O P INIÃO 1. INTRODUÇÃO Nas sociedades ocidentais contemporâneas, o culto à magreza está diretamente associado à imagem de poder, beleza e mobilidade social num contexto contraditório e paradoxal: por um lado, fomentam-se os lucros das indústrias de alimentos hipercalóricos via incentivo ao consumo e, simultaneamente, cobra-se magreza e sujeição a um ideal estético cada vez mais difícil de atingir. Nesse cenário, não surpreende o aumento expressivo da prevalência de obesidade já reconhecida como questão de saúde coletiva convivendo com o crescimento acentuado de transtornos do comportamento alimentar (TCA), bem como de seus precursores: comportamentos alimentares anormais e práticas inadequadas de controle de peso. Ambos os problemas podem ser entendidos como expressões no nível biológico, corpóreo, de disputas mercadológicas que se estabelecem no plano social de um lado a indústria dos fast foods e de outro a indústria da magreza (e da beleza), ambas movimentando lucros fabulosos para diversos grupos econômicos. O ideal de corpo magro (e perfeito), preconizado pela nossa sociedade e veiculado pelos meios de comunicação, impõe-se como necessidade social, atravessando, hoje, todas as classes e segmentos. No Brasil, o problema atinge, sobretudo, a população feminina adolescente e jovem adulta que, por diversos aspectos que não cabe aqui recuperar, adere às falsas crenças que acompanham a busca do corpo ideal, em especial, à idéia de que o corpo é infinitamente maleável, podendo, assim, alcançar o ideal estético. Negligencia-se, portanto, o que a literatura científica denomina setting point e que restringe as possibilidades de intervir na forma corporal segundo o desejo. 1 Professora Adjunta do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva - NESC/UFRJ email: malubosi@nesc.ufrj.br 2 Centro de Ciências da Saúde - Universidade de Fortaleza email: angelaandrade@uol.com.br C ADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE JANEIRO, 12 (2): 197-202, 2004 197
MARIA LUCIA DE MAGALHÃES BOSI, ÂNGELA ANDRADE Essa busca desenfreada pelo corpo perfeito considerada uma epidemia silenciosa que se intensifica a partir da década de 70 conduz à adoção dos chamados comportamentos alimentares anormais e práticas inadequadas de controle de peso, sendo os mais comuns: por um lado, os vômitos auto-induzidos, o uso de laxantes, jejuns prolongados, diuréticos e anorexígenos associados, muitas vezes, à prática excessiva de exercícios físicos, dietas muito restritivas e/ou fórmulas emagrecedoras e, no outro extremo, a perda do controle sobre a ingestão, associada ou não a práticas compensatórias. Essas práticas e comportamentos, além de acarretarem um amplo espectro de complicações orgânicas e psíquicas (sobretudo em uma fase de alto metabolismo), são os principais fatores de risco para o desenvolvimento dos chamados Transtornos do Comportamento Alimentar (TCA). 2. A MAGNITUDE DO PROBLEMA Também denominados distúrbios alimentares, os TCA são definidos como desvios do comportamento alimentar que podem levar à morte, estimando-se, em certos casos, uma taxa de letalidade que pode atingir a cifra de 20% (Nunes, 1997). Corresponde basicamente aos diagnósticos de anorexia nervosa, bulimia nervosa e, dependendo da classificação utilizada, aos transtornos alimentares não específicos, incluindo-se nesta última classificação diagnóstica o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP). A literatura científica ressalta o aumento da prevalência da anorexia e da bulimia nervosa nos últimos anos. Conforme já assinalado, a literatura aponta um franco predomínio no sexo feminino, embora estudos recentes já constatem uma diminuição na distância entre os gêneros. Em comum, as pessoas acometidas apresentam preocupação excessiva com peso e dieta, insatisfação e distorção da imagem corporal e desejo de emagrecer. Os transtornos alimentares têm início, em geral, na adolescência. Uma vez instalados, esses quadros são muito resistentes à tratamento, o que reforça a necessidade de intervenções de caráter preventivo voltadas, sobretudo, para os grupos de maior risco. Também o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) configura-se como um quadro preocupante na população, uma vez que se articula estreitamente com a obesidade, reconhecidamente um 198 CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE JANEIRO, 12 (2): 197-202, 2004
T RANSTORNOS DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR: UM PROBLEMA DE SAÚDE COLETIVA problema de Saúde Pública na população adulta brasileira. Sugere-se que 30% dos pacientes obesos e, em geral, os que apresentam quadros mais graves, caracterizados como obesidade mórbida, apresentam transtorno do comer compulsivo (Appolinario et al., 1995), o que reforça a relevância do tema como questão de Saúde Coletiva. As estatísticas apontam que, nos últimos 10 anos, vem ocorrendo o crescimento vertiginoso destes problemas de saúde nos países da América Latina, observando-se coeficientes de prevalência e incidência superiores aos dos EUA. A literatura latinoamericana aponta a crescente morbi-mortalidade relacionada a este distúrbio nos centros de tratamento em seus países. No Brasil, estima-se que entre 19% a 26% das estudantes secundaristas do sexo feminino referem sintomas bulímicos e/ou comportamentos alimentares restritivos (Cordás, et al., 1998; Dunker & Philippi, 2003; Vale, 2002). O único estudo de base populacional, realizado em Pelotas (RS), em uma amostra da população feminina, aponta uma prevalência de 13,8% para a prática de comportamentos alimentares anormais, configurando o desenvolvimento de síndromes parciais, 30,2% para comportamentos de risco e 11,3% para comportamentos alimentares francamente anormais, os quais se enquadram nos critérios diagnósticos para transtornos alimentares (Nunes, 1997). No que se refere aos grandes centros e, em particular, às cidades próximas ao litoral brasileiro, pensamos que, dada as suas particularidades culturais e seu imaginário vinculado à beleza metrópoles que ditam comportamentos e modismos e onde o culto ao corpo estrutura seu cotidiano o estudo da problemática parece-nos urgente para delinear um panorama mais representativo. A permanente exposição do corpo imposta pelo modo de vida local funciona como estímulo constante à busca do corpo ideal entenda-se, aquele que atende à imagem veiculada pela mídia a serviço da chamada indústria da beleza. Contudo, são raros os estudos que dimensionam o problema na população sob risco, tanto em base populacional como estudos institucionais. As poucas evidências procedem de estudos clínicos, cujas características não permitem análises epidemiológicas que auxiliem a compreensão dos determinantes e que propiciem comparações com outros contextos sociais e orientem intervenções. C ADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE JANEIRO, 12 (2): 197-202, 2004 199
M ARIA LUCIA DE MAGALHÃES BOSI, ÂNGELA ANDRADE 3. TCA E SEUS PRECURSORES: INTERFACES COM A SAÚDE COLETIVA No âmbito da Saúde Coletiva, cabe ressaltar, sobretudo, a existência de síndromes parciais os comportamentos precursores já descritos e que, conforme já dito, devem constituir o foco das ações, uma vez que suas prevalências são bem superiores às das patologias instaladas. A diversidade e severidade dos sintomas relacionados às diferentes modalidades de transtornos alimentares associadas à ausência de intervenções preventivas e à quase inexistência de serviços especializados no manejo interdisciplinar geram demandas importantes no cotidiano dos serviços de saúde, acarretada, sobretudo, pela duplicação de atendimentos, abandono de tratamento e cronificação dos agravos. Tais distorções acabam gerando gastos desnecessários com ações freqüentemente ineficazes, uma vez que os efeitos são tomados como causas, tratados de forma isolada pelas diferentes especialidades. Negligenciam-se, assim, os elementos simbólicos e o entorno social que respondem por sua gênese e reprodução, dimensão que exige um olhar capaz de articular o biológico com o social. Desta forma, as diversas alterações no comportamento alimentar aqui referidas e as práticas inadequadas de controle de peso constituem, hoje, não apenas um quadro relevante no plano clínico-individual, mas, conforme procuramos ressaltar, uma realidade emergente como questão de Saúde Coletiva. Casos são sub-diagnosticados e, conseqüentemente, sub-notificados, pela falta generalizada de informações e de programas de formação profissional nesta área. Sendo assim, não causa surpresa o fato de as políticas de Saúde Pública no Brasil desconhecerem a magnitude deste problema na população. Os dados que nos chegam através de fontes diversas (por exemplo: organizações autônomas de sociedade que se organizam para lidar com este agravo Comedores Compulsivos Anônimos ; Vigilantes do peso etc.), ao que parece, justificam a iniciativa da Organização Mundial da Saúde em reconhecer que a intensidade e a incidência do problema têm levado a que se o considere como epidemia do século. Entretanto, mais do que as evidências corroborando a gravidade do problema, preocupa-nos o silêncio as lacunas existentes tanto nas estatísticas disponíveis quanto nos modelos teóricos que não dão conta 200 CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE JANEIRO, 12 (2): 197-202, 2004
T RANSTORNOS DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR: UM PROBLEMA DE SAÚDE COLETIVA da gravidade, tampouco da complexidade dos quadros, uma vez que suas etiologias permanecem como um enigma, embora já se saiba que múltiplas causas, genéticas, sócio-culturais e psicológicas, contribuem para sua gênese. Ambos aspectos se expressam no plano das estruturas assistenciais, dentre elas as próprias instituições formadoras, onde não se dispõe de centros especializados de atenção que sirvam de referência para a população, expressando uma lacuna no currículo dos cursos da área da saúde, nos quais se inserem conteúdos técnicos capazes de habilitar equipes para o complexo manejo do problema, sobretudo em termos preventivos e para a investigação nas diferentes áreas do conhecimento envolvidas na questão. Configura-se, portanto, um contexto que justifica a reflexão que ora apresentamos, cujas respostas visam retroalimentar os serviços, o ensino e a formação de pesquisadores voltados à apreensão deste importante problema nutricional-alimentar. Além disso, há que sensibilizar, também, as autoridades de saúde, os profissionais e a sociedade para a existência do problema em foco, cujos desdobramentos, de modo idêntico a outros agravos já reconhecidos como questão de Saúde Coletiva, comprometem a saúde e, em muitos casos, a sobrevivência dos grupos populacionais acometidos. Novos desafios se apresentam neste início de século e urge que o discurso da Saúde Coletiva se atualize em consonância com os problemas emergentes. R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPOLINARIO, J. C.; COUTINHO, W.; PÓVOA, L. C. O transtorno do comer compulsivo: revisão de literatura. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 44, Sup., p. 38-40, 1995. CORDÁS, T. A.; Cobelo, A.; FLEITLICH, B.; Guimarães, D. S. B.; Schomer, E. Anorexia e bulimia: o que são? Como ajudar? Um guia de orientação para pais e familiares. Porto Alegre: Art. Méd, 1998. DUNKER, K. L. L.; PHILIPPI, S. T. Hábitos e comportamentos alimentares de adolescents com sintomas de anorexia nervosa. Revista de Nutrição, v. 16, n. 1, p. 51-60, 2003. C ADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE JANEIRO, 12 (2): 197-202, 2004 201
M ARIA LUCIA DE MAGALHÃES BOSI, ÂNGELA ANDRADE NUNES, M. A. A. Prevalência de comportamentos alimentares anormais e práticas inadequadas de controle de peso em mulheres de 12 a 29 anos em Porto Alegre.1997. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pelotas, Porto Alegre. VALE, A. M. O. Comportamento alimentar anormal e prática inadequada para controle de peso entre adolescentes do sexo feminino de escolas públicas e privadas de Fortaleza. 2002. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. 202 CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO DE JANEIRO, 12 (2): 197-202, 2004