GENTE VENDENDO GENTE: IMPLICAÇÕES POLÍTICO-SOCIAIS DESSE CRIME NO BRASIL



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Transcrição:

GENTE VENDENDO GENTE: IMPLICAÇÕES POLÍTICO-SOCIAIS DESSE Texto CRIME para NO Discussão BRASIL GENTE VENDENDO GENTE: IMPLICAÇÕES POLÍTICO-SOCIAIS DESSE CRIME NO BRASIL Priscila Siqueira* Artigo recebido em 25/05/2011 Artigo aprovado 10/10/2011 A Organização das Nações Unidas- ONU, considera o tráfico de pessoas como o pior e mais degradante crime contra os Direitos inalienáveis da Pessoas Humana. Isso porque a pessoa traficada perde sua característica ontológica de SER, para ser tratada e considerada uma simples mercadoria, uma coisa a ser comercializada. Para a ONU, não há Nações inocentes no mundo em relação a esse crime: ou ela compra ou vende criaturas humanas. Assim sendo, a ONU também admite que o Tráfico de Pessoas - TP, é um crime de proporções mundiais que de uma forma ou outra, atinge todos os países de nosso globo terrestre, seja ele um ofertante de gente para o tráfico ou um demandador ou comprador de pessoas para suas diversas modalidades : trabalho escravo, tráfico de órgãos e tecidos, adoção ilegal e a exploração sexual comercial. A professora Maria Lúcia Leal, da Universidade de Brasília, costuma dizer que a rota do tráfico de pessoas é a mesma que a rota do dinheiro, isto é, oriunda das regiões pobres para as regiões ricas do planeta. Tanto faz se essa rota se dá entre países diferentes ou entre regiões de um mesmo país. Fica evidente que não se pode pensar no enfrentamento a esse crime repugnante, como se fosse unicamente uma questão policial. O TP é somente a ponta de um ice-berg imenso que se constitui na sociedade mundial que vivemos. Para explicar melhor nosso ponto de vista, aproveitamos do conceito usado pelo antropólogo Darci Ribeiro, quando remete ao processo civilizatório em que o mundo atual vive, centrado numa globalização que concentra * É Jornalista e trabalha ativamente no enfrentamento do tráfico de crianças e mulheres para fins de exploração sexual. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 11, p. 165-170, outubro/2011 165

SIQUEIRA, P. a riqueza nas mãos de poucos em poucas nações e exclui uma parcela imensa de pessoas na sociedade mundial da chance de uma vida digna. Um processo civilizatório que privilegia o lucro e não, a pessoa humana. O desastre ambiental denominado Katrina que atingiu o sul dos Estados Unidos, em 2005, durante o Governo Bush, mostrou o estado de pobreza e desolação em que vivia a população negra e mais pobre desse país que é considerado a nação mais rica do planeta. A concentração de riqueza em um determinado país não garante que todos seus habitantes tenham condições dignas de vida. A existência de bolsões de pobreza nos países desenvolvidos é um fato fácil de ser observado. Entretanto, além do modelo de globalização existente em nosso planeta, a complexidade do tema envolve outras causas políticas como a migração - já que o TP é um tipo de migração- a discriminação de raça e de etnia, a discriminação de gênero,que se traduzem na exploração laboral ou sexual, escravidão,crime organizado transacional, entre outros. No que diz respeito à migração- fenômeno mundial em nosso mundo globalizado- a professora da Universidade de Salvador, Mary Castro que representa o Brasil na Organização Mundial de Migrações afirma que vivemos uma época de muros. A queda do Muro de Berlim foi considerada uma vitória da democracia mundial. Entretanto o que dizer sobre o muro levantado na divisa entre Estados Unidos e México, erguido em nome do enfrentamento ao TP e construído com mão de obra mexicana, provavelmente não documentada? E os muros erguidos na Cisjordânia apesar do veto da ONU?...Ou mesmo, o muro entre as duas Coréias?!... Na realidade, o que se pretende é evitar a migração, principalmente de populações mais pobres para os territórios mais ricos o que é feito em nome do combate ao TP. A discriminação baseada em Gênero é uma razão contundente para explicar por que mulheres e meninas constituem a maioria das pessoas traficadas, principalmente para a exploração sexual comercial. A discriminação baseada em gênero é devida ao status inferior da mulher, à falta de instrução das meninas, à expectativa das mulheres para executar determinados papéis sociais e para ser a única responsável por sua criança e à discriminação contra as mulheres na participação política e social. Pode-se argumentar que hoje, pela primeira vez em nossa História, temos uma presidenta no Governo do Brasil. Tal dado seria significativo para demonstrar como o gênero feminino galgou postos significativos em nosso País e a situação da mulher apresenta atualmente outra realidade. Infelizmente, para contrapor o fato de uma mulher ter sido eleita como chefe do Governo Brasileiro, o Data SUS de abril de 2110, demonstrava que a cada 15 segundos uma mulher é agredida no território nacional e dez mulheres são mortas diariamente no país, geralmente por seus companheiros ou e companheiros.a violência doméstica é ainda uma chaga em nossa sociedade. Não é, então, o gênero feminino extremamente vulnerável às promessas de uma via melhor que lhe fazem os aliciadores e traficantes? No Brasil a discriminação étnica e racial incide de forma perversa sobre os afro-descedentes. Libertados no final do século XIX, forme conforme o sociólogo Florestan Fernandes, nenhuma instituição seja o Estado, seja a Igreja, importou- com o destino daqueles que foram mandados embora do local contra viviam e trabalhavam, sem ter para onde ir, sem indenização apesar dos quatrocentos anos de trabalho em que construíram a nação brasileira. Deixados à sua própria sorte, seus descendentes constituem a grande maioria da população pobre brasileira. Brasil No que diz respeito ao TP no panorama mundial, o Brasil tem um papel bastante complexo. Ocupando um território de 8 511.965 quilômetros quadrados, o Brasil é um país de proporções continentais, sendo o maior da América Latina. Somos um país exportador da mercadoria GENTE para a exploração sexual comercial, para a venda de órgãos e tecidos, para o trabalho em condições de escravidão, tanto no tráfico como no contrabando de pessoas. Por outro lado, também somos um país demandador de mão de obra escrava de países 166 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 11, p. 165-170, outubro/2011

GENTE VENDENDO GENTE: IMPLICAÇÕES POLÍTICO-SOCIAIS DESSE CRIME NO BRASIL como a Bolívia, Peru, Paraguai ou Coréia para a indústria de confecção de roupas localizada em São Paulo, que é liderada pelos coreanos. Existem registros policiais de importação de jovens mulheres coreanas para atender sexualmente a elite econômica desses industriais. Além disso, há o tráfico de pessoas entre as fronteiras secas do país, que é imensa e de difícil fiscalização. Somos um país de trânsito, pois muitas pessoas, especialmente mulheres e adolescentes do gênero feminino, provenientes de outros países latino- americanos, passam um período no Brasil, até conseguirem ser enviadas para principalmente para a Europa. Finalmente- vergonha nacional- temos o tráfico interno de pessoas que recai principalmente sobre as crianças. No livro Meninas da Noite, do escritor e jornalista Gilberto Dimenstein, relatou a vida nos garimpos de Serra Pelada no norte do Brasil, onde abundavam os casos e exploração sexual de adolescentes e meninas traficadas. Para analisarmos a situação do Brasil nesse contexto mundial, teremos de nos reportar à sua história para compreender como uma nação considerada a sétima potência mundial, é capaz de, ao mesmo tempo, ser tida como a maior exportadora de jovens mulheres, adolescentes e crianças do gênero feminino nas Américas, para a exploração sexual comercial nos países ricos do Primeiro Mundo. Nesse sentido, nosso destino está ligado ao de toda América Latina. O tripé em que se baseou nossa colonização se fundamentou nos interesses da matriz, na escravidão e no latifúndio. De certa forma, esses parâmetros permanecem até agora 500 anos após a descoberta da América. Os interesses que movem nossa economia continuam sendo os externos e não os de nossa população; temos um grande índice de trabalho em condições à escravidão; até hoje não realizamos em território nacional uma reforma agrária que dê condições de vida melhor a milhões de brasileiros. Por outro lado, temos de ressaltar que a vinda de Dom João VI para o Brasil, em 1808, foi fundamental para garantir a unificação do Brasil mesmo tendo um território de proporções continentais. Na atualidade temos uma das piores divisões de riqueza em nível mundial. Quando Fernando Henrique Cardoso deixou o Governo em 2002, havia no Brasil- segundo o IBGE, 52 milhões de brasileiros vivendo com um dólar ou menos de um dólar /dia. Essa população é chamada eufemisticamente como pertencente a uma faixa abaixo da pobreza.na realidade, essa população de miseráveis- maior que a encontrada em muitos países como Espanha e Itália, por exemplo, era constituída e,m 70% por mulheres e seus filhos de menos de 14 anos. O que essas mulheres e seus filhos têm a vender para poderem sobreviver, que não seus próprios corpos? Atualmente, a cifra de miseráveis no Brasil caiu pra 30 milhões de pessoas, graças à abertura de novas frentes de trabalho. Porém o índice em relação às mulheres e crianças, continua o mesmo: constituem-se na gritante maioria. Mudou-se o governo mas a realidade concernente às mulheres e crianças, permanece a mesma... Esses dados nos mostram que a discriminação de gênero somente reafirma a feminização da pobreza em nosso país. A escravidão não é alheia à história brasileira. Fomos o último país nas Américas a libertar os escravos negros, no final do século XIX, em 1988. Além disso, houve um intenso tráfico de mulheres para os bordeis de Brasil, assim como para a Argentina e Uruguai no final do século XIX e no começo do século passado. Essa mulheres eram originárias de países do Leste Europeu, judias que eram dadas em casamento por suas famílias para outros judeus, esses faziam parte da associação Zwig Migdal, nada mais que um grupo mafioso que trazia as mulheres, via Paris para as cidades da América Latina que começavam a crescer. Tais mulheres, conhecidas como as polacas ou francesas foram enviadas para a prostituição forçada nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires. O Brasil tem a perspectiva de se tornar a quinta potência mundial nessa década do século XXI. Porém o que preocupa os estudiosos de visão humanitária que se debruçam sobre o assunto, é que tal crescimento econômico naco se dê em cima do agro-negócio que devaste a Amazônia Brasileira e o Pantanal, com o uso do trabalho Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 11, p. 165-170, outubro/2011 167

SIQUEIRA, P. escravo e pífia divisão interna de riqueza. As perspectivas de tal cenário só promoverão ainda mais, condições favoráveis para que o Brasil continue a ser um ofertante de gente para o TP. Pesquisas Em julho de 2003, foi publicada a primeira pesquisa sobre TP no Brasil pelo Centro de Referência e Estudos sobre Crianças e Adolescentes CECRIA, uma ONG ligada à Universidade de Brasília. As responsáveis pela pesquisa, professoras Maria Lúcia Leal e Maria de Fátima Leal, coordenaram diversas equipes espalhadas pelo país que pela primeira vez fizeram um levantamento através de notícias da mídia e boletins de ocorrências policiais sobre o tráfico de mulheres, adolescentes e meninas para a exploração sexual comercial. Na ocasião, foram detectadas 241 rotas internas e para o exterior. Deve-se entender que essas rotas são dinâmicas com surgimento e fim delas muito rápidos. Conforme a Pestraf, o principal destino das mulheres brasileiras traficadas internacionalmente é a Espanha. As pesquisas de mídia da Pestraf indicaram que a organização criminosa Conexão Ibérica é a principal responsável pelo envio de pessoas àquele país. Diversas outras organizações criminosas, como a máfia russa, compõem a Conexão Ibérica, indicando a força da organização. Lisboa funcionaria como porta de entrada para os outros países europeus. A pesquisa identificou ainda que o perfil das vítimas do TP para exploração sexual comercial, é o de mulheres, maioria adultas, havendo casos envolvendo crianças e adolescentes, com faixa etária variando de 15 a 27 anos. Essas pessoas são na maioria provenientes de classes populares, possuem baixa escolaridade, habitam espaços urbanos periféricos com carência de saneamento e transporte, moram com algum familiar, têm filhos e exercem atividades laborais de baixa renda. Muitas delas são afro-descendentes. Outro estudo, realizado no aeroporto internacional de Guarulhos em São Paulo, (Indício de Tráfico de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que regressam ao Brasil via aeroporto de Guarulhos- Ministério da Justiça, Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo e UNDOC,2005), revelou que Portugal foi o país europeu que mais deportou brasileiras. O estudo, realizado entre março e abril de 2005, teve a participação de 175 mulheres que responderam ao questionário e fizeram 15 entrevistas. Do total, 76% não foram aceitas nos países de destino. Portugal foi o país que mais recusou a entrada de brasileiras, sendo seguido respectivamente pela Itália, França, Espanha e Inglaterra. O que se observa por testemunhos de mulheres que viajaram a países como Portugal, Espanha ou Itália é que a brasileira é sempre tida como uma possível prostituta. Outra pesquisa realizada em três países- Brasil, Suriname e República Dominicana detectou diversas rotas de tráfico de jovens mulheres e adolescentes vindas da região amazônica e levada por Boa Vista Amapá, até o Suriname. O mesmo ocorre com mulheres da República Dominicana que vão parar no Suriname. Muitas desses jovens são depois enviadas para a Europa, através da Holanda. Enfrentamento Em 2003, o Governo brasileiro ratificou em 2003 o Protocolo para Prevenir, reprimir e punir o Tráfico de Pessoas, especialmente os de Mulheres e crianças, suplementar à Convenção contra o Crime Organizado Transacional, conhecido como Protocolo de Palermo.A partir daí, iniciou-se seu comprometimento em implementar uma legislação de combate ao TP, além do compromisso de criar Políticas Públicas de enfretamento ao TP. Em 2005, foi aprovada a lei que configura como crime o tráfico interno de pessoas, considerada um grande passo na luta contra o crime.ainda nesse mesmo ano, o Ministério da Justiça, por meio da apde Políticas para as Mulheres e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, ambas da Presidência da República formaram um grupo de trabalho no âmbito do Poder Executivo federal para elaboração inicial de 168 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 11, p. 165-170, outubro/2011

GENTE VENDENDO GENTE: IMPLICAÇÕES POLÍTICO-SOCIAIS DESSE CRIME NO BRASIL uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Sua proposta inicial foi debatida por representantes de diversos Ministérios, além do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho, juntamente com representantes da sociedade civil. Assim, em 26 de outubro de 2006, foi provada a Política Nacional de Enfrentamento ao TP, pelo Decreto Presidencial número 5.948. O documento está estruturado em três grandes eixos estratégicos: Prevenção; 2-Repressão ao TP e responsabilização de seus autores; 3-Atenção à vítima. Esse documento estabelece um conjunto de diretrizes, princípios e ações norteadores da atuação do Poder Público na área do enfrentamento ao TP. Em 2008, foi publicado o primeiro Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas- PNETP, com medidas práticas e concretas a serem tomadas por um período de dois anos, concretizando os princípios teóricos da Política. Esse Plano, cujo prazo previsto de término se deu em fevereiro de 2010, está sendo avaliado na sua implementação, através dos diversos Ministérios envolvidos. A criação de comitês e núcleos de enfrentamento ao TP em diversas regiões do Brasil, vem se tornado uma ferramenta eficaz nessa luta. O estado de São Paulo- o mais populoso no país- tem o Comitê Paulista de Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos, instalado na Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, formando um colegiado de representantes do governo, das diversas polícias, Ministérios Público e do Trabalho, sindicatos e organizações da sociedade civil. Vários outros comitês regionais já estão atuando no interior do estado no enfrentamento ao crime. Quem se comprometeu nessa luta sabe da sua complexidade. O TP é conseqüência de multi-fatores que se combinam perversamente. Para enfrentá-lo temos de ter a paciência, perseverança e tenacidade que nunca poderão nos abandonar. Como o crime organizado, também nós, que com ele nos indignamos, temos de nos articular e organizar. Sozinhos, não iremos a lugar algum. Daí, a importância de um encontro como o que agora estamos vivendo. Usando uma figura bem feminina, comparo o sistema em eu ora vivemos a um prato de sopa quente que temos de dar a uma criança. Se pusermos a colher no meio do prato, a criança queima a língua. Temos de dar a ela a sopa retirada das bordas do prato. Assim também nós, contra o sistema capitalista onde tudo é mercadoria até mesmo as pessoas humanas, temos de comer pelas bordas. Bordas do trabalho de prevenção, sensibilização da sociedade e das pessoas mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, temos de lutar por relações humanas- internacionais ou não- mais justas e igualitárias. Faço minhas as palavras de Darcy Ribeiro quando diz, que temos de lutar para fazer as mulheres e os homens mais livres e mais responsáveis no mundo de abundância, estimulando sua capacidade criadora e fazendo da pessoa humana a norma e o fim do processo de humanização. Referências 1-Ribeiro Darcy- Processo Civilizatório- Etapas da evolução sociocultual. COMPANHIA das LETRAS, 1997 2-Siqueira Priscila- Tráfico de Mulheres- Oferta, Demanda e Impunidade Serviço à Mulher Marginalizada, 2004 3-Aliança Global contra o Tráfico de Pessoas- GAATW Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas: um manual 4-Sales, Lilia Maia de Morais-organizadora A Cidadania em Debate, o tráfico de seres humanosuniversidade de Fortaleza- UNIFOR, 2006 5-PESTRAF- Pesquisa sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para exploração sexual comercial no Brasil- Centro de Referência e Estudos a da Criança e Adolescente- CECRIA-2003 6-Pesquisas em Tráfico de Pessoas parte 1 - Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Organização Internacional do Trabalho OIT, 2004 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 11, p. 165-170, outubro/2011 169

SIQUEIRA, P. 7-Pesquisas em Tráfico de Pessoas parte 2 - Secretaria Nacional de Justiça do Ministério de Justiça e Organização Internacional do Trabalho- OIT, 2005 8-Política nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Ministério da Justiça, 2006 9-Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Ministério da Justiça, 2008 170 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 11, p. 165-170, outubro/2011