-encobrimento. Ou seja, encobrimentos sobrepostos que, pela alta carga de violência, reverberam até os dias atuais, permeando a mentalidade da sociedade brasileira. Portanto, o alcance da lei de 1988 é mínimo, o que contribuí para a ressignificação da necessidade dos Terreiros se autoencobrirem sob a denominação de Centros Espíritas, em um processo de negociação por sobrevivência. Ainda, é possível que a intolerância religiosa praticada pelas religiões de matriz européia sobre as religiões de matriz africana seja fruto do que os pós-colonialistas vão observar como sendo a importação de valores eurocêntricos que desconsideram a validade das
6 culturas híbridas locais. Seria desconsiderar o que Walter Mignolo (2003) chama de diferença colonial, a qual desloca o latino-americano da posição de mera continuação do europeu para enxergá-lo como possuidor de seu próprio lócus de enunciação, capaz de falar a partir de perspectivas subalternas. Finalmente, é preciso ressaltar que conhecer o que foi subalternizado é o primeiro passo para desatar as amarras da histórica subalternização de populações e logos marginalizados, com a possiblidade de promover a tolerância na construção de um mundo possível (alter-mundismo). Referências Bibliográficas 1. Bhabha, Homi.2003. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG 2. Dussel, Enrique.1993. 1492 O Encobrimento do Outro. Petrópolis: Vozes. 3. Bhabha, Homi.2003. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG. 4. Mignolo, Walter. 2004. Histórias Locais/Projetos Globais. Belo Horizonte: UFMG. 5. Omolokô, Elmo A. As Religiões de Matriz Africana em Goiânia. Aberem, Goiânia, 04 de jun. 2006. Entrevista concedida a Eliesse Scaramal. 6.Scaramal, Eliesse. Aberem: África no Brasil estudos de comunidades, religiosidades e territórios. CNPq, 2006.