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Transcrição:

Observando diferenças, mapeando similitudes Felipe Scovino Nos últimos anos políticas e programas de mapeamento das artes visuais contemporâneas têm se tornado mais frequentes no cenário artístico nacional. Mas como entender o presente sem criar pontes com o passado? E como não datar o passado e ao mesmo tempo inseri-lo no contemporâneo? Mapeamentos, ordenamentos e memórias viraram palavras de ordem dentro de um circuito brasileiro inchado de artistas e museus (cujos acervos engessados - vivem de doações e comodatos). Em paralelo, as obras dos artistas que iniciaram suas produções na passagem da década de 1960 para os anos 70 são analisados pela comunidade da crítica de arte internacional como arte política, arte de guerrilha, arte pós-tropicalista ou outros gêneros de gosto duvidoso e redutor. Com esta questão em jogo, retomemos o curso. Este é um livro de entrevistas. Não proponho nada mais do que retirar a fala (em demasiada) em terceira pessoa (do crítico), e inserir a escrita ou o depoimento do artista. Num universo de 15 artistas (ou 13 depoimentos) não houve a intenção de localizar a produção de Artur Barrio como precursora da performance no Brasil, ou a obra de Cildo Meireles como arte política panfletária digna dos tempos difíceis da ditadura, ou ainda citar Ernesto Neto como um filhote do neoconcretismo. Definições, catalogações, arquivos, gavetas, sentidos desviantes e claustrofóbicos parecem fazer parte da natureza humana, mas isso teria valia na arte? Será que Waltercio Caldas pensa em realizar arte conceitual toda vez que a materialidade se põe como questão à sua frente? Meu interesse não é localizar a obra de determinado artista em seu espaço e tempo, mas alertar que estamos tratando fundamentalmente de estruturas de mediação com a vida, atemporais e com ligações claras e imediatas com o humano. Apesar de haver dois blocos aparentes de artistas (o primeiro, dos artistas que iniciaram suas trajetórias entre a segunda metade dos anos de 1960 e a primeira metade da década de 70, e outro de artistas que tiveram um amadurecimento de seus trabalhos entre a segunda metade dos anos de 1990 e o início dessa década), foram privilegiados os fatores de multiplicidade de suportes ou técnicas na escolha dos integrantes desses dois grupos. Portanto, o livro tece uma rede de

atravessamentos de trajetórias e suportes (nesse caso, justifica-se a aparição de Anna Bella Geiger no livro, porque apesar da artista ter começado sua trajetória artística na década de 1950, a mesma situa-se como uma das precursoras da videoarte no Brasil, traçando portanto um diálogo pertinente com a obra de Cao Guimarães, nas dificuldades e técnicas que permea(ra)m cada produção), localizando a produção de ambos os grupos no contemporâneo; e fundamentalmente, instaurando a vitalidade e atemporalidade da obra de arte, independente do ano, artista ou contexto em que foi criada. Nesse atravessamento, diferenças são observadas e relatadas. O livro percorre cinco territórios dentro de uma estrutura temporal pós-dissolução do compromisso estético neoconcreto. No momento em que há uma exacerbação de livros, teses acadêmicas e ensaios sobre o neoconcretismo, publicados tanto no Brasil quanto no exterior (geralmente permeando os temas complexos e desgastados da antropofagia ou participação), a produção das artes visuais brasileiras que sucedeu esse momento ainda é pouco estudada ou pior, há uma leitura de certa parcela da crítica de arte de que foi nesse momento, por conta da ditadura militar, que as relações entre arte e política eram tão fortes que se mostravam indissociáveis. Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) corre o risco de não mais driblar o sistema mas ser incorporado danosamente por um ciclo acadêmico viciado, manco e cego. Portanto, os territórios pelos quais o livro caminha são: a visão dos artistas que iniciaram suas trajetórias nos anos de 1960/1970 sobre a experimentação que as suas obras trouxeram ao circuito de artes visuais brasileiro; as aproximações (e ao mesmo tempo diferenças) que existem entre campos temporais distintos de artistas que trabalham com o mesmo suporte (Carlos Vergara e Adriana Varejão, no caso da pintura, ou Ernesto Neto e Waltercio Caldas, no campo do objeto) assim como as dificuldades (técnicas, mercadológicas) que esses suportes sofreram e ainda sofrem; o olhar da produção mais recente sobre as práticas artísticas produzidas nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, o diálogo dessa experimentação com os seus trabalhos assim como os novos direcionamentos/apontamentos que as suas obras trazem dentro de uma trajetória de inovação; a visão de todos os artistas sobre a passagem do moderno ao contemporâneo no circuito das artes visuais brasileiras a partir das produções e experimentações realizadas

no período de tempo em que o livro se inscreve; e, o lugar de uma arte transnacional no fluxo do globalismo. Algumas perguntas foram frequentes nas conversas, tais como: as influências e diferenças entre dois tempos de produção artística em um momento em que acontecia a dissolução do neoconcretismo enquanto compromisso estético; a relação do mercado com a possibilidade de cerceamento do experimentalismo da prática artística; a observação sobre a influência ou herança contagiosa, como denomino, das obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica - particularmente os seus trabalhos após a dissolução do neoconcretismo onde a experiência sensorial é definitivamente incorporada por todos os sentidos - nas práticas artísticas posteriores a esse momento (um legado que é entendido por uma parcela da crítica de arte, notadamente internacional, como intermitente e duradouro e não como produção de diálogo que ao mesmo tempo demarca claramente as diferenças); e, a questão de uma obra que é vinculada a uma identidade nacional e não é interpretada como uma experiência artística atravessadora de fronteiras geográficas. Apesar dos enunciados muito similares, as respostas construíram um campo da crítica cultural e artística extremamente válido sobre o que pensamos a respeito da produção de arte e seus diálogos com a antropologia, história, geografia, economia e outros campos de saber. Portanto, no campo das diferenças, é que as similitudes se tornam mais presentes. É imprescindível afirmar que a co-relação entre as práticas artísticas dos depoentes é um fato, mas ela nunca teve a intenção de aproximar gerações, mas situar essas produções no contemporâneo. Não estamos falando exclusivamente de artistas dos anos 60 que dialogam com artistas da geração posterior, mas de políticas de subjetivação que não estão presas a um tempo, mas são perenes, trans-históricas e que possuem acima de tudo um compromisso com a vida. As entrevistas foram realizadas entre dezembro de 2008 e junho de 2009, com exceção de duas entrevistas feitas em 2006 com Waltercio Caldas e Tunga durante a minha pesquisa de doutoramento 1. Como ambas as entrevistas eram documentos preciosos - possuíam uma ligação espontânea com os temas abordados nesse livro e não 1 Em dezembro de 2007 defendi a tese Táticas, posições e invenções: dispositivos para um circuito da ironia na arte contemporânea brasileira no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tese, com orientação do Prof. Dr. Paulo Venancio Filho, examinou um atravessamento da ironia em práticas artísticas brasileiras produzidas entre as décadas de 1960 e 2000.

haviam sido publicadas -, julguei conveniente que as mesmas fossem editadas e incluídas nas entrevistas com os respectivos artistas. Abro um parêntese para dissertar sobre o título desse livro. O termo contemporâneo é tomado aqui como diálogo com o atual, com o tempo em que vivemos e mais do que isso com ideias, conceitos e propriedades que são atemporais, porque são, em suma, demasiadamente humanas para serem superadas por um tempo historicizante. Arquivar um tempo que não é esse mas definitivamente um processo contínuo que não respeita um tempo histórico e estabelece trocas com o tempo-duração. Arquivo como mecanismo de congelar uma determinada fração de tempo e pensamento que possui um compromisso com o agora ao mesmo tempo em que se conecta a uma ação fixada no presente a-histórico. Por conseguinte, arquivo e contemporâneo são afinidades eletivas e não interferências semânticas ou conceituais; esse diálogo funda-se portanto na necessidade do anacrônico como compromisso com o discurso das artes visuais. Organizando um livro de entrevistas, não quero afirmar que a crítica de arte está em crise (palavra arcaica e discordante, visto que habitamos um mundo preenchido de miséria, guerra, fome nada muito diferente da Idade Média -, saturado de imagens e informações que se sobrepõem no tempo de uma velocidade movida a Gigabytes e altermodernismos) ou a palavra do artista é a única verdade sobre a sua obra. Não me interessam as crises (ou apenas elas), mas muitas vezes as ponderações que se fazem a respeito da arte brasileira. Em alguns momentos (como no caso da entrevista com Tunga), a minha voz não se coloca como verdade mas como dúvida ou incitação. Pressupostos básicos pelos quais o historiador ou crítico de arte devem-se ater em contraponto a afirmações generalizantes. Naquele momento, portanto, o discurso constitui-se como passagens e questionamentos colocados aos artistas a respeito de interpretações da crítica de arte internacional sobre a produção contemporânea das artes visuais brasileiras. Por que ainda somos o povo exótico que ri da sua própria desgraça ao mesmo tempo em que somos súditos de um reinado de caipirinhas, mulatas, sexo, samba e malandragem? Por que Hélio Oiticica é o líder de uma estética marginal da adversidade vivemos que alimenta um imaginário de beleza, contradição e experimentalismo como se os artistas brasileiros gostassem ou vivessem apenas disso? Por que Cildo Meireles é o produtor supremo de uma típica arte conceitual latina, como

se não pudesse ser apenas um artista? Por que a arte brasileira não pode ser transnacional e deixar de ser lida como uma mistura de clichês, antropofagia, sensualidade e propostas associadas à política e ao exótico? Aqui estão concentrados discursos não apenas de quem vê, mas escuta e dialoga com as obras. Não estou falando de gerações, mas de um corpo inteiriço e potente que qualifica e localiza a situação atual da arte contemporânea brasileira. Dialogar com os discursos construídos nesse livro é tecer uma rede que envolve três instâncias: memória, obra e uma terceira via resultante das dobras que são geradas por esses momentos. Embaralhados, conectados, pulsando e conversando incessantemente, esse corpo mostrase tão vivo e coerente que as suas delimitações são impossíveis de serem traçadas. A escrita deslocada com a função de título na obra opera em Waltercio Caldas não como nomeação de uma experiência mas como possibilidade de exercício da ficção, como uma extensão daquela ideia que não se contenta em ser apenas objeto e por isso mesmo cria laços com a escritura. Por outro lado, na obra-trajeto de Tunga, há uma relação de imersão de um no outro (obra e escritura), que muda o sentido de ambos. A escritura é um exercício da ficção no território da credibilidade. Para este artista, a ficção que se constrói em torno do texto é um dado essencial, que não deve ser descartado. Fundamentalmente, a memória arquivada em palavras tece camadas de subjetivação que são ativadas à medida que essas histórias guardadas transmitem credibilidade a essas ficções possíveis, isto é, as experiências que temos face a um objeto. Na prática, essas duas potências (escritura e obra) desencadeiam uma força que não se configura nem fora nem dentro, mas em permanente diálogo, costurando um terreno e provocando sensibilizações, mobilidades e uma criação infinita de possibilidades de apreensão da trajetória de cada artista depoente nesse livro. A localização da participação dos artistas no debate crítico assim como produtores de textos atravessa as cartas de Cézanne à Émile Zola, passa pelos Manifestos futurista e realista, pela Conferência sobre o Dada de Tristan Tzara, as Meditações de um pintor de Giorgio De Chirico, a Nadja de André Breton, avança pelos escritos de Robert Motherwell, Jackson Pollock, Barnet Newman e Mark Rothko, chega à carta de Alberto Giacometti a Pierre Matisse, toma novo fôlego com a produção conceitual e minimalista, com os textos de Mel Bochner (Arte serial, sistemas, solipsismo), Robert Smithson (Uma

sedimentação da mente: projetos de terra), Sol LeWitt (Parágrafos sobre Arte Conceitual), Joseph Kosuth (A arte depois da filosofia) e Joseph Beuys (A revolução somos nós). Cito apenas estes textos para traçarmos uma ligeira e torta história dos escritos de artista na construção de uma passagem da modernidade a contemporaneidade. Os artistas visuais ao longo desse período também produziram exercícios críticos em jornais e revistas (como Robert Morris), críticas para catálogos de outros artistas (Hélio Oiticica), entrevistas com outros artistas (Jorge Guinle atuando na revista Interview) ou textos ficcionais ou poéticos (Art & Language). Nas primeiras décadas do século XX, as revistas de artistas começam a se materializar (talvez a De Stijl seja o caso mais exemplar) e nas décadas de 1960 e 70 ganham um amadurecimento na sua relação com o circuito de artes na forma de documentação e debate crítico. Nesse caso, cito as edições do Situationist Times e da Avalanche e, no Brasil, Rex Time, Malasartes, Navilouca, Pólem e A Parte do Fogo 2. Nesse campo múltiplo de atuações e conversas entre artistas e escritura, e evocando a famosa simbiose arte/vida, faço referência às cartas trocadas entre Hélio Oiticica e Lygia Clark entre 1964 e 1974. Neste caso não temos apenas uma narrativa biográfica que avança sobre um cotidiano previsível, mas camadas de relatos que se convertem em um campo fecundo para as práticas experimentais da arte. Mais do que descrições de encontros e circunstâncias do campo cultural brasileiro daquele período, as cartas transbordam com vigor e coerência o exercício de pensamento, elaboração, vivência e corporeidade que a obra (ou work-in-progress, utilizando a expressão que o próprio Oiticica dava ao seu processo de trabalho) de ambos manifestava. Ressalto que durante esse intercâmbio de ideias, é realizada a exposição Nova objetividade brasileira (1967) no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em um momento único na história das artes visuais no país, os artistas tornaram-se pela primeira vez os organizadores, produtores, curadores, expositores e críticos de uma mostra. É nesse instante que Oiticica publica no catálogo da exposição um dos textos mais seminais das artes visuais: Esquema geral da nova objetividade. Instaurando um momento de reflexão depois da dissolução do neoconcretismo, Oiticica afirma um estado típico da arte brasileira de vanguarda atual diferenciando-se totalmente das 2 Para uma leitura mais atenta recomendo o livro Escritos de artistas: anos 60/70, organizado por Glória Ferreira e Cecília Cotrim.

correntes informalistas, Pop e conceituais estabelecidas no plano internacional e delimitando um espaço próprio para as práticas artísticas brasileiras, sob o lema da adversidade vivemos. Na década de 1980, a revista Módulo foi um importante meio de publicação dos escritos de artista (que naquele tempo começavam a amadurecer cada vez mais a ideia de situarem-se também como pesquisadores, investigadores e teóricos). Nessa publicação, artistas como Jorge Guinle (Expressionismo vs. Neo-Expressionismo), Milton Machado (O choque inevitável entre duas tendências) e Carlos Zilio (No dorso do quadrúpede, mas com liberdade de voar) contribuíram de forma significativa. Todavia os dois últimos independentes da condição acadêmica de ambos continuam publicando seus relatos, ensaios, narrativas e reflexões sobre pensamento e prática artística contemporânea. O mote de Arquivo contemporâneo não está apenas na produção concisa de textos não publicados e no discurso do artista (e não mais do crítico), mas também na reunião original desse grupo de artistas, discutindo, argumentando e expondo as suas práticas e poéticas artísticas, articulando o seu pensamento em relação ao circuito de artes visuais, a produção de seus pares e estabelecendo, portanto, uma interface entre esses campos temporais de artistas, as novas articulações da mídia de arte e a relação com temas como ética, moral e mercado. Como ressalta Glória Ferreira, [os textos de artistas] não só se integram à poética de cada obra, mas ingressam no domínio de discurso da crítica e da história da arte, sob diferentes modos, tais como manifestos, cartas, entrevistas, textos ficcionais, críticos e, em sua maioria, ensaísticos. 3 Essa reunião de textos aponta que a função de artista se converge para o lugar do crítico de arte, não no sentido de anular a sua função, mas de completar esse circuito crítico de pensamento. O artista não é apenas o sujeito que cria o objeto de arte, mas também reflete e pondera sobre esse processo e o seu lugar no circuito de artes, estabelecendo um discurso crítico sobre as transformações das práticas artísticas e do contemporâneo. Contudo, muitas vezes não há de fato um autor nem estamos tratando da produção de um objeto, mas de uma experiência. É o que Michel Foucault chama de apagamento do autor 4 : a função autor excede a obra porque 3 FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 09. 4 Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In:. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 264-298.

o campo e a sequência de efeitos produzidos ultrapassam de muito a própria obra. Porém o essencial não é constatar uma vez mais seu desaparecimento, mas a descoberta dos locais onde sua função é exercida. Para Foucault, o autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por sua obra; não é nem o produtor nem inventor deles. O autor é aquele a quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito, e tão somente isso. Portanto, Arquivo contemporâneo, no entrecruzamento de diálogos à deriva, compõe um tecido de questões que dialogam entre si e assinalam o permanente interesse na relação entre o visual e o verbal, apontando as pressuposições mais gerais que sublinham o trabalho de arte e que o ligam a um contexto histórico mais amplo.