UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA SOBRE ÍNDIOS CONTEMPORÂNEOS



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Transcrição:

UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA SOBRE ÍNDIOS CONTEMPORÂNEOS Entrevista com Prof. João Veridiano Franco Neto 1 por Ivan Bezerra dos Santos 2 RESUMO Em 19 de abril, comemora-se o Dia do Índio. Apesar de alguns avanços, o momento é de reflexão. Em 1940, o 1º Congresso Indigenista Interamericano, reunido em Patzcuaro, no México, aprovou uma recomendação proposta por delegados indígenas de Panamá, Chile, Estados Unidos e México. Entre os assuntos, estava o estabelecimento do Dia do Índio, em 19 de abril, pelos governos dos países americanos, que seria dedicado ao estudo das causas ligadas ao índio pelas diversas instituições de ensino. A data lembraria o momento em que os delegados indígenas se reuniram pela primeira vez em assembleia no Congresso Indigenista. O Brasil adotou a comemoração em 1943. Mas o que mudou até os dias atuais? No contexto dos eventos do Dia do Índio ocorridos na cidade de Porto Seguro/BA e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, Campus Porto Seguro, o jornalista Ivan Bezerra dos Santos entrevistou o antropólogo João Veridiano Franco Neto, professor de Antropologia e Sociologia do instituto. A entrevista ocorreu em abril de 2011. 1 Professor de Antropologia Social e Sociologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA - Campus Porto Seguro). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).E-mail: joaoveridiano@yahoo.com.br. 2 Assessor de Comunicação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA - Campus Jequié). Graduação em Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e Especialista em Gestão da Comunicação Empresarial.E-mail: ibezerra@hotmail.com.

Ivan Bezerra: Gostaria que o senhor falasse sobre a diferença de dados referentes à quantidade de índios na FUNAI e no IBGE. Este último considera, além daqueles que vivem em aldeias e reservas delimitadas, as respostas autodeclaradas. Ou seja, incluindo os índios de áreas urbanas. O Censo de 2010 registrou aproximadamente um milhão de índios no Brasil. Os dados revelariam, ainda, a superação do preconceito de se considerar índio? João Veridiano: Realmente há uma divergência entre os dados da FUNAI, que divulga aproximadamente 460 mil índios e os dados do IBGE, em torno de 800 mil. Entretanto, antes de falar dessa diferença, gostaria de falar de outra. Embora não se saiba exatamente quantos habitantes existiam no que veio a ser o Brasil no momento da invasão europeia, a arqueologia e a demografia histórica estimam uma população entre cinco milhões a dez milhões. Ou seja, se pensarmos no número mais baixo desta estimativa (cinco milhões) e a projeção mais alta das estatísticas do IBGE, 800 mil, têm-se aí uma diferença de quatro milhões. O que podemos concluir sobre isso? Um verdadeiro genocídio foi empreendido pela colonização. Voltando a questão. Os dados da FUNAI consideram apenas indígenas aldeados ; já o IBGE, vai além, como você mesmo disse, e considera as respostas autodeclaradas. Ao meu entender, adotar esta metodologia de pesquisa é um avanço, pois representa com maior fidedignidade a pluralidade cultural brasileira (bem como indígena). A imagem mostra o entrevistado durante pesquisa de campo em julho de 2013 no Alto Xingu, Parque Indígena do Xingu (PIX), Mato Grosso, aldeia Aiha da etnia Kalapalo 131

A título de ilustração, posso até mencionar um caso presenciado por mim em Cumuruxatiba (distrito municipal de Prado/BA) durante o processo de seleção para supervisores comunitários do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID-Diversidade), que nossa Licenciatura Intercultural Indígena acaba de aprovar: um candidato se autodeclarou afro-indígena. O que despertou muito minha atenção. Logo depois, fiquei sabendo por meio de um pesquisador que no século XVIII quarenta negros alforriados foram enviados para a região. Todos eles casaram-se ou mantiveram relações com índias que já habitavam este local. Dessa maneira, as peças começam a se encaixar e a diversidade vem à tona. Penso que a situação segue para este caminho, começa-se a defrontar o preconceito em se autodeclarar indígena e ao mesmo tempo enfrentar as consequências e reivindicar os seus direitos previstos por Lei. Mas ainda estamos longe em dirimir com o preconceito. Fale sobre a identidade étnica do índio, se vem sendo perdida com o passar do tempo e a relação dos povos indígenas com as sociedades modernas. Na antropologia não se fala mais em perda. O conceito de aculturação, tão difundido, já se tornou antiquado como instrumento de análise das sociedades. O que se propõe, atualmente, é a transformação. Lembrando que a Antropologia Social conceitua Cultura como um fenômeno dinâmico. Deste modo, parece ficar claro a relação entre mudanças culturais ocasionadas pelos processos de relações. Uma relação não tem apenas um lado, vale ressaltar, é uma via de mão-dupla, que cada protagonista tem suas próprias estratégias para melhor aproveitar cada relação de contato. Isto explica, em parte, o que discutimos na pergunta anterior: em determinado momento histórico, a melhor estratégia era ocultar sua identidade indígena em função da estrutura de poder da sociedade brasileira, que pensa o índio como um ser pertencente a uma sociedade que se encontra em um estágio inferior da sociedade ocidental; hoje, a situação mudou, e a sociedade de 132

direitos fomentou a possibilidade de uma nova estratégia, admitir sua identidade com orgulho, onde as palavras-chaves são: revitalizar e preservar. Enfim, arrisco-me até a uma brincadeira, no que diz respeito à cultura nada se perde, tudo se transforma. Como o senhor considera a troca de conhecimentos entre índios e brancos? Quais os pontos positivos e negativos dessa relação? Para ser sincero acho que nossa sociedade é muito imatura e etnocêntrica para compreender os conhecimentos indígenas. Normalmente esta troca é feita de maneira hierarquizada. Explico melhor: durante minhas pesquisas de campo no Parque Indígena do Xingu, no Estado do Mato Grosso, costumava conversar tanto com os pajés (especialistas de cura indígenas) quanto com os médicos e outros profissionais da saúde que pertenciam às equipes de saúde da FUNASA. Estes últimos, normalmente são muito bem intencionadas em relação à cultura indígena e se interessam frequentemente em aprender seus conhecimentos. Entretanto, os conhecimentos são classificados de maneira hierarquizada. Por exemplo: ao falar sobre o comportamento de um garoto indígena morador de uma aldeia no Xingu, um médico falou a mim que os índios acreditam que o garoto sofre de um feitiço, mas que nós sabemos se referindo a ele e a mim que aquilo não passa de crença, que na verdade o garoto é epiléptico. Os pajés dizem que a causa da doença do garoto, seja ela um sintoma de epilepsia, foi causada por um espírito da floresta. Como se é possível perceber, a noção de causalidade dos índios vai além, a biomedicina não abrange as inquietudes dos membros destas sociedades. A sorte, o acaso, o acidental, o destino, muito comuns para nossas representações de causalidade, não são suficientes aos índios, o saber deles exige mais. Apesar de o médico conhecer ambas as explicações em relação a um fenômeno, fica explícito o etnocentrismo que hierarquiza o conhecimento indígena em mera crença e o saber dele, do médico, a verdade científica. É desta hierarquia que estou falando e a percebo como um 133

ponto negativo destas relações. E é por isso que acho que a troca é realizada de maneira hierarquizada. Alguns de nós estamos nos esforçando em apontar estas falhas e dentro deste esforço seria anular essa assimetria. Penso que as Licenciaturas Interculturais podem vir neste contexto e ser uma importante referência positiva. Como funciona, atualmente, a relação de consumo do índio. Antigamente, ele dependia do que produzia na terra para sobreviver. Hoje em dia, inserido na sociedade moderna, ele tem se tornado refém do consumismo? O contexto não parece tão simples assim. As trocas e as relações de intercâmbio entre os povos indígenas são anteriores ao advento da sociedade do consumo. O que eu quero dizer é que nem todas as sociedades indígenas dependiam exclusivamente do que produziam. Sabe-se de instrumentos de ferro encontrados em sítios arqueológicos que chegaram a estes grupos antes mesmo do europeu entrar diretamente em contato com eles. Ou seja, os habitantes nativos já tinham consolidado uma rede de intercâmbio muito abrangente; e não apenas de bens materiais, mas também de ideias e informações. De qualquer maneira há uma diversidade de situação no que se refere a este tema. Vai depender da região e dos grupos étnicos que estamos detendo nossa atenção. Obviamente se especificarmos os grupos étnicos que habitam regiões próximas a cidades, a situação pode apontar para relações de consumo voltadas para o regime de produção urbano. Acho um pouco precipitado dizer refém, pois se assim o fosse todos nós seríamos então reféns deste mesmo sistema. Mas compreendo a sua questão como uma espécie de inquietação e vejo que isso se entrelaça à urgência das demarcações de terras como prevê nossa Constituição de 88, no Artigo 231, do Capítulo VIII. 134

E como anda, atualmente, a relação do índio com a terra, diante da pressão urbana, com o avanço de mineradoras e hidrelétricas, além de atividades agropecuárias e da luta com posseiros e fazendeiros interessados em grandes extensões de terra para comercialização? É justamente a relação do índio com a sua terra demarcada que garante seus direitos constitucionais: terra, saúde e educação, parecem ser os três pilares de reivindicação do movimento indígena e seus aliados indigenistas. Penso que se estivéssemos adiantados em relação às demarcações de terra, muitos dos conflitos internos e de contato com as frentes de colonização citados em sua pergunta estariam ao menos atenuados. De qualquer maneira, parece que ultimamente ocorre um surto anti-indígena na sociedade. A pouco vimos um ministro declarar em rede nacional que os índios teriam um pacto com o demônio, ao se referir aos protestos indígenas juntos ao Ministério Público Federal e outras instâncias, que estariam atrapalhando o desenvolvimento do Brasil quando conseguiram impedir, provisoriamente, os trâmites de construção da hidrelétrica Belo Monte (projetada para ser a terceira maior hidrelétrica do mundo, mas com baixa capacidade produtiva). Já regionalmente, vem ocorrendo um processo de criminalização das lideranças indígenas do Sul da Bahia, onde os líderes das retomadas (movimento de recuperação das terras originárias) são presos acusados de formação de quadrilha. Assassinatos continuam ocorrendo em função da posse de terra. Lendo por este prisma, estamos muito longe de sairmos da velha situação de conflitos de terra resultados da condição fundiária brasileira, ainda moldada pelo latifúndio da monocultura. De modo geral, quais as diferenças mais gritantes entre o índio pré e pós-colonização? 135

Em relação a esta pergunta, eu preferiria que os próprios indígenas respondessem, pois foram eles que de fato vivenciaram os impactos da colonização. Mas, digamos que é muito difícil responder a esta pergunta, já que, como enfatizei anteriormente, a cultura é dinâmica, não é possível determinar como estariam as culturas indígenas hoje caso não tivesse ocorrido a invasão europeia. Uma coisa é certa, pelo menos do ponto de vista antropológico, decerto que elas não estariam congeladas no tempo e não estariam vivendo como estavam em 1500, bem como os europeus não vivem como em 1500. De qualquer forma, os índios pré-coloniais não estavam preocupados com o Brasil, ao contrário dos índios pós-coloniais que por uma questão de convivência (e permanência de seus modos de vida) estão extremamente preocupados com o Brasil; e propõem sugestões interessantes, que são jogadas para debaixo do tapete. O que sinaliza, ao meu entender, uma incapacidade da população não-indígena em compreender os povos indígenas e também a diferença cultural que elas representam. 136