Prâksis - Revista do ICHLA. Ricardo Postal 1

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Transcrição:

Prâksis - Revista do ICHLA Máscara e récita macunaímica Ricardo Postal 1 RESUMO Este trabalho analisa a prática poética de Mário de Andrade, perguntando-se sobre a maneira como ele elabora um fundo cultural amplo e forja-o numa imagem coesa, simbolizando, através da figura do Arlequim, todo o seu fazer estético. Para tanto, tratamos da prática do improviso, oriunda da Commedia dell Arte, pensando a relação entre os cantadores nordestinos, o coletor de estórias e os artistas saltimbancos italianos. Composto na forma de improviso, o romance torna-se récita mítica, feito para ser compartilhado em voz alta e pretende-se mantenedor de uma cultura a ser preservada e transmitida. A rapsódia expandese não só através dos retalhos da roupa do Arlequim, mas pelas circunstâncias de todo um pacto poético, coerente com o papel do artista na sociedade. Isso traz à luz várias culturas sem que haja sobreposição entre elas, apenas contatos e trocas. Palavras-chave: Mário de Andrade. Macunaíma. Arlequim. ABSTRACT This paper analyzes the poetical practice of Mário de Andrade, investigating the way through which he elaborates a wide cultural background and turns it into a cohesive image through the use of the Harlequin as a symbol of his aesthetic practice. In order to do that, we deal with the improvisation practice from Commedia dell Arte, thinking the relation between the Brazilian northeast troubadours, the story collector, and the Italian saltimbanco artists. Written in an improvised way for aloud reading, the novel becomes a mythical recital intended to preserve and transmit that culture. The rhapsody expands itself not only through the patches of the Harlequin outfit, but also through the circumstances of the whole poetic pact, coherent with the role of the artist in society. That brings to light various culture forms, allowing contact and exchanges between them, but no juxtapositions. Keywords: Mário de Andrade. Macunaima. Harlequin. 1 Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS. Professor Leitor na Universidade de Varsóvia - Polônia. 59

Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes Interpretar o Brasil soa sempre como uma gigantesca tarefa e o caminho para uma compreensão total é tortuoso, mesmo que invariavelmente seja pontuado por alegrias festivas. Correndo em paralelo aos ensaios que procuram solucionar o enigma da conformação e trajetória do que se nomeia brasilidade, existe todo um campo ficcional que propôs retratos da nação, alguns na crueza de como ela é, outros na delícia de como poderia, ou deveria ser. Uma constante da representação, ensaística ou de ficção é a exaltação da mistura que os povos aportados no Brasil harmonicamente constituíram, unindo o sangue e o mel, nem sempre o nome e o ouro dos povos em contato. Claro que não existe harmonia alguma nos contatos em que um termo sai vencedor e usurpa terra e cultura do outro. Os desníveis parecem ser solúveis, caso queiramos assim aceitar, pela docilidade, cordialidade, lassidez, vigor para o trabalho e outras características étnicas que ainda cabem ser discutidas. A questão da brasilidade em aspecto amplo continua a instigar tentativas de compreensão, já que, desde os romances de José de Alencar, bem como do instinto de nacionalidade de Machado de Assis, ficou-se com a sensação de que algo ocorreria posteriormente, de que alguém resolveria a equação baralhada do local versus universal a partir de uma chave de interpretação satisfatória. O objeto da questão não permite, porém, que uma única e sólida definição abarque o complexo de elementos envolvidos e a fluidez da matéria, já que se trata não só do dizer um país, mas procurar as características representativas fundamentais dentro de sua cultura. O magma cultural formado no Brasil, unindo mitologias, falares, costumes e práticas indígenas, africanos, europeus e asiáticos tornou os brasileiros intermediários entre uma caracterização e outra, não sendo estranho, portanto, que sejamos representados como sem nenhum caráter, uma vez que não é imediata a percepção de traços distintivos que nos digam categoricamente. Sobre essa condição fala Macunaíma, de Mário de Andrade, um romance que a princípio foi dito folclórico, e o adjetivo aqui conta muito, para depois obter seu atributo definitivo: rapsódia. Desta maneira o autor queria que ele fosse visto e tratado: como um canto contado, palavra viva enquanto escutada, lida em voz alta, apreciada em grupo, dependendo não somente dela em si, mas de seu instrumento. A rapsódia é uma forma livre de composição musical, uma peça característica, sem conteúdo programático. Assim ela está conceituada por Mário de Andrade no Dicionário Musical Brasileiro (ANDRADE, 1989). Sobre o rapsoda temos que ele é Aquele que recita ou canta histórias populares adaptando-as ao seu modo (p.427). Notem-se as diferenças entre o homem e sua obra: ele recita o populário a seu modo, adaptando-o ao bel prazer, ela, já vinda, é antes de tudo livre, alheia a programas e adestrações. Indômita, a canção assim brotada exige do cantor que lhe desamarre dos cordames vocais, deixando que ela flua intuitivamente através dele, num ritual de possessão poética em que o vate prediz palavras que para quem ouve são novas, porque estão arranjadas de maneira inaudita, sabendo os mais experientes reconhecer da fala ecos de antigas outras histórias tantas. Esse procedimento de costurar pedaços de tradição em arranjo improvisado e sempre novo permeia a história da humanidade, desde que um aedo decidiu variar seu tom e tornou-se rapsodo, cantando não mais a inteireza, mas a completude de múltiplos acréscimos. De uma linha longa, ele se irmana ao cantador nordestino que Câmara Cascudo assim elabora: O que é o Cantador? É o descendente do Aedo da Grécia, do rapsodo ambulante dos Helenos, do Glee-man anglo-saxão, dos Moganis e metris árabes, [...], das runoias da Finlândia, dos bardos armoricanos, dos escaldos da Escandinávia, dos menestréis, trovadores, mestres-cantadores da Idade Média. Canta ele, como há séculos, a história da região e a gesta rude do Homem. É a epea grega, [...] a gesta franca, a estória portuguesa, a xácara recordadora. É o registro, a memória viva, [...] a voz da multidão silenciosa, a presença do Passado, o vestígio das emoções anteriores, a História sonora e humilde dos que não têm história. É o testamento, o depoimento (CASCUDO, 2005, p.128). Por toda a parte, em todo tempo, o cantador 60

Prâksis - Revista do ICHLA é o guardião de uma memória que se esvai, de um passado não mais tangenciável senão através da rememoração de suas palavras. Essa memória viva é coletiva e possui certa especificidade no temário, ainda que através disso se abra para o arquetípico e universal. No aspecto de salvaguardar um universo cultural do esquecimento, não difere muito do etnógrafo que, no envolvimento de sua prática, coleta mitos das populações tradicionais, os anota nos cadernos e, ao prepará-los para divulgação, faz um arranjo e uma seleção, cotejando versões e imprimindo sentidos no que fluiu dos falares que observou. Caso o desejo do etnógrafo e de etnólogo de salvar costumes, entendendo através deles uma cultura, for traspassado pelo desejo poético de produzir uma mensagem que una beleza, leveza, clareza, sacrifício e ação num mesmo tom, e que revele magistralmente a gente que seria representada fugidiamente em qualquer esboço objetivo, teríamos uma obra de arte folclórica. Indo além, se a vontade fosse maior ainda, de adequar à matéria colhida uma maneira popular de dizê-la, conforme a possibilidade e o jeito da cultura descoberta, usaria o artista não do que já está disposto e bem conhecido, mas de algo novo e inesperado. Coerente com uma tendência do início do século XX, Mário de Andrade foi buscar na mitologia o caldo para ferver sua vontade poético-narrativa: O mitologismo é um fenômeno característico da literatura do século XX quer como procedimento artístico, quer como visão de mundo que dá respaldo a esse procedimento [...]. Este fenômeno floresceu indubitavelmente nos caminhos da transformação da forma clássica de romance e de certo abandono do realismo crítico tradicional do século XIX. [...] O tempo universal da história se converte em mundo atemporal do mito [...] O enfoque histórico-social determinava em grande medida a estrutura do romance do século XIX, razão por que o empenho em superar esses limites ou elevar-se acima desse nível só podia destruí-la decisivamente. O aumento, nesse sentido inevitável, da espontaneidade, da desorganização da matéria empírica viva como matéria social era compensado por recursos da simbólica, inclusive da mitológica. Assim, o mitologismo se tornou instrumento da estruturação da narrativa (MIELIETINSKI, 1987, p.350-352). Segundo esse crítico, em algumas literaturas, o mitologismo teria significados mais profundos e representaria um caminho para a pesquisa da cultura nacional: [...] isso concerne ainda mais aos atuais escritores latino-americanos ou afro-asiáticos, para quem as tradições mitológicas ainda são um subsolo vivo da consciência nacional e até mesmo a repetição constante dos mesmos motivos mitológicos simboliza, primordialmente, a estabilidade das tradições nacionais, do modelo vivo nacional. Entre eles, o mitologismo acarreta a superação dos limites puramente sociais, mas o plano histórico-social continua a conviver com o mitológico também em relações especiais de complementaridade (MIELIETINSKI, 1987, p.353-354). No caso de Macunaíma, temos um conjunto de mitos indígenas, colhidos por um etnólogo, Theodor Koch-Grümberg, que foram reelaborados por Mário de Andrade. A matéria tem por base os mitos, como salientado por Proença (1978) e Lopez (1988), mas esse conjunto de histórias foi alterado, acrescido de elementos de outras culturas e falares diversos que o tornaram um conjunto heterogêneo. Mário compartilha da atitude modernista que passa por uma arqueologia e descoberta fascinada do passado recôndito da imaginação, pondo em relevância tudo relacionado ao sonho, aos estados pré-lógicos e subconscientes. Os comportamentos primitivos, desviantes e alternativos ao mundo burguês se erguem como possibilidades divertidas aos artistas cansados da mentalidade ordeira vigente. O meio para isso é a constituição do objeto literário a partir de sua fatura all improviso, tomando-o como uma récita, como uma rapsódia enquanto contada em voz alta para um público que ali está para escutá-la. Dessa forma, ela se constitui mais próxima dos mitos nos quais bebeu sua fonte generativa e se lança num espaço espetacular que o tom da época 61

Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes propiciava: o ataque público às velhas instituições, a cara à tapa nos palcos, as vaias recebidas de rosto erguido. A vanguarda se fazia em gritos ainda no papel, reflexo dos desvairados dias da Semana. A composição seria, no caso de um espetáculo all improviso, feita a partir de todo o conhecimento que o ator/escritor tem e que vai costurando durante o processo mesmo da mise-en-scène. Seria estranho deixar de lado o fato de que Macunaíma foi composto no período de uma semana, a partir de notas e rememorações de todo um conteúdo mítico e literário que o autor tinha consigo a partir de suas leituras. Esse improvisar maduro sobre o material sedimentado na memória é obra de muito pensar ao colecionar e de saber encadear ao contar, como os cantadores que tanto o impressionaram na viagem ao nordeste pela sua espontaneidade e particularidade: Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida. Chico Antônio [...] Não sabe que vale uma dúzia de Carusos. Vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. [...] Os cocos se sucedem tirados pela voz firme dele. Às vezes o coro não consegue responder na hora o refrão curto. Chico Antônio pega o fio da embolada, passa pitos no pessoal e vira o coco. Com uma habilidade maravilhosa vai deformando a melodia em que está, quando a gente põe reparo é outra inteiramente, Chico Antônio virou o coco (Natal, 10 de janeiro de 1928) (ANDRADE, 1976, p.273). Instaura-se, seguindo sua primeira comoção, São Paulo, a segunda, a poesia popular em seu estado vivo, na expressão gestual, cantada e musical, na ginga volteada de corpo e voz. Essa união gera uma prática poética que, segundo nossa mirada, implica dizer algo além, pois, ao perpassar a ancestralidade do menestrel e ficar com a imagem de um Arlequim em ação, em cena, Mário torna a fala impura indissociável de seu falador. Artista e obra tornam-se uma mesma coisa, arlequinal é o artista, o canto e o cantar. Fatores que muito o intrigaram foram o da apropriação de cantos de outrem: e coco que ele cante se torna coco de Chico Antônio, apesar de muitos não serem da invenção dele, bem como as variações tonais, que são intencionais: O quartode-tom de que a música erudita não se utilizou na civilização européia, esse estou mesmo convencido que os nordestinos dão. [...] Não é cantar desafinado não. Cantam positivamente fora de tom e este fora de tom está sistematizado neles e é de todos (Natal, 20 de dezembro de 1927) (ANDRADE, 1976. p.239). O tomar a matéria diversa e transtorná-la em outra coisa, misturando, virando as palavras e tons vai ser um aprendizado definitivo, que se soma à imagem que já perseguia Mário de Andrade em suas poesias: a figura do Arlequim, O Arlequim é, dentro da Commedia dell Arte, uma das máscaras fixas, do grupo dos serviçais, simbolizando um tipo camponês rude que, ao vir para as grandes cidades, conseguiu empregos de pouca valia, como o de carregador. Para além da sua roupa losangular, é caracterizado por um apetite sem fim, tolice acentuada, caminhar claudicante, complexos malabarismos e uma verborragia constante. Era habitualmente o responsável pela distração do público durante os intervalos das peças, com sua verve afiada e seus ditos maliciosos. A presença do povo é uma constante na produção literária de Mário de Andrade, e nada mais coerente do que constituir como catalisador das mudanças uma personagem, o Arlequim, que na sua origem é a representação das classes baixas, humilhadas, mas que conseguem, através da ardilosa personalidade e da providência da sorte, se manter em cena. Com sua obra, Mário de Andrade procura, através de Macunaíma, tirando de nosso herói nacional a possibilidade de ter uma face unívoca, permitir que possa ele usar todas as máscaras à sua disposição para, de acordo com as situações, assumir suas diversas identidades. A proposta do escritor é provocativa, transformando a anulação num aumento de possibilidades e a flexibilidade (o jogo de cintura, a malandragem) em arma no circuito social. Portanto, o que vemos na obra de Mário de Andrade é uma tentativa de multiplicar-se em ação, dando conta de vários fenômenos ao mesmo tempo, para, assim, na sua prática, demonstrar como era possível fazer-se multívoco: apresentar-se não como indivíduo, mas como conjuntos, raças, multidões, massas díspares com formas, culturas e línguas 62

Prâksis - Revista do ICHLA diversas, que, juntas, em suas trocas cotidianas, faziam a miscelânea que atravessava a constituição da brasilidade, americanizava-se e ampliava-se para o novo mundo. Mas se o herói sem nenhum caráter não é criação sua, e sim apropriação da base mítica dos índios Tualipangues e Arekunás, faz-se necessário pensar esse processo mesmo de recomposição de material pré-existente através da mesma ótica arlequinal. A máscara é o solo assentado onde se ergue uma práxis, múltipla sim, mas unívoca, que evoca várias vozes quando o cantor as souber apresentar. A maneira ancestral de se contar um mito desapareceu para nós, mantendo-se somente nas sociedades tradicionais. Na sociedade letrada, as explicações para o mundo são todas no campo da ciência, portadora da verdade desde a revolução cartesiana, ficando o discurso literário em paralelo, contendo suas meias-verdades, suas fantasias perturbadoras do espírito. Se nos falta, em oposição ao homem arcaico (tradicional), a fogueira e o contador de histórias, fazendo da experiência da récita algo sagrado, temos no fruir artístico um dos poucos vínculos com a participação num fenômeno transcendente direto, visto que na religião, por exemplo, existem mediações que nos afastam do núcleo da experiência mesma. Tornar a escrita e a leitura uma experiência dramática, em que se escuta a voz presente de alguém conhecedor de estórias para nós estranhas no seu tramar é criar um híbrido. Essa forma intermediária joga com a não temporalidade, mesclando o passado tradicional e o futuro inaudito, bem como propõe uma utopia, pois tolhe qualquer geografia constituída ao desespacializar o que se conta e o lugar de onde escutamos. Preencher esse espaço que não é nem uma coisa nem outra, essa figura sem caráter é possível através da atuação intervalar do Arlequim, que, vindo do que recém esteve no palco, distrai e prepara o público para a cena seguinte, sem importar se nela estará ou não. Dessa forma, coaduna-se também na máscara uma característica do modernismo como vanguarda preparatória, instauradora de uma arte nova calcada no aproveitamento do passado, conforme comentários de Lopez (1996) e Berriel (2003). Já se disse, pela pena de Lafetá (1986), que a obra poética de Mário de Andrade teria facetas várias, abarcando uma divisão díspar que se concretiza através das máscaras do trovador arlequinal, do poeta aplicado, da diversidade em busca da unidade, da intimidade atormentada e do poeta político. Isso tomado a partir dos comentários de Antônio Candido (1942) sobre os aspectos da poesia de Mário: o poeta folclórico, o do cotidiano, o poeta de si mesmo e o do eu mais o mundo. Porém essas variações não são uma transformação, mas contêm em si apenas diferentes características de um todo coerente sob a égide da figura escolhida e tomada como guia da produção poética, o Arlequim. Se a modernidade se abre com o cosmopolitismo combativo, Arlequim o insinua pela multiplicidade e agitação constantes. A máscara em sua origem contém relações folclóricas tanto com o homem selvagem quanto com os demônios que assustavam o mundo rural europeu medieval, o que transfigura o poeta folclórico. Arlequim opera também uma representação política, visto ser um membro da classe baixa em confronto com os ricos e nobres (Pantaleone, Dottore etc.). Vemos assim que o escopo da figura abarca a simbolização imagética de Mário de Andrade, como enunciado por Lafetá (1986) e desenvolvido por Lopez (1972) e Knoll (1986). São várias e reiteradas as referências à máscara do Arlequim na obra de Mário de Andrade. Soa um tanto consensual que os losangos simbolizem, em sua multiplicidade de retalhos, o amálgama de raças, culturas e costumes que teriam formado o Brasil. Essa análise é coerente, mas, problematizando-a, perguntamo-nos se, para além da metáfora, na construção estética, o procedimento improvisado da prática do Arlequim em cena não se tornou componente estrutural da escrita andradiana. As características do cantador-arlequim se estendem pelos demais tentáculos da obra, como no coletor de músicas (a serem rememoradas pelo brincante que quiser ser contador de histórias); no missivista professoral, que deseja, com suas boas novas, iniciar os demais na arte modernista; no homem público que, à frente de institutos, quer manter um patrimônio e uma memória cultural a ser reelaborada, considerada e reaproveitada pelos cantadores futuros, em suma, no criador de um 63

Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes lastro cultural que fosse fonte de onde pudesse beber a arte do porvir, que então se abria a largos goles. O coletor e mantenedor de uma memória que será depósito vivo a ser reelaborado encontra na prática dos atores da Commedia dell Arte uma figuração, pela sua máscara mais intensa, do fazer poético e de um agir no mundo. Isso se dá porque o poder da palavra em Mário de Andrade é o da fala, para ele, a palavra não existe como coisa separada de uma ação, de uma anunciação. Macunaíma torna-se o intermediário entre formas, do romance ao não romance, sendo o ápice de uma experiência instigante de contar e de fazer literatura que cabe ainda com atenção escutar. Referências ANDRADE, Mário. Macunaíma. Herói sem nenhum caráter. Ed. crítica de Telê Ancona Lopez. Brasília: CNPq, 1988.. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976. BERRIEL, Carlos Eduardo. Mário de Andrade entre dois (ou três) futurismos. In: Brasil & Itália Vanguardas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989. CANDIDO, Antônio. Resenha sem título, publicada em Clima. São Paulo, janeiro de 1942, n. 8, p. 72-78. CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Global, 2005. KNOLL, Vitor. Paciente Arlequinada: Uma leitura da obra poética de Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec, 1983. LAFETÁ, João Luiz. Figurações da intimidade: Imagens na poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986. LOPEZ, Telê Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminhos. São Paulo: Duas Cidades, 1972.. Arlequim e modernidade. In:. Mariodeandradiando. São Paulo: Hucitec, 1996. MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. São Paulo: Forense-Universitária, 1987. PROENÇA, M. Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1978. 64