1 GT-ÉTICA E TEORIAS A ordem do discurso no jornalismo: elementos teórico-metodológicos do pensamento de Foucault aplicados à análise da cobertura do escândalo político. RESUMO Constitui um relato sobre a aplicação de algumas categorias existentes na obra de Michel Foucaul, particularmente, a de comentário e autor, para a análise da ordem discursiva que rege a cobertura jornalística de uma forma geral, com enfoque específico na política e no escândalo político, considerado nesse caso um acontecimento mediático e discursivo por excelência. Ao cursar a disciplina de domínio conexo discurso e poder no Curso de Pós-Graduação em Ciência Política da UNB, houve um contato com a discussão que fundamenta a análise de discurso de origem francesa, e também com o pensamento desse autor que tem uma visão esclarecedora sobre a própria noção de discurso e também contempla uma idéia original sobre o poder, numa visão capilar, que pode contribuir na compreensão dessa relação entre mídia e política no Brasil. A reflexão, portanto, extrapola o seu valor teórico, ao sinalizar para a importância pedagógica de um aprofundamento conceitual em um leque mais amplo de disciplinas que possam capacitar o aluno a pesquisar no campo da comunicação, sem abdicar de sua especificidade de abordagem. PALAVRAS-CHAVE Mídia Jornalismo Pesquisa Discurso Poder Michel Foucault A proposta de pesquisa contida neste texto compõe um conjunto de reflexões inerentes à construção da tese que será apresentada à qualificação no Programa de Pós- Graduação em comunicação da Universidade de Brasília. Representa um esforço para um reconhecimento e aprofundamento dos principais referenciais teóricos e metodológicos mobilizados em função desse objetivo. Parte do estudo dos elementos que regem o funcionamento da linguagem jornalística, especificamente, nos grandes jornais impressos de referência nacional, da cobertura jornalística que constroem sobre aquilo que estamos considerando como acontecimento discursivo por excelência, o escândalo político. Essa perspectiva tem como objeto e problema de análise as relações de poder que vêm sendo constituídas entres a mídia e a política, naquilo em que elas são peritas e constantemente confrontadas, que é a capacidade de produzir e controlar o discurso, portador de poderes e perigos em sua aleatoriedade e materialidade constitutivas. Seguindo a trilha do pensamento de Foucault (2008, p. 10), o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. José César dos Santos é doutorando em comunicação da Universidade de Brasília (UNB), na linha de pesquisa Jornalismo e Sociedade. Professor e coordenador do Curso de Comunicação-Jornalismo da Faculdade São Francisco de Barreiras (FASB), afastado parcialmente de suas funções.
2 As questões que nortearam inicialmente a nossa pesquisa passam por uma série de transformações ou momentos de verificação de sua consistência e coerência teóricas e metodológicas, na medida em que percorremos o labirinto do próprio saber comunicacional e das disciplinas e ciências com as quais se tem possibilidade e necessidade de dialogar. Neste caso, percebemos a oportunidade de compreender melhor como se coaduna o vasto repertório conceitual dos estudos da linguagem e da análise do discurso com a discussão presente na ciência política a respeito do poder, na sua acepção mais ampla, e do poder político numa perspectiva mais específica. Destacase para um conhecimento maior, os conceitos-chaves que compõem a análise de discurso, tanto na sua formulação básica inicial, quanto em seus desenvolvimentos e derivações posteriores, inclusive formulando um quadro geral dos diversos tipos existentes com suas respectivas diferenças de abordagem. Para condensar a adensar mais ainda as aproximações possíveis dos horizontes delineados pela disciplina e os que vislumbramos na construção do projeto de tese, optamos por uma incursão no pensamento e nas reflexões apresentadas por Michel Foucalt (, suas categorias basilares, e suas possíveis correlações com o discurso midiático e jornalístico. 2 HIPÓTESE A hipótese que norteia essa proposta de investigação considera que o jornalismo e de forma mais abrangente a mídia contêm uma ordem discursiva própria, com um conjunto de procedimentos de controle, seleção, organização e distribuição do discurso midiático que lhes são inerentes e que lhe conferem poder na sua interface com a política, passível de uma melhor caracterização principalmente em momentos de crises institucionais, no caso, o escândalo político. Consideramos que a cobertura que os meios de comunicação fazem dos escândalos políticos, o jornalismo de escândalos, subordina a política e os políticos a uma série de enquadramentos restritivos, de forte presença e permanência no âmbito da esfera pública política no Brasil. Dentro dessa configuração, é possível pensar o jornalismo como um ator político e não apenas um elemento de mediação do discurso e da ação política das diversas esferas, atores e instâncias da sociedade brasileira?
3 3 ABORDAGEM Qualquer pesquisador que se atreve a estruturar o seu problema de pesquisa a partir de numa análise de discurso, seja em qual abordagem for, tem o compromisso de situá-la no conjunto geral das principais correntes existentes na filosofia da linguagem. De um lado, o subjetivismo idealista, que propõe a língua como produto do psiquismo individual, e de outro, o objetivismo abstrato, que toma o sistema lingüístico como centro organizador da língua. E, de alguma forma, levar em consideração as grandes questões relativas ao desenvolvimento do pensamento filosófico-linguístico: Mas o que é que se revela como o verdadeiro núcleo da realidade linguística? O ato individual da fala a enunciação ou o sistema da língua? E qual é, pois, o modo de existência da realidade lingüística? Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas? (BAKHTIN, 1995, p. 89). Essa compreensão do fenômeno lingüístico na sua múltipla aparição tem uma implicação profunda na concepção de realidade e história que pode vir a fundamentar a pesquisa que propomos, e por esse motivo, fonte de preocupação e cuidados permanentes. É necessário também situar a nossa análise proposta no debate das diferentes teorias e metodologias empenhadas nos estudos sobre a linguagem, tendo o discurso como ponto de entrecruzamento, mesmo que restem diferenças e distanciamentos significativos. Na análise de discurso, vertente francesa, podemos citar autores internacionais, referências nesse tipo de abordagem (Michel Pêcheux, Dominique Maingueneau e o próprio Michel Foucault), além de autores e referências nacionais (Eni Orlandi, Sergio Porto, Flávia Biroli, Mayra Rodrigues Gomes). No tocante análise de discurso de matriz pragmática, que agrega elementos da teoria dos atos de fala e da recepção estética, temos pesquisadores internacionais (John Austin, John Searle, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, Paul Ricouer, Teun van Dijk), e também a produção do pesquisador brasileiro Luiz Gonzaga Motta, que propõe uma espécie de síntese teórico-metodológica dessa tendência, direcionando-a para o estudo das mensagens jornalísticas, na configuração do que ele denomina análise pragmática da narrativa jornalística (MOTTA, 2008). Com isso, pretendemos na medida do possível compor um quadro que nos oriente nas futuras escolhas e permita a coerência e densidade na condução da analise em curso, com a necessária clareza teórica e metodológica exigidas pela pesquisa científica.
4 Uma preocupação correlata em relação à citada anteriormente, é o domínio básico do arsenal conceitual exigido na análise do discurso, seus princípios e procedimentos, começando pela própria noção de linguagem e de discurso, e passando por uma série de conceitos e pares conceituais indispensáveis na composição do dispositivo analítico próprio de cada pesquisador. Entre eles, podemos elencar: autor e sujeito; o imaginário e o real; condições de produção do discurso; formação discursiva e formação ideológica; enunciado e enunciação; paráfrase e polissemia; tipos de leitura e interpretação (ORLANDI, 2007; BRANDÃO 1998). Embora não seja o caso de explorar nesse artigo as questões conceituais e filosóficas apontadas, elas de certa forma nos acompanham em todas as reflexões que se seguem ao longo da abordagem do tema de pesquisa, estabelecendo limites e possibilidades ao esforço analítico empreendido. No que concernem propriamente as relações que vamos estabelecer entre o pensamento de Foucault e a produção e funcionamento discursivo do jornalismo, no primeiro momento, é necessário a apresentação e discussão dos procedimentos externos e internos de controle do discurso, indicando quais deles podem ser considerados de maior incidência e relevância nas formações discursivas que perpassam a produção jornalística contemporânea, principalmente, aquela que gira em torno dos escândalos políticos de grande repercussão social. Para isso é necessário abrir mão de uma visão muito disseminada dentro da prática profissional e também nos espaços acadêmicos de que o jornalismo é uma linguagem genuinamente informativa, tributária dos cânones da objetividade, imparcialidade e verdade, como se fosse necessário apenas vigiá-lo e fazer possíveis correções de um rumo já pré-estabelecido por essa essência fundamental. Dos três grandes sistemas de exclusão do discurso, a palavra proibida e vontade de verdade são mais palpáveis no jornalismo, e este último é o mais se fortalece, incorporando os demais, não cessa de se reforçar, de se tornar mais profunda e incontornável (FOUCAULT, 2008, p. 19). Com relação aos procedimentos internos de controle inerente aos próprios discursos (regidos pelos princípios de classificação, ordenação e distribuição), que agem para submeter as dimensões de acontecimento e acaso que lhes são constituintes, vamos aprofundar a discussão daqueles que podem ser considerados mais diretamente ligados ao jornalismo: comentário e autor. O comentário representa na concepção de Foucault, um desnível entre um texto primeiro e um texto segundo, entre os discursos fundamentais ou criadores e a massa que repetem, glosam, comentam os primeiros: os discursos que se dizem no correr dos dias e das trocas e que passam com o ato mesmo
5 que os pronunciou; e os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer (2008, p. 22). Complementar ao comentário, o autor, outro princípio de rarefação segundo Foucault, provoca o agrupamento do discurso, com efeito de unidade e origem de suas significações, e funciona como um foco de sua coerência: O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu (2008, p. 29). 4 REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. BIROLI, Flávia. Técnicas de poder, disciplinas do olhar: aspectos da construção do jornalismo moderno no Brasil. História, 2007, vol. 26, n. 2, p. 118-143. ISSN 0101-9074 BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 7. ed. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1998. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 16. ed. São Paulo: Loyola, 2008.. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.. Microfísica do poder. Organização, introdução e tradução de Roberto Machado. 11. Reimpressão. Rio de Janeiro: Graal, 1995. GOMES, Mayra Rodrigues. Poder no jornalismo: discorrer, disciplinar, controlar. São Paulo: Hacker; Edusp, 2003. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In: LAGO, Cláudia; BENETTI, Márcia (orgs.). Metodologia de pesquisa em jornalismo. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sérgio Dayrell (orgs.). O jornal: da forma ao sentido. Tradução de Sérgio Grossi Porto. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas-SP: Pontes, 2007. PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Mechel Pêcheux. Tradução de Bethania S. Mariani et al. Campinas, SP: Editora de UNICAMP, 1990.. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi. 2. ed. Campinas- SP: Pontes, 1997. THOMPSON, John B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002.