O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty



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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (eds CDD: 142.7 O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty MARCUS SACRINI A. FERRAZ Departamento de Filosofia Universidade de São Paulo SÃO PAULO, SP sacrini@usp. br Resumo: De início, analisamos como a associação entre realismo metafísico e relatividade conceitual deixa em aberto a possibilidade de uma dúvida cética radical acerca do conhecimento da realidade. Em seguida, avaliamos se os projetos fenomenológicos de Husserl e de Merleau-Ponty fornecem alguma resposta a tal dúvida. Centramo-nos principalmente na obra de Merleau-Ponty, que, segundo nossa interpretação, caracteriza-se inicialmente por uma postura idealista, a qual é abandonada em prol de um tipo de realismo que qualifica o ser como sensível. Palavras-chave: Realismo. Idealismo. Fenomenologia. Ceticismo. 1. Realismo metafísico e ceticismo O realismo metafísico afirma que a realidade é independente de nossa atividade mental. Os eventos e coisas constituintes do universo existem, conforme tal doutrina, sem nada dever à consciência que deles possamos ter. Essa tese metafísica estaria associada, segundo H. Putnam em Realismo, Verdade e História, a outros posicionamentos filosóficos, tais como a doutrina da verdade por correspondência e a assunção de que há exatamente uma descrição completa e verdadeira do mundo 1. Desse modo, o realismo metafísico estaria comprometido com um tipo de absolutismo epistêmico, ou seja, com a postulação de uma linguagem ideal 2 1 Cf. PUTNAM, 1981, p. 49. 2 PUTNAM, 1982, p. 575.

8 Marcus Sacrini A. Ferraz capaz de exprimir o conjunto de sentenças verdadeiras que descrevem a estrutura única do mundo. Hartry Field, ao resenhar o livro de Putnam, dissocia tais teses, de modo a explicitar que o realismo metafísico é compatível com uma certa relatividade conceitual. Os conceitos que usamos para descrever o mundo não são inevitáveis: seres diferentes de nós poderiam usar predicados cujas extensões são diferentes de qualquer coisa facilmente definível em nossa língua 3, argumenta o autor. Quer dizer que o realista metafísico não está comprometido com uma descrição ideal da realidade ou com uma única teoria correta do mundo. Conforme Hartry Field, um mundo único e independente da mente é o bastante 4 para definir a posição realista. E. Sosa, em um artigo sobre Putnam, explora de maneira bastante profícua a associação entre realismo metafísico e relatividade conceitual. Sosa distingue entre aquilo que é relativo a um esquema conceitual e aquilo que existe em virtude de um esquema conceitual 5. O realista metafísico é alguém que pode afirmar, contrariamente ao que Putnam parece crer, que toda referência ao mundo é sempre relativa a um esquema conceitual. No entanto, esse reconhecimento da relatividade da referência ao mundo não abala a tese da independência da realidade. Afinal, o realista não admite que o mundo exista em virtude de esquemas conceituais. As palavras, as expressões e as teorias por meio das quais se tenta compreender o que é o mundo existem em virtude dos esquemas conceituais, mas não o próprio mundo ao qual nos referimos por esses diferentes instrumentos lingüísticos; o mundo existe independentemente do instrumental pelo qual os sujeitos a ele se dirigem. Sosa reconhece alguns problemas gerados por sua distinção. Se qualquer referência ao mundo é relativa a um esquema conceitual, assim 3 FIELD, 1982, p. 553. 4 FIELD, 1982, p. 553. 5 Cf. SOSA, 1993, p. 621.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 9 também é a própria afirmação da independência da realidade 6. E se mesmo a afirmação de que há uma realidade autônoma depende de esquemas conceituais, então pouco se avança na caracterização dessa realidade tal como ela é em si mesmo. Uma vez que qualquer descrição do mundo é relativa conceitualmente, parece que nada é conhecido em sua natureza própria (isto é, como um evento ou coisa verdadeiramente independente da mente humana), mas somente como fenômenos filtrados por nossos esquemas conceituais. Parece, assim, que a defesa realista da independência do mundo implica um ceticismo epistemológico radical. Tal como nos esclarece Kate McGowan, uma vez que a estrutura do mundo é inteiramente independente de nós, mesmo uma teoria ideal pode ser falsa de acordo com o realismo metafísico. Assim, nenhuma quantidade de sucesso teórico ou preditivo é evidência suficiente de verdade 7. É compatível com o realismo metafísico a tese de que talvez nossos esquemas conceituais não sejam suficientemente refinados para apreender as estruturas objetivas do real. Segue-se daí uma posição cética que torna o realismo alvo de críticas: pode-se argumentar contra o realista metafísico com base em que pressupor, em primeiro lugar, um mundo objetivo, mas por fim incognoscível, não tem valor 8. Se não se pode garantir que os esquemas conceituais descrevam algo independente do seu próprio funcionamento, de que vale afirmar uma realidade autônoma em relação aos sujeitos? Será que não haveria uma estratégia diferente para a afirmação de um real independente, estratégia que, mesmo sem comprometer o realismo com o absolutismo epistêmico, caracterize minimamente a realidade mundana para além de um algo quiçá incognoscível em si mesmo? Vamos buscar no itinerário filosófico de Merleau-Ponty uma resposta a essa questão. A fim de cumprir tal tema, nosso artigo seguirá a seguinte 6 Cf. SOSA, 1993, p. 624. 7 McGOWAN, p. 17. 8 McGOWAN, p. 17.

10 Marcus Sacrini A. Ferraz estrutura: na segunda seção, apresentamos como a filosofia de Husserl se posiciona ante o realismo metafísico. Na terceira seção, analisamos como em suas primeiras obras Merleau-Ponty tem dificuldades para conceber uma realidade independente dos sujeitos humanos. Na quarta seção, acompanhamos como em seus cursos sobre a natureza Merleau-Ponty elabora uma nova abordagem ontológica e propõe o enraizamento genético das habilidades perceptivas humanas no próprio mundo. Na quinta e última seção, avaliamos os resultados dessa abordagem em relação ao problema do ceticismo radical associado ao realismo metafísico. 2. O projeto da fenomenologia husserliana Acompanhemos brevemente como o problema do realismo aparece na filosofia transcendental de Husserl, cujo legado alimenta consideravelmente a reflexão de Merleau-Ponty. Ao menos desde 1907, com A Idéia da Fenomenologia, Husserl apresenta a redução fenomenológica como o principal expediente pelo qual é possível circunscrever uma esfera de pura evidência, na qual o conhecimento em geral deve ser fundado. Trata-se, para realizar tal redução, de excluir, de pôr entre parênteses tudo aquilo que transcende os dados evidentes (tal como, por exemplo, a afirmação de que existem realidades que não se manifestam), de maneira a limitar a investigação à esfera do puro aparecer fenomenal. Toda vivência intelectual e toda vivência em geral, no momento em que se realiza, pode se tornar o objeto de uma visão e de uma apreensão puras, e nessa visão ele é um dado absoluto 9, acredita Husserl. Assim, ao estudar as vivências reduzidas (ou seja, ao se excluir as suposições, comumente a elas associadas, de que derivam de um mundo objetivo ou de um organismo submetido à causalidade, por exemplo), é possível se dedicar a uma esfera de dados assimilados em plena evidência. 9 HUSSERL, 1973, p. 31.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 11 Esclareçamos que a esfera dos dados absolutos, das vivências em geral, não se confunde com a interioridade psíquica. É na atitude ou orientação natural (prévia à redução fenomenológica) que o campo das vivências é concebido como uma parte real da consciência e oposto a um mundo exterior. A questão epistemológica que surge com a interpretação natural da experiência é a seguinte: como a vivência cognitiva pode sair da interioridade e atingir aquilo que é transcendente? Vigora aqui uma oposição ontológica entre imanência (a interioridade psíquica) e transcendência (o que é exterior à consciência). A entrada em cena da redução fenomenológica reformula essa oposição ao explicitar uma noção epistêmica de imanência e transcendência 10. O transcendente passa a ser aquilo que é não-evidente, não intuitivamente dado (por exemplo, a afirmação de uma realidade independente dos sujeitos). A ele se opõe a imanência concebida como esfera da presença em pessoa, da evidência imediata. A questão epistemológica nessa nova interpretação da experiência passa a ser: como o conhecimento pode pôr como existente algo que não é direta e verdadeiramente dado nele 11? Aqui, abandona-se o problema de saber como duas esferas separadas podem se comunicar. O conhecimento não surge da junção de uma interioridade com o mundo exterior, mas da paulatina constituição de noções que explicam os eventos mundanos (mesmo aqueles inobserváveis) com base naquilo que se apresenta de maneira evidente à subjetividade. Para Husserl, os dois sentidos de imanência e transcendência estavam erroneamente misturados na tradição filosófica. Assim, ao se perguntar pela existência do mundo como transcendência, comumente os filósofos supunham que o único dado evidente disponível eram os momentos contidos efetivamente na vivência cognitiva, quer dizer, as representações da interioridade psicológica. Aqui a questão do acesso evidente ao mundo era interpretada conforme a tese ontológica que cinde interiori- 10 Cf. HUSSERL, 1973, p. 35. 11 HUSSERL, 1973, p. 35.

12 Marcus Sacrini A. Ferraz dade psíquica e mundo exterior. Como conseqüência, a investigação filosófica se limitava a analisar dados da consciência, e o acesso a qualquer exterioridade mental era tachado de não evidente. A redução fenomenológica permite corrigir esse erro funesto 12. Husserl inclui os fenômenos do mundo, os modos de doação dos objetos, na esfera da presença em carne e osso. Segue-se daí que a redução fenomenológica não significa a limitação da pesquisa à esfera da imanência efetiva, à esfera do que está incluído efetivamente no isso absoluto da cogitatio; ela não significa de nenhum modo uma limitação à esfera da cogitatio, mas a limitação à esfera dos puros dados em pessoa 13. Desse modo a fenomenologia pode se dedicar não somente a eventos psíquicos, mas à rede de fenômenos evidentes pelos quais o mundo aparece no campo reduzido. Por exemplo, quando um sujeito observa um cubo, apreende duas ou três faces desse objeto com evidência. Desse modo, o cubo, tomado como coisa que se manifesta para a subjetividade, é um tema da fenomenologia. Da mesma forma, todos os componentes do mundo podem ser estudados pela fenomenologia, uma vez que ela os considere como dados evidentes para a subjetividade. Husserl acentua que o estudo fenomenológico não se limita a listar diferentes fenômenos que se doam com evidência, mas almeja a essência dos diferentes tipos de vivências passíveis de ser experimentadas. Tratase não de estabelecer como dado não importa quais fenômenos, mas de tornar inteligível a essência da presença e o constituir-se dos diversos modos de objetos 14, afirma o filósofo. E o primeiro conhecimento eidético formulado pela fenomenologia é que todo ato de pensamento se relaciona com um objeto intencional (visado de tal ou tal maneira segundo o seu tipo essencial), e vice versa 15. Manifesta-se aqui o que Husserl posteriormente denominará a priori da correlação, ou seja, o fato de que no campo 12 HUSSERL, 1973, p. 36. 13 HUSSERL, 1973, p. 60. 14 HUSSERL, 1973, p. 73. 15 Cf. HUSSERL, 1973, P. 73.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 13 fenomenológico todo dado fenomenal corresponde a um ato de consciência e de que todo ato sempre se refere a um dado. Esse princípio direciona o progresso da fenomenologia. Por um lado, é necessário esclarecer os diversos atos subjetivos pelos quais a experiência ocorre, e, por outro, importa elucidar como os diversos fenômenos experimentados constituem, em um longo processo, a noção de objeto independente da própria vivência subjetiva 16. Vemos assim que a fenomenologia não se limita a uma análise de estados mentais. Trata-se, na verdade, de estudar os fenômenos do mundo, os quais são subjetivos, pois sempre remetem às experiências de um sujeito, mas não são interiores à consciência, meras representações psíquicas. Qual a posição da fenomenologia husserliana em relação à problemática do realismo metafísico exposta na seção anterior? Husserl descreve o mundo tomado como referente não somente a nossos esquemas conceituais mas a nossos esquemas gerais de intuição e de apreensão de dados (por exemplo, percepção, intuição de essência, insight matemático, etc.) O mundo fenomenológico é composto pelos modos de doação dos objetos em correlação com os atos de consciência. Daí que a investigação fenomenológica partilhe do idealismo transcendental. A fenomenologia se mantém no estrito registro subjetivo e não formula asserções sobre o mundo independente das correlações intencionais. Mas isso não quer dizer que Husserl rejeite o realismo metafísico. Na verdade, o filósofo reconhece, ao lado da investigação fenomenológica, a atitude ou orientação que afirma a existência do mundo independentemente dos seus modos de doação, ou seja, independentemente da maneira como o mundo é apreendido pela subjetividade. Trata-se da atitude natural, aquela partilhada pelo senso comum e pela ciência, os quais espontaneamente admitem a existência do mundo como independente da subjetividade. De fato, como sugerimos acima, a atitude ou orientação fenomenológica surge como uma modificação da atitude natural: trata-se de excluir a validade da ou pôr entre parênteses a 16 Cf. HUSSERL, 1973, p. 75.

14 Marcus Sacrini A. Ferraz crença na existência autônoma do mundo e se dedicar a estudar o puro aparecer fenomenal. Importa notar que Husserl reconhece uma orientação do pensamento em que o realismo metafísico é plenamente justificado. Quer dizer que não se trata para a fenomenologia de refutar a posição realista, mas somente de circunscrever um território em que suas teses deixam de valer, a fim de propor uma análise alternativa ao problema do conhecimento. Essa convivência entre a atitude fenomenológica e a natural é atestada por alguns textos de Husserl. O filósofo por exemplo sustenta que de uma árvore, pode-se enunciar que ela queima, mas uma árvore percebida enquanto tal não pode queimar 17. Aqui, Husserl deixa bem marcada a diferença entre fenômeno e coisa pura e simples. Afirmar que um fenômeno pode queimar é um contrasenso; pois então se exige do que é um componente de uma pura percepção, que só é pensável como momento da essencialidade própria de um sujeito egológico, o que só tem sentido para um corpo de madeira: queimar 18. Vê-se aqui que Husserl não pretende destruir a posição realista, mas somente marcar sua diferença com a posição fenomenológica transcendental. As coisas puras e simples são as coisas tomadas como submetidas a processos independentes de qualquer relação com a subjetividade. Não são as coisas assim concebidas o tema da fenomenologia, mas sim as coisas como fenômenos manifestados para a subjetividade. Desse modo, a distinção de Sosa parece valer para a obra husserliana. Husserl admite o reconhecimento (na atitude natural) de um mundo puro e simples, que não existe em virtude de nenhum esquema conceitual ou intuitivo. Porém, na investigação fenomenológica, o filósofo assume que toda referência ao mundo é relativa ao campo de fenômenos da consciência. Qual a relação entre o mundo fenomenológico e o mundo puro e simples da atitude natural? Certamente Husserl não defende haver dois mundos distintos, mas sim o mesmo mundo considerado em duas orien- 17 HUSSERL, 1962, 70, p. 245. 18 HUSSERL, 1962, 70, p. 245.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 15 tações diversas. No entanto, o problema cético erigido em relação aos esquemas conceituais parece ressurgir aqui. No caso dos esquemas conceituais, não havia nenhuma garantia de que esses pudessem de fato apreender a realidade do mundo: talvez os esquemas conceituais não sejam suficientemente refinados, talvez eles sempre distorçam a apreensão dos dados em função de limitações subjetivas, etc. De maneira análoga, pode-se questionar se as capacidades intuitivas de assimilação de dados descritas pela fenomenologia husserliana são eficientes para apreender a complexidade do mundo puro e simples, e se elas não distorcem as características desse último. Qual garantia há de que o mundo fenomenológico é tal como o mundo puro e simples e não um véu subjetivo que na verdade impede a apreensão direta da realidade tal como ela é em si mesma? O problema cético que assombrava a assunção da relatividade conceitual pelo realismo metafísico ainda se mantém presente mesmo se se inclui nessa relatividade não só os conceitos mas todas as capacidades intuitivas da subjetividade. 3. O idealismo ontológico do jovem Merleau-Ponty Acompanhemos a partir de agora parte do itinerário filosófico de Merleau-Ponty, a fim de explicitar uma resposta à dúvida cética radical acerca do acesso à realidade. Merleau-Ponty adota explicitamente o método fenomenológico em seu livro Fenomenologia da Percepção, publicado em 1945. Ali, tal como na obra husserliana, é proposta a anulação da crença em um mundo objetivo anterior e independente da subjetividade, em favor da investigação do campo fenomenal 19. No entanto, não se trata mais de estudar os atos de pensamento e seus objetos. Nosso fim constante é evidenciar a função primordial pela qual nós fazemos existir para nós, assumimos o espaço, o objeto ou o instrumento, e descrever o corpo como lugar dessa apropriação 20, expõe Merleau-Ponty sua meta. 19 Cf. MERLEAU-PONTY, 1997, p. 40, 73. 20 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 180.

16 Marcus Sacrini A. Ferraz Interessa ao autor desvelar de que maneira as funções perceptivo-motoras são responsáveis pela ordenação da experiência. Em todo caso, Merleau- Ponty mantém a delimitação subjetiva da investigação, ou seja, mantém a consideração do mundo sempre em referência às capacidades do sujeito. O filósofo chega mesmo a admitir que o ser no único sentido que a palavra possa ter para mim, é o ser para mim 21. Merleau-Ponty reconhece, tal como Husserl, que a fenomenologia é o estudo da aparição do ser à consciência 22. Isso não significa que Merleau-Ponty se limita a estudar dados psicológicos (assim como já não significava para Husserl), como se a aparição do ser se reduzisse a conteúdos da interioridade mental. No entanto, a posição de Merleau-Ponty quanto a esse ponto será bem mais forte que aquela de Husserl. O filósofo alemão se contenta em assumir que os fenômenos dos eventos mundanos se manifestam com evidência (assim como as vivências da interioridade psíquica), e são, ipso facto, incluídas na esfera da investigação fenomenológica. Delimita-se, assim, o mundo fenomenológico, cuja diferença com o mundo tal como concebido na atitude natural (o qual existe sem nada dever às estruturas intuitivas da subjetividade) é acentuada por Husserl, como vimos há pouco. Já Merleau-Ponty praticamente apaga a diferença entre mundo fenomenológico e mundo puro e simples. O filósofo francês admite que a fenomenologia trata da aparição do ser, dos fenômenos em correlação não mais com os poderes de um ego transcendental e sim do corpo. Porém, a sua concepção do ser do mundo altera o significado dessa admissão. Segundo o autor, não se trata de nos limitar aos fenômenos, de fechar a consciência em seus próprios estados, reservando a possibilidade de um outro ser para além do ser aparente, nem de tratar nosso pensamento como um fato entre os fatos, mas de definir o ser como aquilo que nos aparece e a consciência como fato universal 23. 21 MERLEAU-PONTY, 1997, p. III. 22 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 74. 23 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 455.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 17 Esse trecho veicula a tese de que o ser do mundo se identifica com o aparecer fenomenal. Assim, aquilo que é não se distingue daquilo que aparece fenomenalmente. Quer dizer que a fenomenologia, ao estudar a aparição do ser, estuda, na verdade, aquilo que define o próprio ser, a saber, a manifestação fenomênica para os poderes perceptivo-motores do corpo. Aqui Merleau-Ponty se afasta consideravelmente de Husserl. O filósofo alemão havia circunscrito o campo dos puros fenômenos como uma alternativa epistemológica à oposição tradicional entre a interioridade mental e o mundo exterior. Por sua vez, Merleau-Ponty fornece uma interpretação ontológica desse campo fenomenal, de maneira a tomá-lo como aquilo que esgota a própria extensão do ser (uma vez que este último é identificado àquilo que se manifesta sensivelmente). Dessa maneira, para Merleau-Ponty, o mundo é somente aquilo descrito pela fenomenologia, aquilo que se mostra à percepção humana. Não há ao lado desse mundo fenomênico um mundo tal como concebido pela atitude natural, um mundo independente da subjetividade. A atitude natural, que para Husserl permanece uma postura paralela à atitude fenomenológica, é dissolvida por Merleau-Ponty, e se apresenta, no máximo, como uma tardia abstração da experiência fenomenal, como veremos a seguir. Merleau-Ponty defende explicitamente no curso A Passividade que só há o mundo percebido, (...) exatamente aquilo que se oferece à minha percepção (...) posto como o próprio ser 24. Assim, àquilo que aparece fenomenalmente se deve dar o estatuto de ser no único sentido que essa palavra pode ter, ser-para-nós. Essa tese desqualifica a posição de um mundo em-si independente de sua manifestação perceptiva 25. Tal desqualificação já aparece na Fenomenologia da Percepção, em que Merleau-Ponty de- 24 MERLEAU-PONTY, 2003, p. 166. 25 O que a Fenomenologia da Percepção já admitia, à sua maneira: há um primeiro dogmatismo, do qual a análise reflexiva nos desembaraça, e que consiste em afirmar que o objeto é em-si ou absolutamente sem se perguntar o que ele é (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 236).

18 Marcus Sacrini A. Ferraz fende: não há mundo sem uma Existência que lhe traga a estrutura 26. Pode-se aqui objetar que a história do universo em muito precede a do ser humano, e que, assim, ao menos em um certo nível se deveria admitir a independência do mundo em relação à subjetividade. Merleau-Ponty fornece a seguinte análise dessa objeção: quer-se dizer por exemplo que a Terra surgiu de uma nebulosa que não seria vista por ninguém 27. O fenomenólogo se refere à famosa hipótese lançada por Laplace segundo a qual o Sol e os planetas de seu sistema teriam se originado de uma nebulosa formada por um núcleo extremamente condensado e quente. Merleau-Ponty continua: mas cada uma dessas palavras como cada uma das equações da física pressupõe nossa experiência pré-científica do mundo e essa referência ao mundo vivido contribui para constituir sua significação válida 28. Quer dizer que é impossível conceber o que é uma nebulosa que não seria vista por ninguém. Segue a conclusão: a nebulosa de Laplace não está atrás de nós, em nossa origem, mas à nossa frente, no mundo cultural 29. A conclusão de Merleau-Ponty parece bastante insuficiente. Será que ele se refere somente à teoria de Laplace? Mas afirmar que uma teoria é um ente cultural seria uma tese trivial. Será então que Merleau-Ponty inclui em sua conclusão o referente dessa teoria, a saber, a própria nebulosa? Está ela também somente no mundo cultural? Trata-se de uma tese difícil de aceitar. No curso A Passividade Merleau-Ponty tenta esclarecer sua posição. A nebulosa de Laplace. Nós dissemos: ela está no mundo cultural, não na Natureza, i. e., no em-si absoluto 30. Quer dizer que a intenção de Merleau-Ponty era acentuar que um mundo em-si, sem referência ao quadro perceptivo de uma subjetividade, é inconcebível: o 26 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 494. 27 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 494. 28 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 494. 29 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 494. 30 MERLEAU-PONTY, 2003, p. 172.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 19 homem jamais poderá pensar uma natureza sem o homem, e finalmente (...) o em-si puro é um mito 31. Dada essa impossibilidade de conceber qualquer ser fora da referência ao ser percebido, os entes ou eventos que supostamente ultrapassam as capacidades perceptivas corporais (seja porque ocorreram num passado longínquo seja porque são microscópicos, etc.) devem ser concebidos como construções culturais, isto é, como uma elaboração teórica sobre a base da experiência sensível imediata. Ora, parece-nos aqui haver um problema oposto àquele do realismo metafísico. Vimos que esse último sustenta que o mundo existe independentemente da subjetividade, mas sofre para relacionar o mundo assim concebido com os esquemas conceituais, de maneira a abrir o flanco para um ceticismo epistêmico radical. Já Merleau-Ponty limita sua investigação aos dados fornecidos pelos esquemas perceptivos, por assim dizer. Porém, uma vez que identifica tais dados com a totalidade do ser, o filósofo tem dificuldade para admitir que há um mundo independente da subjetividade. Essa dificuldade se expõe de modo mais claro se retomamos a distinção de Sosa. Merleau-Ponty parece indicar que mesmo a menção à nebulosa de Laplace (e a qualquer outro evento do mundo) só ocorre em referência a nossos esquemas conceituais e perceptivos. No entanto, ponderamos, isso não significa que a nebulosa exista em virtude desses esquemas e que, por isso, deva ser classificada como ente cultural. O realismo, por exemplo, admite a existência autônoma da nebulosa em relação à vida perceptiva humana, o que a posição de Merleau-Ponty nos anos quarenta não consegue captar. Parece, assim, que esse filósofo se filia a um tipo de idealismo subjetivista, ou seja, à tese de que o ser do mundo deve se conformar de modo exato àquilo que a subjetividade pode apreender sensivelmente. O que quer que exista no mundo existe somente em conformidade com as capacidades perceptivas. Será exatamente como tentativa de apreender a existência de uma realidade independente dos sujeitos que Merleau-Ponty desenvolve em seus últimos anos uma 31 MERLEAU-PONTY, 2003, p. 172.

20 Marcus Sacrini A. Ferraz postura realista, a qual fornece uma resposta inovadora à dúvida cética radical. 4. Rumo ao realismo metafísico No resumo do primeiro dos três cursos ministrados por Merleau- Ponty sobre a natureza, lê-se a seguinte afirmação: se nós não nos resignamos a dizer que um mundo de onde seriam retiradas as consciências não é nada, que uma Natureza sem testemunhos não teria sido e não seria, nos é necessário de algum modo reconhecer o ser primordial que não é ainda o ser sujeito nem o ser objeto, e que desconcerta a reflexão em todos os sentidos 32. É visível a renovação teórica do posicionamento filosófico de Merleau-Ponty. Contrariamente ao que defendia na Fenomenologia da Percepção, o autor agora reconhece como primordial um ser que excede até mesmo aquilo que se doa para a consciência e que, mesmo sem estar correlacionado com os poderes da subjetividade, não se reduz a nada. O ser deixa, assim, de se identificar ao ser-pra-mim, eis o que há de desconcertante nessa nova formulação do problema ontológico. Trata-se agora de descrever o ser como algo que não se reduz ao aparecer fenomenal. Será que essa abordagem implica admitir a prioridade de um mundo plenamente objetivo ante o mundo percebido? Veremos a seguir que não se trata disso. A estratégia de Merleau-Ponty para desenvolver sua nova abordagem ontológica é um longo estudo do conceito de natureza, apresentado no decorrer de três cursos (que se estendem de 1956 até 1960), cujas notas, de alunos nos dois primeiros, e do próprio autor no último, foram publicadas em 1995. No primeiro curso, esboça-se uma investigação histórica acerca do conceito de natureza, acentuando o período que vai da definição cartesiana do mundo natural (mecanismo produzido por uma potência divina) até a concepção contemporânea da natureza como produ- 32 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 357.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 21 tividade anônima 33, nas obras de Bergson e Husserl. Em seguida, Merleau- Ponty analisa como a ciência atual se afasta dos marcos cartesianos, e dá ocasião para uma nova reflexão ontológica. No segundo curso, após expor algumas oscilações no pensamento de Descartes, Merleau-Ponty se dedica a investigar os dados trazidos pelas ciências biológicas, desenvolvendo uma reflexão sobre o sentido da manifestação da vida como nível emergente da natureza. Por fim, no último curso, o filósofo esboça um estudo do corpo humano como ponto de passagem da ordem vital para a ordem especificamente humana. Limitar-nos-emos a retomar somente alguns tópicos desses cursos, a saber, aqueles que esclarecem a passagem do idealismo fenomenológico dos anos quarenta para um certo realismo metafísico, anunciado no primeiro trecho citado nesta seção. Notemos, assim que no primeiro curso, Merleau-Ponty tenta circunscrever uma noção ampliada de natureza, quer dizer, irredutível à concepção de mundo natural como soma de objetos ou eventos plenamente determinados de modo causal linear. Para tanto, o filósofo francês segue as reflexões de Whitehead. Segundo esse autor, a noção clássica de natureza definia o tempo como seqüência de instantes pontuais, de maneira que cada objeto espacial tinha apenas uma única localização espaço-temporal. Decorria daí uma concepção do universo como seqüência de flashes sem densidade temporal. Já Whitehead considera que toda espacialidade envolve uma espessura temporal, de maneira a implicar que a natureza contém uma atividade interna de passagem que se marca nos estratos de sua extensão espacial. O que se quer dizer é que não há natureza de um lado e fluxo temporal de outro; a natureza é pura passagem, não localizável em nenhum dos instantes pontuais de uma sucessão linear. Desse modo, julga Merleau-Ponty, é possível afastar-se da tradição que, de santo Agostinho a Bergson 34, define a matéria pela instantaneidade, pelo puro presente, e localiza toda espessura temporal 33 Cf. MERLEAU-PONTY, 1995, p. 367. 34 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 161.

22 Marcus Sacrini A. Ferraz no espírito. Deve-se admitir, ensina Whitehead, um tempo inerente à natureza, que não é mera projeção subjetiva, mas uma atmosfera na qual os sujeitos existem. As teses de Whitehead auxiliam Merleau-Ponty a desenvolver uma idéia de natureza como um meio denso em que os sujeitos estão envolvidos e não como objeto a ser contemplado e dominado do exterior 35. Os resultados do primeiro curso sobre a natureza apontam para a seguinte tese: o mundo natural não é algo estruturado conforme as categorias subjetivas, mas um campo de eventos que se desenvolvem segundo uma temporalidade própria, campo no qual os sujeitos estão imersos. Em seu segundo curso, Merleau-Ponty caracteriza com mais detalhe esse campo em que a subjetividade está inserida. Para tanto, analisa o mimetismo animal, tema que incide diretamente sobre o problema do realismo por nós rastreado. O mimetismo decorre da semelhança sensível entre os organismos ou entre esses e o meio ambiente. Por exemplo, há animais que se mimetizam com o meio, o qual é anterior e indiferente a eles, a fim de se ocultar de predadores. É inegável aqui que há caracteres perceptivos constituintes do próprio ser do meio ambiente e dos organismos. O que o mimetismo revela é que o comportamento só pode se definir por uma relação perceptiva e que o Ser não pode ser definido fora do ser percebido 36. O meio ambiente está naturalmente ordenado de maneira a ser percebido pelos organismos. Daí que o mimetismo seja efetivo: os indivíduos cuja forma ou cor se confundem com os caracteres sensíveis do meio contam com um fator a mais para favorecer sua sobrevivência. Importa notar que o meio ambiente e os animais se organizam como sensibilidade potencial, sua forma é aquela para uma apreensão perceptiva possível. A análise do mimetismo revela que os animais não existem como objetos que se desenvolvem separadamente; há uma referência mútua entre as espécies, 35 Cf. MERLEAU-PONTY, 1995, p. 153-165. 36 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 247.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 23 uma interanimalidade costurada sobre uma sensibilidade inerente ao ser do mundo 37. O estudo do mimetismo revela que a estruturação natural do meio ambiente e da vida animal envolve uma potência de sensorialidade. Quer dizer que os caracteres sensíveis do mundo não são simplesmente uma reconstrução psicológica da natureza, mas uma camada pela qual o próprio ser mundano se molda. Essa conclusão permite caracterizar o ser primordial, a natureza que envolve a subjetividade: o ser se organiza espontaneamente como ser sensível. Essa caracterização inverte a perspectiva assumida pela Fenomenologia da Percepção. Nesse livro, Merleau-Ponty partia de uma investigação do campo de eventos vividos pelo corpo e acabava por concluir que o próprio ser do mundo deve se identificar ao aparecer fenomenal. Os poderes da subjetividade serviam de critério para delimitar a extensão do ser 38, postura que aliava Merleau-Ponty ao idealismo. Já nos cursos sobre a natureza, não se trata mais de defender que o ser do mundo deve se conformar aos parâmetros perceptivos do sujeito, mas sim que os caracteres sensíveis do ser decorrem da organização natural do mundo. Segue-se uma concepção das relações entre ser humano e meio que não enfatiza as capacidades perceptivas do sujeito, mas as condições sensíveis inerentes ao ser, como veremos a seguir. A Fenomenologia da Percepção caracteriza o corpo próprio como irredutível aos objetos mundanos. Enquanto ele vê ou toca o mundo, meu corpo não pode ser visto nem tocado. O que o impede de ser alguma vez objeto, de ser alguma vez completamente constituído, é que ele é isso 37 Há relação especular entre os animais; cada um é espelho do outro (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 248). 38 O corpo próprio está no mundo como o coração no organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o alimenta interiormente, forma com ele um sistema (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 235).

24 Marcus Sacrini A. Ferraz pelo que há objetos 39, afirma ali o filósofo. O corpo fenomenal não é uma coisa e não pode ser confundido com elas, pois é o lugar de uma produtividade perceptiva pela qual todas as coisas e eventos podem aparecer como tais. O caráter objetivo do corpo é somente um aspecto abstrato, ao qual não se deve dar caráter originário 40. Já no terceiro curso sobre a natureza, Merleau-Ponty sustenta que a capacidade perceptiva está irremediavelmente ligada a um lastro sensível inerente ao corpo. Ver implica a possibilidade de se ver 41, defende o filósofo. Anuncia-se aqui o enigma do corpo, coisa e medida de todas as coisas 42, parte da natureza e ponto de vista pelo qual a natureza se manifesta. Os poderes perceptivos do corpo fornecem os padrões em referência aos quais todas as coisas e situações se apresentam, mas também deve-se admitir que o corpo é uma coisa inserida no mundo. Qual solução é dada para tal enigma em A Natureza? Não duas naturezas [no corpo], mas natureza dupla, o mundo e os outros se tornam nossa carne 43. Merleau-Ponty admite aqui que o corpo, mesmo se se reconhece seu poder ordenador dos estímulos (tal como já assinalava a Fenomenologia da Percepção), deve ser compreendido como uma coisa na natureza, quer dizer, como um objeto sensível que também se manifesta para outros organismos com capacidades perceptivas compatíveis com suas características sensíveis. Como se vê, nos anos cinqüenta, Merleau-Ponty não mais defende a total irredutibilidade do corpo às coisas. E uma conseqüência de se acentuar o caráter sensível do corpo é revisar o papel excessivamente ativo do sujeito perceptivo, tal como exposto nos anos quarenta. Na Fenomeno- 39 MERLEAU-PONTY, 1997, p. 108. 40 Deve-se reconhecer que o corpo como edifício químico ou reunião de tecidos é formado por empobrecimento com base em um fenômeno primordial do corpo-para-nós, do corpo da experiência humana ou do corpo percebido (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 403-4). 41 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 345. 42 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 273. 43 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 273.

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 25 logia da Percepção, a atividade perceptiva resultava da projeção de formas que se sincronizavam com os estímulos corporais 44. É verdade que a posição de Merleau-Ponty rejeitava a objeção de que talvez os conteúdos vividos não correspondessem exatamente ao mundo puro e simples, uma vez que o fenomenólogo identificara ambos. Mas o preço de tal identificação foi significativamente alto: uma concepção idealista que reduzia toda a extensão do ser (inclusive fatos astronômicos passados, tal como a existência de uma nebulosa) ao aparecer fenomenal. Já nos anos cinqüenta, a atividade perceptiva resulta de características sensíveis do próprio ser, ela é alimentada pela sensibilidade inerente ao mundo. Segue-se uma nova resposta à objeção de que talvez os conteúdos vividos não correspondam aos componentes do mundo. O corpo é sensível como as coisas, elas são feitas do mesmo estofo que ele 45. O corpo, além de sensiente, está inserido em um meio com o qual partilha sua natureza sensível. Essa comunidade sensível garante a veracidade da percepção. Eu sou capaz de sentir por um tipo de entrelaço do corpo próprio e do sensível 46, afirma Merleau-Ponty. Uma vez que corpo e mundo são formados pelas mesmas características sensíveis (visibilidade e tangibilidade, por exemplo), não há nada que impeça a apreensão do mundo pela atividade perceptiva. O sujeito perceptivo não é, por exemplo, uma substância pensante que não partilha de nenhum atributo da substância natural do mundo. Nessa concepção dualista, é difícil explicar como duas substâncias opostas podem se comunicar, e sempre há o risco de que conteúdos mentais não correspondam a coisas ou eventos materiais. A posição de Merleau-Ponty afasta esse risco: há uma comunidade sensível de fundo entre corpo e mundo; não há, por conseguinte, nenhum impedimento ontológico, nenhum véu substancial que recubra o mundo para os sistemas perceptivos corporais. O ser das coisas e as capacidades perceptivas se ordenam sobre 44 Cf. MERLEAU-PONTY, 1997, p. 247-8. 45 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 280. 46 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 380.

26 Marcus Sacrini A. Ferraz os mesmos caracteres sensíveis 47. É claro que pode haver erros ou ilusões particulares, mas esses últimos decorrem de perspectivas desfavoráveis assumidas pelo corpo ante os eventos, e podem ser corrigidos pela simples busca de outros pontos de vista sobre os fenômenos. Em todo caso, no geral, o corpo jamais pode estar cortado do mundo, em completa ignorância sobre o que é o ser, pois o corpo não é senão mais um elemento sensível de uma camada genérica de sensibilidade pela qual o meio ambiente, as coisas e os seres vivos espontaneamente se ordenam. Na Fenomenologia da Percepção, o corpo fenomenal era o motor singular da relação com o mundo, e por isso não podia ser confundido com uma coisa, ser tratado como objeto. Em A Natureza, é justamente a comunidade sensível entre o corpo e as coisas (o fato de que o primeiro possui uma camada sensível e de que nas últimas a sensibilidade seja uma estrutura do ser [MERLEAU-PONTY, 1995, p. 349]) o que funda a relação entre ambos. Mas é claro que não se trata de aceitar o que a Fenomenologia da Percepção rejeitava, a saber, que o corpo é um puro objeto desprovido de significação subjetiva, parte de um em-si inatingível para a consciência. Mais do que objetivar o corpo, trata-se de tornar o ser sensível, de modo que a relação entre ambos seja legitimada para além do puro exercício das potências corporais. 5. Resposta ao ceticismo radical Vimos, de início, que o realismo metafísico defende que o mundo existe independentemente da subjetividade humana, tese compatível com um ceticismo radical acerca de qualquer conhecimento sobre a realidade mundana. Em seguida, acompanhamos como a fenomenologia husserlia- 47 No órgão do sentido, a matéria é disposta de tal modo que ela é sensível a um meio no qual o órgão não está. É assim que a fisiologia do aparelho visual é tal que a estrutura física desse aparelho permite atingir estruturas de perspectiva correspondendo a formas do ambiente (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 243).

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 27 na delimita seu campo de investigação como aquele do puro aparecer fenomenal, postura também compatível com um ceticismo acerca da tese de que o mundo fenomenológico corresponde plenamente ao mundo puro e simples. A seguir, vimos que na Fenomenologia da Percepção, Merleau- Ponty evita qualquer questionamento cético desse tipo ao identificar o aparecer fenomenal ao próprio ser do mundo. No entanto, essa identificação implicava dificuldades em reconhecer algum grau de independência do ser em relação às capacidades subjetivas, dificuldades que se tornam explícitas ao Merleau-Ponty afirmar que a nebulosa da qual a Terra teria surgido é um ente cultural. Na seção passada, acompanhamos a argumentação desenvolvida por Merleau-Ponty nos anos cinqüenta, na qual há a caracterização do ser como camada de eventos ou coisas espontaneamente sensível, independentemente de sua correlação com as capacidades perceptivas do sujeito. Merleau-Ponty esboça, assim, uma postura realista, já que admite a autonomia do ser do mundo ante a subjetividade. No entanto, sua estratégia de apresentação de tal mundo autônomo parece livrá-lo da dúvida cética radical acerca do acesso à realidade. Em sua argumentação realista, Merleau-Ponty não se limita simplesmente a afirmar que o mundo é em-si, embora toda referência a ele seja relativa a esquemas conceituais talvez imperfeitos. Essa abordagem abre o flanco para um ceticismo epistêmico radical quanto à possibilidade de qualquer conhecimento sobre a natureza do ser, como vimos. Por sua vez, o filósofo defende que as capacidades perceptivas humanas estão enraizadas no próprio ser mundano. Há características sensíveis inerentes ao próprio mundo e ao corpo, e são tais características que facultam o exercício da percepção: é porque o corpo é um ente sensível tal como as coisas que seu aspecto sensiente pode se exercer diretamente sobre o mundo. Quer dizer que Merleau-Ponty propõe uma asserção ontológica acerca do sensível (o ser é sensível), da qual se segue a tese epistemológica da adequação geral da vida perceptiva aos temas percebidos, tese que anula o risco cético de que talvez não se saiba nada acerca do mundo real. Segundo o

28 Marcus Sacrini A. Ferraz filósofo, ao usar suas habilidades perceptivas, o sujeito atesta o caráter sensível do ser e do seu próprio corpo. Assim, ao menos quanto à atividade perceptiva, há um desvelamento do ser tal como ele é. A percepção somente funciona porque os caracteres sensíveis do ser e a sensibilidade imanente ao corpo facultam a apreensão dos conteúdos percebidos. Quer dizer que ao apresentar um mundo sensível, a percepção de fato qualifica o modo como o mundo existe nele e por si mesmo. Merleau-Ponty esboça então uma postura realista, ou seja, a admissão de independência do mundo, mas a complementa com a qualificação do mundo como eminentemente sensível. As dificuldades céticas em relação ao realismo são geradas pelo modo como esse último é normalmente formulado: quer-se afirmar uma realidade independente da atividade mental, mas uma vez que todos os dados disponíveis aos sujeitos são referentes aos esquemas conceituais ou capacidades intuitivas, tal afirmação parece inviabilizada. Ora, pressupõese aqui uma cisão entre estrutura objetiva do mundo e habilidades cognitivas, e então surge um ceticismo acerca do possibilidade de encontrar uma maneira legítima de relacionar as últimas com a primeira. A investigação de Merleau-Ponty rejeita tal pressuposto: se as habilidades perceptivas emergem de arquitetônicas sensíveis da própria natureza, então o exercício de tais habilidades atesta que o ser não deve ser caracterizado como um algo quiçá incognoscível, e sim como estrutura sensível. Obtém-se assim uma qualificação mínima do ser, o que já cumpre a função de afastar o ceticismo epistêmico radical, o qual sustentava que talvez nada se soubesse acerca do mundo. Afinal, pode-se ao menos afirmar que em sua estrutura geral o ser mundano é sensível, quer dizer, prepara-se, desde o nível do meio ambiente e até aquele da vida animal e humana, para uma apreensão perceptiva. Embora Merleau-Ponty admita que o ser é por si mesmo sensível, deve-se notar que o autor não se limita somente a inverter a reflexão fenomenológica de outrora. Vimos que nos anos quarenta, Merleau-

O Realismo Metafísico de Merleau-Ponty 29 Ponty partia de uma análise do aparecer fenomenal e concluía que esse era idêntico ao ser do mundo. Ora, nos cursos sobre a natureza pode parecer que Merleau-Ponty simplesmente parte do ser e conclui que esse é idêntico ao aparecer fenomenal, que o ser é perfeitamente assimilável pelas capacidades do sujeito. Não se trata disso, o realismo defendido por Merleau-Ponty não é unidimensional. O filósofo não aceita o postulado de que a realidade se concentra em um único nível e que quaisquer outros mencionáveis são meros epifenômenos que não devem contar como reais. Era sobre esse postulado que a distinção moderna entre qualidades primárias e secundárias se sustentava, por exemplo. Muitos autores insistiram em que só as qualidades diretamente matematizáveis são reais, enquanto aquelas sensíveis ou subjetivas comporiam uma gama de efeitos derivados das primeiras. O esforço de Merleau-Ponty, como vimos, é justamente o de recolocar as qualidades sensíveis no ser, de modo a apresentálas como reais. No entanto, o filósofo não assume uma posição oposta àquela do atomismo moderno, quer dizer, não assume que apenas a camada sensível é real. Na verdade, o filósofo anuncia ser necessário finalmente, a inclusão do Ser visível em um Ser mais vasto 48. Deve-se, assim, reconhecer que o ser visível não é o todo do ser, porque há já seu outro lado invisível 49. Não exploraremos o tema do invisível aqui; sua menção serve ao menos para nos lembrar que o realismo de Merleau- Ponty não delimitará o ser somente como aquilo que é apreensível pelas capacidades perceptivas. Independentemente desse tópico, interessounos neste artigo mostrar como Merleau-Ponty caracteriza uma camada do ser de maneira a afastar a dúvida cética radical acerca do acesso à realidade. Vimos que o filósofo argumenta por uma continuidade genética entre ser e aparato perceptivo: há um estrato da realidade que guarda as condições gerais de sensibilidade e que, nesse sentido, não se furta à atividade perceptiva humana. Dessa maneira, Merleau-Ponty qualifica a tese 48 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 335. 49 MERLEAU-PONTY, 1995, p. 339.

30 Marcus Sacrini A. Ferraz primeva do realismo metafísico, a saber, de que estamos diante de um real independente da subjetividade. O real é em si mesmo sensível e essa qualificação mínima do ser do mundo desarma o ceticismo radical, segundo o qual talvez nada se soubesse acerca do modo como a realidade é nela mesma. Referências Bibliográficas FIELD, H. Realism and Relativism. The Journal of Philosophy, v. 79, n.10, p. 553-567, 1982. HUSSERL, E. Die idee der Phänomenologie. Hua II. Haag: Martinus Nijhoff, 1973.. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Hua VI. Haag: Martinus Nijhoff, 1962. McGOWAN, M. K. The Neglected Controversy over Metaphysical Realism. Philosophy, v. 77, n. 209, p. 5-21, 2002. MERLEAU-PONTY, M. La Nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1995.. L Institution. La Passivité. Paris: Belin, 2003.. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1997. PUTNAM, H. Realism, Truth and History. New York: Cambridge, 1981.. Reply to Two Realists. The Journal of Philosophy, v. 79, n. 10, p. 575-577, 1982. SOSA, E. Putnam s Pragmatic Realism. The Journal of Philosophy, v. 90, n.12, p. 605-626, 1993.