CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DA PRÁTICA CLÍNICA EM CURSOS DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA



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Transcrição:

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DA PRÁTICA CLÍNICA EM CURSOS DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Fabio Thá Psicólogo, psicanalista, doutor em estudos linguísticos pela UFPR, coordenador do curso de Psicologia da Faculdade Dom Bosco.

2 RESUMO Este texto tece algumas considerações sobre o ensino das práticas clínicas nos cursos de graduação em Psicologia. Analisa o contexto desse ensino em relação ao conhecimento prévio e à motivação dos alunos, para em seguida indagar se é possível ensinar uma prática clínica específica nos estágios profissionalizantes. Conclui considerando os limites desse ensino, propondo que ele se atenha ao desenvolvimento da atitude clínica. PALAVRAS-CHAVE: Clínica, psicoterapia, estágio curricular, supervisão.

3 Neste pequeno texto pretendo expor algumas considerações sobre o ensino das práticas clínicas nos cursos de graduação em Psicologia. Esclareço que são opiniões pessoais derivadas de minha experiência com o ensino da prática clínica para alunos da graduação e da pós-graduação e com grupos de supervisão em estágios de Psicologia clínica que tenho acompanhado já há alguns anos. Esclareço também que essas considerações provêm do ponto de vista que a Psicanálise proporciona da experiência clínica, não tendo, portanto, nenhuma pretensão de abrangência geral. Dividirei minhas considerações em três partes. Na primeira abordo algumas questões gerais sobre o ensino da psicologia clínica. Na segunda indago se é possível, dentro das limitações do ensino acadêmico, focar o trabalho sobre uma abordagem clínica específica. Finalmente discuto se é possível pensar no desenvolvimento de habilidades e competências gerais em relação à prática clínica, independentemente de uma abordagem específica. 1 CONTEXTO DO ENSINO DA PRÁTICA CLÍNICA NOS CURSOS DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O ensino de Práticas Clínicas nos cursos de Psicologia ocorre fundamentalmente nas atividades práticas, hoje denominadas estágio básico e estágio profissionalizante. Nos currículos verifica-se também a presença de disciplinas teóricas que enfocam diferentes abordagens clínicas. Evidentemente essas disciplinas restringem-se ao lado informativo, necessário até àqueles que não pretendem dedicar-se profissionalmente à clínica. A formação propriamente dita fica adstrita aos estágios. Os estagiários são acompanhados na atividade intitulada de supervisão, momento fundamental para o ensino das práticas clínicas. Em relação à supervisão, convém apontar algumas questões que me parecem fundamentais. Nem todos os estagiários pretendem seguir a prática clínica, estando muitas vezes já orientados para outras práticas. No caso desses alunos, é

4 evidente que seu compromisso com a aprendizagem da prática clínica será diferente daqueles que desejam segui-la profissionalmente ou têm alguma inclinação pessoal para ela. Além disso, mesmo considerando aqueles inclinados para a clínica, o nível teórico, motivacional e de engajamento com sua própria formação entre os alunos é muito heterogêneo. Como a supervisão é feita em grupos, essa diversidade de interesses cria um fator de heterogeneidade no interior do grupo, que impõe sérias limitações ao trabalho. A diversidade de bagagem teórica dos alunos é fator muito relevante, pois alguns frequentam cursos ou estágios fora da faculdade. Outros só têm as informações que receberam nas disciplinas do curso, que, convenhamos, são introdutórios, muito gerais e insuficientes para o trabalho prático. A combinação desses dois fatores de heterogeneidade, quanto aos interesses individuais e quanto à bagagem teórica anterior, tem como consequência enquadrar o trabalho da supervisão dentro de certos limites, confinando-o ao que poderíamos chamar o básico do básico. Ou seja, não me parece que se possa passar, ao longo do ano de trabalho, da discussão dos fundamentos da prática clínica. Isso gera duas questões: em primeiro lugar, é possível focar o trabalho clínico numa abordagem específica?; em segundo lugar, se a resposta for negativa, é possível pensar em fundamentos gerais da psicologia clínica, independentemente de suas abordagens teóricas e comuns a todas elas? 2 É POSSÍVEL ENSINAR CLÍNICA PSICANALÍTICA NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO? As considerações que passo a tecer a seguir têm como referência a Psicanálise, por ser meu campo de trabalho, mas acredito que possam ser aplicadas, com as devidas adaptações, a outras formas de abordagens psicológicas às práticas clínicas. Normalmente se aborda a formação em psicanálise em função de três aspectos fundamentais: a análise pessoal, a formação teórica e o controle (ou

5 supervisão) (FREUD, 1926/1976). Ela não objetiva necessariamente formar clínicos, mas particularmente os clínicos, pela responsabilidade que assumem, não podem se furtar a nenhum desses aspectos. A formação visa ao saber inconsciente, no sentido freudiano, o saber envolvido no conflito psíquico. Esse objetivo desdobra-se em três, diferenciados e inter-relacionados, explorados, por sua vez, em cada um dos três aspectos da formação: o saber sobre o próprio conflito, portanto um saber subjetivo e singular, baseado na análise pessoal, o saber teórico, na formação teórica, e o saber prático na supervisão. A análise pessoal é o aspecto fundamental da formação. É nela que se produz a certeza subjetiva advinda da experiência do próprio inconsciente. É dela que emana a convicção de que falar cura. É ela que produz a constatação da divisão subjetiva e da natureza conflituosa da subjetividade. Trata-se do saber do analisante, do trabalho do inconsciente, que fundamenta o edifício da psicanálise. Se a análise pessoal é absolutamente necessária para a formação do analista, ela não é, no entanto, suficiente. Fornece o essencial, a certeza subjetiva da experiência do inconsciente, mas permanece no terreno do estrito particular, no campo da experiência de uma análise. Dessa maneira, para que possa haver algum tipo de transmissão desse saber aprendido numa análise, para que ele possa servir para outros, é necessária uma formalização, ou seja, uma teorização. É aqui que entra o segundo pé da formação, o saber teórico. Esse saber, produzido sobre o material que a clínica deposita, não pode ser feito solitariamente, sem o debate com as teorias já existentes, dentro e fora da psicanálise. Além da experiência subjetiva e de um corpo de saber, a psicanálise também é uma prática. É o terceiro aspecto do tripé, que não se reduz aos dois outros e comporta um saber prático que é fundamentalmente de direção. A psicanálise, enquanto prática clínica, supõe uma escuta particular que visa ao inconsciente, e isso exige do praticante um saber fazer que diz respeito ao particular de cada caso ou de cada situação.

6 Essas três dimensões são fundamentais para a formação. Uma não pode substituir a outra e nenhuma pode ser excluída em favor de outra. Diante disso, a resposta à pergunta é possível ensinar clínica psicanalítica nos estágios supervisionados dos cursos de Psicologia? é absolutamente cristalina: não. Em primeiro lugar porque não se pode exigir que o aluno esteja em análise. Não existe análise por encomenda, muito menos por obrigação. Só se engaja numa análise quem tem um sofrimento subjetivo importante. Esta é uma variável que não nos cabe controlar. Em segundo lugar, o nível de exigência teórica da formação em psicanálise transcende em muito o que é possível ensinar na universidade, e mesmo fora dela, durante o curso, e não se pode exigir tal engajamento teórico dos alunos de quinto ano. Se faltam dois pés, o banquinho do analista cai. O problema é que o terceiro pé está presente, e a questão toda é como equilibrar-se nele com um pé só. Como abordar a prática clínica sem contar com as duas condições necessárias da experiência subjetiva de uma análise pessoal e de uma formação teórica sólida? 3 HAVERÁ UM FUNDAMENTO GERAL PARA A PSICOLOGIA CLÍNICA? Partamos do seguinte princípio: não há prática sem teoria. Todos sabemos que o mundo em que vivemos e com o qual nos relacionamos não é um mundo bruto, um fluxo contínuo e indeterminado de entes e eventos. Nosso mundo é categorizado: as coisas estão organizadas e distribuídas em relações específicas que modelam e determinam nossa relação com elas. Essas redes conceituais organizadas formam histórias, que chamamos de teorias ou sistemas de crenças, e, graças a elas, as coisas fazem sentido (TURNER, 1996). Tudo o que vemos e ouvimos, o que sentimos e experimentamos, adquire significado para nós graças às suas relações com nossos sistemas de crença. Quando agimos estamos respondendo aos estímulos que nos atingem, mas a estímulos que foram processados por nossos sistemas de crença e que, a partir deles, adquiriram determinada significação. Dessa maneira podemos dizer que respondemos a estímulos interpretados. Se por um lado essa interpretação tem um aspecto coletivo que todos os indivíduos de uma mesma cultura

7 compartilham, por outro lado tem um aspecto estritamente individual, que tem a ver com a singularidade da vida e das experiências de um indivíduo singular (THÁ, 2007). Nossos sistemas de crença são como a linguagem. Todos falamos a mesma língua, mas cada um de nós a fala de maneira peculiar, sublinhando traços fonológicos, sintáticos e semânticos que, embora pertençam ao conjunto de regras da língua, resultam numa encarnação individual e única dessa língua. Os lingüistas chamam esse fenômeno de idioleto. Assim como temos nossos idioletos lingüísticos, temos nossos idioletos de crenças, o que faz com que interpretemos o mundo e nos comportemos nele de maneira única e individual. Os sistemas de crença têm várias características, mas duas nos interessam particularmente. Por um lado são automáticos, o que significa dizer que agimos com base em interpretações que fazemos do mundo, que se processam automaticamente sem que tenhamos consciência delas. Essas interpretações são processadas por sistemas de crença preferenciais, forjados ao longo da vida e das experiências do sujeito e estruturados por uma determinada ordenação das crenças. Esses sistemas de crenças preferenciais fornecem os padrões de interpretação que utilizamos em nosso dia-a-dia (FREUD, 1914/1976). Por outro lado são inconscientes, ou seja, nem sempre o sistema de crenças que rege nossa ação coincide com o sistema que, no mesmo momento, tem acesso à consciência. Estamos conscientes de algumas idéias e, no entanto, são outras idéias, não conscientes, que determinam nossa ação. O dito popular faça o que eu digo mas não faça o que eu faço exprime essa divisão estrutural que o homem experimenta em sua vida subjetiva (LAKOFF e JOHNSON, 1999). Voltando aos nossos alunos, diante da demanda dos pacientes, eles são constrangidos a responder, a perguntar, a intervir. Que teoria eles estão utilizando naquele preciso momento para nortear suas intervenções? A da linha que eles escolheram? Ou suas teorias subjetivas, seus sistemas de crenças preferenciais? A diferença é muito grande, pois no primeiro caso teríamos uma prática profissional, enquanto que, no segundo, um encontro de amigos. Minha experiência mostra que devemos optar pela segunda alternativa. Há uma

8 diferença substancial entre o que eles de fato fazem quando estão atendendo um paciente e o que pensam que estão fazendo. Isso não é demérito, nem dos alunos, nem de sua formação acadêmica. Significa apenas que são iniciantes. Esse fato minimiza a heterogeneidade que eu apontava nos grupos, no início deste texto, pois de certa forma unifica o grupo. Mesmo aqueles que têm uma bagagem teórica um pouco mais consistente não agem a partir dela, embora a utilizem fartamente para interpretar o que fazem, por vezes de forma bastante precipitada. Por essa razão eu penso que a tarefa primordial da supervisão do estágio clínico não deve pautar-se pela teoria, psicanalítica no caso, mas sim no desenvolvimento do que chamarei de atitude clínica. Freud referia-se a ela quando dizia que devemos, a cada caso, começar tudo de novo, como se fôsse o primeiro (FREUD, 1912/1976). A atitude clínica não é senão uma das formas da atitude mais geral que o homem de ciência deve ter com os sistemas de crença, não somente com relação às crenças dos outros, mas principalmente em relação às suas próprias. Significa adotar uma atitude crítica e não dogmática em relação às suas convicções e eleger a realidade como principal parceira do diálogo. Na clínica essa realidade é a fala dos pacientes, que manifesta seus próprios sistemas de crença, único material que deve estar em pauta na entrevista. Desenvolver essa atitude é uma tarefa que tem dois aspectos simultâneos. O primeiro deles consiste em perceber desde onde se intervém, que crenças estão determinando a escuta e as observações do praticante. Trata-se de explicitar a teoria que inconscientemente rege as decisões práticas. O segundo consiste em dirigir a atenção à escuta do material que o paciente traz, tal e como ele o traz. Trata-se de escutá-lo isentando-se de interpretações pré-concebidas, aguardando que o próprio material forneça as relações entre suas crenças preferenciais, determinando o sentido do que se escuta. Em resumo, penso que a supervisão dos estágios clínicos nos cursos de psicologia não se faz exatamente na abordagem da psicanálise, quando esse é o caso. Em todo caso não para os alunos. Psicanálise, aqui, nomeia apenas a orientação teórica do supervisor. Mas é conveniente que ele silencie um pouco

9 sua teoria, que deixe isso para depois. Nesse espaço da formação dos alunos, muito mais importante que aprender conceitos teóricos é aprender e desenvolver a atitude clínica, o que, aliás, é bem mais complicado e exigente que aprender teoria. Exige a competência de pôr em suspenso suas próprias convicções e a habilidade de escutar as palavras do outro, sem confundi-las com as suas próprias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Freud, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1912/1976.. Recordar, repetir e elaborar. In: ESB, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago. 1914/1976.. A questão da análise leiga. In: ESB, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago. 1926/1976. LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh. The embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999. TURNER, M. The literary mind. The origins of thought and language. New York: Oxford University Press, 1996. THÁ, F. Categorias conceituais da subjetividade. São Paulo: Annablume, 2007.