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Transcrição:

A FAMÍLIA OBJETO DE MEMÓRIA EM DIFERENTES MATERIALIDADES SIGNIFICANTES Ricardo Pereira Vieira 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tomará como material de pesquisa (corpus) os textos produzidos pelo Direito brasileiro (leis, livros de doutrina, julgados e outras produções) desde as Ordenações Filipinas até os dias de hoje. Do material coletado e selecionado foram extraídas as formulações linguísticas cuja materialidade apontasse para a existência de enunciados de ordem jurídica que nos permita afirmar sobre a existência de um discurso sobre a família no Brasil. METODOLOGIA Para a realização deste trabalho, foram selecionados e catalogados textos legais (leis), projetos de lei, julgados, livros de doutrina, etc, ou seja, textos relacionados com as práticas judiciárias no Brasil, de maneira ampla, que tratassem de forma direta ou indireta sobre a família. Neste sentido, o corpus de pesquisa foi constituído de material coletado desde as Ordenações Filipinas (impressa no ano de1603) até as mais recentes decisões judiciais prolatadas sobre o assunto, passando pelas diversas Constituições e Códigos Civis e Criminais, além de outras leis esparsas vinculadas ao tema. Em seguida, foi feito um percurso de leitura e análise do material selecionado, com o objetivo de identificar e descrever o funcionamento de possíveis enunciados relacionados ao tema da família, resultado do atravessamento de diversos outros discursos e práticas (economia, religião, ciência, etc.) que atravessam o discurso jurídico para formatar e constituir, especificamente, um discurso de ordem jurídica sobre a família no Brasil. Deste modo, o corpus foi reunido de acordo com o referencial teórico adotado, que 1 Doutorando em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS) pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB, Brasil. Endereço eletrônico: ricardo_advog@hotmail.com 2023

privilegia a análise de indícios, de rupturas, de retomadas, de repetições e de atualizações (portanto de uma concepção não linear da história) em diferentes materialidades significantes, dentro produção jurídica brasileira [ao longo da história], desde as mais remotas ocorrências textuais até os dias de hoje, ocorrências estas geralmente produzidas em contexto institucional e formal, observando o cenário político-jurídico de produção e aplicação de leis no país (ou seja, contexto legislativo de produção de normais e contexto judicial de interpretação/aplicação de normas). A lado disso, buscou-se sustentar [epistemologicamente] a inexistência de substrato científico ao Direito (negando-se assim a condição de ciência ao Direito), a partir do que foi preciso analisar o Direito como objeto de análise de outras disciplinas e/ou áreas do conhecimento (estudo multidisciplinar), em virtude do que a relação das práticas jurídicas [ao longo dos anos] e a Memória tornou possível o enquadramento do tema no referencial teórico adotado. Em outras palavras, somente refutando o estatuto científico do Direito e relacionando-o com os estudos da Memória é que foi possível tomá-lo (o Direito) como objeto de pesquisa às análises empreendidas. Os principais conceitos operacionais de análise foram extraídos da filosofia de Foucault (1969) e também de Ginzburg (1986), em que buscou-se verificar as relações de continuidade e descontinuidade em torno de diversos temas ligados à família: religião, sexualidade, constituição jurídica dos sujeitos, economia, ciência, genética, etc., para averiguar se é possível constatar e (uma vez constatado) em que sentido é possível demonstrar a existência de enunciados sobre a família em circulação na produção legislativa, judicial e literária (livros de doutrina) no Direito brasileiro. Ginzburg (1986), em seu Mitos Emblemas e Sinais, dedica parte da obra às reflexões sobre um modelo epistemológico (ou paradigma) que chama de indiciário. No capítulo Sinais: Raízes de um paradigma indiciário, o autor mostra que, no final do século XIX, emergiu de maneira silenciosa no âmbito das ciências humanas este paradigma epistemológico ao qual, segundo ele, não se prestou suficiente atenção, e sobre o qual ainda não se teorizou explicita e suficientemente. É a partir deste ponto de vista epistemológico que se procurou tratar/analisar o corpus de pesquisa, de modo a permitir o rastreamento e a identificação dos elementos que guardam relação com o tema da família, para ao final relacioná-lo com as práticas mnemônicas e os estudos da Memória. Por fim, tomando a filosofia de Foucault (sua arqueogenealogia) como um conjunto de postulados que se aproxima deste modelo epistemológico indiciário (pela própria noção de história não-linear que oferece, ao lado do seu gosto pelos limiares, seu olhar para os ruídos e para as rupturas, e o abandono de uma relação de causa e efeito entre 2024

fenômenos), decidimos construir o nosso corpus de pesquisa de modo a verificar, seguindo vestígios, sinais ou sintomas, se existem enunciados sobre a família e em que sentido podem ser demonstrados a partir destas materialidades significantes. RESULTADOS E DISCUSSÃO As Ordenações Filipinas (1603) trazem no Título XLVI do Livro IV a regra que disciplina como o marido e mulher torna-se meeiros em seus bens através do casamento. O referido título estabelece o seguinte: Título XLVI: Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade: salvo quando entre as partes outra cousa fôr acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles for contractado (...) E quando o marido e mulher forem casados, por palavras de presente à porta da igreja, ou por licença do Prelado fora della, havendo cópula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda. E posto que elles queiram provar, e provem que foram recebidos por palavras de presente, e que tiveram cópula, se não provarem que foram recebidos à porta da Igreja ou fora della, com licença do Prelado, não serão meeiros (...) Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste que para presumir Matrimonio antre elles, posto se se não provem as palavras presentes (Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XLVI). Da leitura do fragmento acima, verificamos que o texto das Ordenações Filipinas estabelece que o casamento válido é somente aquele realizado perante a Igreja, diante do sacerdote, ou seja, o matrimônio (um dos sacramentos da Igreja Católica). Há, portanto, uma justaposição entre o sentido de ilicitude/ilegalidade e pecado. Sem o casamento na Igreja (cerimônia solene) ou sem a licença do Prelado, o casamento era considerado ato nulo, inclusive em relação aos seus efeitos patrimoniais em questão (meação). Há, portanto, uma tensão entre os discursos econômico e religioso que impõem à lei o dever contraditório de admitir três formas de união (o matrimônio, o casamento presumido e a união livre), acolhendo as duas primeiras para os efeitos patrimoniais do Título XLVI, enquanto contraditoriamente aceite apenas a primeira delas como efetivo casamento (o matrimônio, o casamento religioso). Nota-se, assim, que Título XLVI retoma de forma bastante clara, as formas de 2025

casamento da Idade Média, do modo como explica Silva (1993), ao assinalar que neste período (Idade Média) havia três tipos de casamento: O casamento de benção, solene, ad benedictionem ou in conspectu ecclesiae, celebrado com toda a publicidade perante o sacerdote; o casamento dito de pública fama ou de maridos conheçudos que não tinha celebração e assentava apenas na posse de estado ; o casamento a furto ou de juras (também chamado clandestino ) que se realizava com o sem a presença de ministro eclesiástico (SILVA, 1993, p. 61). Esta mesma contradição pode ser constatada no Livro V das Ordenações Filipinas, quando trata dos crimes ligados à sexualidade. Embora os Títulos XIX e XXVIII consideram crimes (e pecado), respectivamente casar duas vezes (título XIX) e, sendo casado, possuir barregã (título XXVIII), permite que os Cortesãos as possuam, desde que não as levem à corte (ou pelo menos dá fortes indícios de que este comportamento era comum). Atualmente, o Direito brasileiro se estruturou em regras bastante similares de estruturação do casamento. Embora não haja mais a imposição para que o casamento seja religioso (mas apenas civil), continua a impedir as pessoas casadas de contraírem novo casamento, conforme se verifica no art. 1.521, inciso VI, do Código Civil de 2002. Porém, de forma contraditória reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (inclusive, facilitando a sua conversão em casamento) e os direitos e deveres das pessoas que, por vezes, mantém uniões estáveis (verdadeiros casamentos de fato) paralelos aos casamentos, com importantes efeitos patrimoniais envolvidos. Diferentes decisões têm surgido em torno deste tema, mostrando, por um lado, a impossibilidade de enquadramento do Direito no rol das disciplinas científicas (uma vez demonstrada a sua natureza Retórica) e, por outro, a necessidade de sua problematização/ apropriação como objeto de memória, para análises mais adequadas à sua constituição epistemológica (como prática social e política). CONCLUSÕES Vista desta maneira, a questão jurídica passada e presente em torno do casamento (e, por conseguinte, da família) coloca em xeque a noção de evolução do Direito e do Direito como ciência, na medida em que permite constatar que as contradições intrínsecas 2026

de legislações pretéritas se encontram retomadas, reativadas e atualizadas em leis mais atuais. O conflito entre o formalismo do casamento (ainda que somente civil) e a espontaneidade das uniões livres reascende o debate de questões controversas, como, por exemplo: o direito das esposas (casadas) versus o direito das concubinas (casadas de fato), dando conta de que o que o reconhecimento de alguns diretos gere automaticamente a subtração de outros. Dá conta também de que o fator econômico continua a ser o elemento preponderante na definição legal de família, na medida em que dela decorrem formas importantes de transmissão de patrimônio. Os resultados parciais obtidos comprovam, portanto, que, analisada pelo viés da Memória, a família pode se tornar objeto de discursividade, havendo indícios para se afirmar que há sim um discurso sobre a família no Direito brasileiro, muito embora essa hipótese (da existência do discurso e de sua demonstração) somente possa ser efetivamente comprovada [ou refutada] com o final da pesquisa. Palavras-chave: Memória. Direito. Ciência. Discurso. Epistemologia. REFERÊNCIAS FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. Edição original: 1969. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Edição original: 1986. SILVA, Maria Joana Corte-Real Lencart e. A mulher nas Ordenações Manuelinas. In: Revista de História, Porto, n. 7, 1993. Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Universidade do Porto. Vol.1(1978) - vol. 13(1995). ISSN 0870-4511. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/site/default. aspx?qry=id04id1230id2240&sum=sim. Acesso em 30 nov. 2016. 2027