OS DESAFIOS DA PESQUISA COM CRIANÇAS DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA Lorenzza Bucci FFCLRP/USP

Documentos relacionados
A INFÂNCIA, O BRINCAR E A TRANSDISCIPLINARIDADE: REFLETINDO SOBRE A NECESSIDADE DE UM NOVO OLHAR PARA A CRIANÇA NA ESCOLA

GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS INFÂNCIA, LINGUAGEM E EDUCAÇÃO - GEPILE

Projeto Volta às aulas

3 Creches, escolas exclusivas de educação infantil e escolas de ensino fundamental com turmas de educação infantil

EDUCAÇÃO INFANTIL: UM CAMPO A INVESTIGAR. Leila Nogueira Teixeira, Msc. Ensino de Ciências na Amazônia Especialista em Educação Infantil

DESCONSTRUINDO O NORMATIVO ATRAVÉS DAS MOCHILAS: EXISTEM OUTRAS POSSIBILIDADES DE SER?

RESENHA: POR UMA DIDÁTICA DA MARAVILHA REVIEW: FOR A DIDACTIC WONDER CRÍTICA: PARA UNA MARAVILLA DIDÁCTICA

A IMPLEMENTAÇÃO DO PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: SENTIDOS ATRIBUÍDOS PELOS PROFESSORES À INFÂNCIA E SUA EDUCAÇÃO

EXPERIÊNCIAS VIVIDAS: APRENDENDO PELA PESQUISA NAS CIÊNCIAS DA NATUREZA 1 LIVED EXPERIENCES: LEARNING THROUGH THE RESEARCH IN THE SCIENCES OF NATURE

BANCO DE BOAS PRÁTICAS PARA PERMANÊNCIA E ÊXITO DOS ESTUDANTES DO IFTO

Práticas linguísticas, currículo escolar e ensino de língua: um estudo inicial.

ESTADO DE MATO GROSSO PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPOS DE JÚLIO SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO CRECHE MUNICIPAL PEQUENO PRINCIPE

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO FAED

Contando e Recontando histórias na Educação Infantil...

DIAGNÓSTICO DO ENSINO E APRENDIZADO DA CARTOGRAFIA NOS DIFERENTES NÍVEIS DE FORMAÇÃO

Relacionamento Interpessoal na Auditoria: Você está preparado? Elisabeth Sversut

META Apresentar rotinas de trabalho que promovam a familiaridade dos alunos com os diversos comportamentos leitores.

PROJETO DE OBSERVAÇÃO NO MINIMATERNAL: UM OLHAR ATENTO DO PROFESSOR

INFÂNCIA PLURAL: CRIANÇAS DO NOSSO TEMPO. com e sobre crianças pequenas que freqüentam contextos de creches, pré-escolas e

Palavras-chave: Ludicidade. Histórias. Pedagogia social. Crianças.

A implementação da base nacional comum curricular da educação infantil nos sistemas de ensino - estudo em cinco estados

FRIDAS: UMA PROPOSTA DE GRUPO DE ESTUDOS SOBRE GÊNERO E DIVERSIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR.

VISÃO DE PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL SOBRE SUA PRÁTICA DE COMUNICAÇÃO ORAL NO CONTATO COM OS ALUNOS

FURG A ABORDAGEM GRUPAL E FAMILIAR NA PERSPECTIVA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA PREVENÇÃO AO USO DE ÁLCOOL O OUTRAS DROGAS

PARA QUEM A ESCOLA GAGUEJA?

3. DESCONSTRUINDO O NORMATIVO ATRAVÉS DAS MOCHILAS: EXISTEM OUTRAS POSSIBILIDADES DE SER?

Pilares de Sustentabilidade de Carreiras

HOMOSSEXUALIDADE NA ESCOLA: ELIMINANDO PARADIGMAS SOCIAIS.

BNCC e a Educação da Infância: caminhos possíveis para um currículo transformador. Profa. Maria Regina dos P. Pereira

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA RESUMO

INSTITUTO FEDERAL DO AMAZONAS UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO EVANGE GUALBERTO

Education and Cinema. Valeska Fortes de Oliveira * Fernanda Cielo **

Referências bibliográficas

Um novo olhar sobre o portfólio na educação infantil

O PAPEL DAS INTERAÇÕES PROFESSOR-ALUNO NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA

A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA PAISAGEM NO ENSINO DA GEOGRAFIA

A ESCOLA VISTA PELAS CRIANÇAS 1 SEEN BY SCHOOL CHILDREN S

Projeto Mediação Escolar e Comunitária

A IMPORTÂNCIA DA MONITORIA DE NEUROANATOMIA FUNCIONAL NO CURSO DE PSICOLOGIA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Programa Analítico de Disciplina EFI141 Teoria de Ensino do Jogo

Acompanhamento Fonoaudiológico Para Crianças Com Dificuldades. de Aprendizagem

Espaços educativos no século XXI - Representações midiáticas de professores Por Talita Moretto

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO FAED

A ORALIDADE NO ENSINO FUNDAMENTAL: REFLEXÕES SOBRE O USO DOS GÊNEROS ORAIS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Daniel Sampaio (D. S.) Bom dia, João.

TUDO SOBRE MIM Nair Alves Tavares Silvia Maria Barreto dos Santos Pedagogia/Ulbra Cachoeira do Sul RESUMO

OS VALORES. do grupo de empresas Handtmann

CONSTRIBUIÇÕES DO PIBID NA FORMAÇÃO DOCENTE

Palavras-chave: Formação e Profissionalização docente; Estado da arte; ANPEd

OS JOVENS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM BUSCA DA SUPERAÇÃO NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO

ESCOLHA DO NOME DA TURMA:

Área: Formação Pessoal e Social. Domínio: Identidade / Auto - estima (5anos)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO CENTRO DE ENSINO E PESQUISA APLICADA À EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL

EDUCAÇÃO INFANTIL E A SEXUALIDADE: O OLHAR DO PROFESSOR

TÍTULO: FAMÍLIA E ESCOLA: PARCERIA E ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS CATEGORIA: EM ANDAMENTO ÁREA: CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS SUBÁREA: PEDAGOGIA

PRÁTICAS SOCIAIS DE LEITURA E ESCRITA NO ESPAÇO ESCOLAR: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA ESCOLA DO CAMPO

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PLANO DE ENSINO DA DISCIPLINA

A DOCUMENTAÇÃO DA APRENDIZAGEM: A VOZ DAS CRIANÇAS. Ana Azevedo Júlia Oliveira-Formosinho

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL COM PERSONAGENS NEGROS: CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA DAS CRIANÇAS NEGRAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL 1

E.E. Professora Lurdes Penna Carmelo Sala 1/ Sessão 1

PLANO DE ENSINO DIA DA SEMANA PERÍODO CRÉDITOS. Segunda-Feira Vespertino 03

O cotidiano musical e a utilização da Música na Educação Infantil

UTILIZAÇÃO DE UM BINGO COMO FERRAMENTA DE TRABALHO NAS AULAS DE CIÊNCIAS

COLÉGIO CORAÇÃO DE MARIA Educando para a Vida, a Solidariedade e a Paz LÍNGUA PORTUGUESA 8º ano Profª Adriana Pacheco Pozzebon

DIÁLOGO PEDAGÓGICO PNAIC 2016 SEQUÊNCIA DIDÁTICA DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

MATEMÁTICA E ANOS INICIAIS: VIVÊNCIAS E ANGÚSTIAS DE PROFESSORAS DE UMA ESCOLA PÚBLICA DE PANAMBI

UM ESTUDO SOBRE AS FORMAS GEOMÉTRICAS EM NOSSO COTIDIANO. Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Minas Gerais

Transcrição de Entrevista n º 25

Brincadeiras Tradicionais Infantis

Plano da Intervenção

REFLEXÃO DOCENTE SOBRE A FORMAÇÃO OFERECIDA NO MUNICIPIO DE FORTALEZA

POLÍTICA DE EDUCAÇÃO INFANTIL FRENTE AOS DESAFIOS DA BNCCEI. Rita Coelho

AMIGO VERDADEIRO do DEUS VERDADEIRO. 17 de Agosto de 2011 Ministério Loucura da Pregação. Já vos não chamarei servos,

A DISCIPLINA DE DIDÁTICA NO CURSO DE PEDAGOGIA: SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL

A EDUCAÇÃO INCLUSIVA: CONCEPÇÃO DOS DISCENTES SOBRE A FORMAÇÃO INICIAL DOS LICENCIANDO EM QUÍMICA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA

Campus de Presidente Prudente PROGRAMA DE ENSINO. Área de Concentração EDUCAÇÃO. Aulas teóricas:08 Aulas práticas: 08

Desenvolvendo o Pensamento Matemático em Diversos Espaços Educativos

CRENÇAS E EXPERIÊNCIAS DE APRENDENTES DO ENGLISH CLUB

Fiquei encantada em poder falar no show Grandes Ideias, sobre 5 pontos que pode realmente fazer a diferença em uma empresa que ainda é pequena e em

Instituto Politécnico da Guarda. Escola Superior de Educação, Comunicação e Desporto. Catarina José Camacho de Caires nº 6509

ALIANDO A TEORIA E A PRÁTICA DOCENTE NO COTIDIANO DA ESCOLA ATRAVÉS DO PIBID

8º Congresso de Pós-Graduação A AFETIVIDADE NA MEDIAÇÃO DO PROFESSOR DO ENSINO MÉDIO: REFLEXÕES A PARTIR DO DISCURSO DO ALUNO

DAR E RECEBER NAS EMPRESAS: OU PORQUE É QUE VALE A PENA INVESTIR NAS PESSOAS

Unidades de Aprendizagem: refletindo sobre experimentação em sala de aula no ensino de Química

Oficina Psicopedagógica

Centro de Ciências Humanas e Letras/ Departamento de Psicologia - Probex. O processo de adoecimento não se restringe a determinações fisiológicas, ao

ISSN do Livro de Resumos:

Nome: Sexo: Idade: Data: / /

A LITERATURA INFANTIL E O DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

13 CONEX Apresentação Oral Resumo Expandido 1 O PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM A PARTIR DO DOCENTE

ENSINO MÉDIO: INOVAÇÃO E MATERIALIDADE PEDAGÓGICA EM SALA DE AULA 1. Palavras-Chave: Ensino Médio. Inovação Pedagógica. Pensamento docente.

Pensando a Didática sob a perspectiva humanizadora

O TRABALHO COM A ORALIDADE: CONCEPÇÕES DE ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II A RESPEITO DA FALA PÚBLICA

A IMPORTÂNCIA DA PSICOMOTRICIDADE NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA NA EDUCAÇÃO INFANTIL.

O USO DA EXPERIMENTAÇÃO DE CIÊNCIAS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL EM TRÊS ESCOLAS DE BOM JESUS PIAUÍ

História e História da Educação O debate teórico-metodológico atual*

PLANOS DE VOO: ENCONTROS E VIAGENS COM CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Sequência didática sobre artigo de opinião - estudantes concluintes de Ensino Médio em Escolha profissional

ENTREVISTA COM FAMÍLIA DE PACIENTES PÓS-INFARTO AGUDO DO MIOCÁRDIO 1 RESUMO

As capacidades lingüísticas da alfabetização

Transcrição:

OS DESAFIOS DA PESQUISA COM CRIANÇAS DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA Lorenzza Bucci FFCLRP/USP Resumo Na área acadêmica tem sido crescente o número de pesquisas que tem por objeto de estudo a fala das crianças, embora ainda haja uma lacuna, sobretudo daquelas que tratam de assuntos escolares. Assim, este texto propõe uma reflexão sobre os desafios de realizar pesquisa com crianças a partir do que apontam os estudos na área e a experiência em ouvir crianças sobre o que pensam do trabalho da diretora em uma pré-escola municipal. Para tal estudo, foram realizadas observações em uma turma de segunda etapa (crianças com cinco anos) e Rodas de Conversa em pequenos grupos. O desafio inicial e talvez o mais instigante seja na construção de uma relação de confiança entre o pesquisador e as crianças. Junto a este, está o que compreende o discernimento que as crianças possuem sobre o que devem ou não dizer a um adulto. Além desses dois importantes desafios, há outro tão delicado quanto os primeiros apresentados, que é o modo em como ouvir as crianças. Por fim, o desafio que estará sempre presente é como não enviesar o olhar do pesquisador sobre a fala das crianças. Palavras-chave: pesquisa com crianças; voz das crianças; metodologia de pesquisa com crianças. OS DESAFIOS DA PESQUISA COM CRIANÇAS DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA Introdução Na área acadêmica tem sido crescente o número de pesquisas que tem por objeto de estudo a fala das crianças, embora ainda haja uma lacuna, sobretudo daquelas que tratam de assuntos escolares (CRUZ, 1987; OLIVEIRA, 2001; CAMPOS e CRUZ, 2006; ISAIA, 2007; OLIVEIRA- FORMOSINHO e ARAÚJO, 2008; OLIVEIRA- FORMOSINHO e LINO, 2008; MARTINS e BRETAS, 2008; CRUZ, S, 2009; CRUZ, R, 2009; DEMARTINI, 2009; QUINTEIRO, 2009; GOBBI, 2009; CORREA e BUCCI, 2012). Esta lacuna pode ser explicada pela escuta de outros sujeitos em nome das crianças (DEMARTINI, 2009). Além disso, pode-se afirmar que os desafios inerentes neste tipo de pesquisa

são muitos e demanda do pesquisador, em primeiro lugar, considerar a criança como um sujeito social. Neste sentido, este texto tem por objetivo refletir sobre estes desafios a partir do que apontam as pesquisas já citadas e a experiência em ouvir crianças sobre o que pensam do trabalho da diretora em uma pré-escola municipal. É necessário esclarecer que, diante dos limites deste trabalho, muitos pontos apresentados terão como objetivo suscitar a discussão, a reflexão e, por que não, outros desafios em pesquisas com crianças. Apresentando a pesquisa O estudo que ancora este texto é uma pesquisa em nível de mestrado, cujo objetivo é analisar o que as crianças entendem sobre a figura da diretora 1 de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI). Para tanto, foram realizadas observações em uma turma de segunda etapa (crianças com cinco anos), durante três meses, nas quais estava previsto a participação da pesquisadora em todos os momentos da rotina das crianças, com objetivo de aproximação e criação de vínculos com os pequenos. Após esse momento, foram realizadas Rodas de Conversa (RC), em pequenos grupos, com as crianças da turma. As RC foram organizadas em três temas, sendo que os dois primeiros foram realizados sob a orientação do método Desenho com História 2, cujos temas são: 1) O que as crianças gostam na escola e 2) O que as crianças não gostam na escola. O último tema abordado na terceira sessão de RC está diretamente ligado ao objetivo da pesquisa e foi realizado sob a orientação do método de História a Completar 3, no qual as crianças devem dar sequência a uma história apresentada. Dessa forma, a história era sobre uma escola que possuía alguns funcionários e as crianças descreveram a diretora e suas relações/reações com as crianças da história. Apresentadas, brevemente, a pesquisa e a metodologia, parte-se para a reflexão sobre os desafios encontrados no campo e o que propõem as pesquisas da área. Compreendendo os desafios O desafio inicial e talvez o mais instigante seja na construção de uma relação de confiança entre o pesquisador e as crianças, uma vez que as pesquisas foram realizadas em escolas e, com exceção de Isaia (2007), todos os autores apontaram para uma lógica marcada pela hierarquia dos adultos sobre as crianças, na qual elas deveriam obedecer fielmente às imposições deles. Sendo assim, conforme propõem Júlia Oliveira-Formosinho e Dalila Lino (2008) e Oliveira- 1 Utilizamos a palavra no feminino, pois na escola campo de pesquisa era uma mulher que ocupava esse cargo. 2 Método criado pelo Prof. Dr. Walter Trinca. 3 Método criado por Madeleine B. Thomas.

Formosinho e Sara Barros de Araújo (2008), as crianças conhecem as interações frequentes na escola, quem manda nela e percebem como suas ações serão recebidas e respondidas pela professora. De acordo com as primeiras autoras, a relação com a professora é (...) um importante fato na formação da atitude das crianças face à autoridade e ao poder. (OLIVEIRA- FORMOSINHO e LINO, 2008, p. 58) Na escola campo de pesquisa, as crianças eram submetidas a inúmeras regras de comportamento, sem ao menos terem alguma explicação sobre elas. A presença da pesquisadora, embora fosse um sujeito que frequentava menos dias a escola e que se esforçava para estar próxima às crianças, ainda assim era uma figura adulta dentro da lógica hierárquica. Nesse sentido, foi empenhado todo tempo disponível que a professora propunha para a pesquisadora brincar com as crianças, estreitar laços e ser confidente delas, uma vez que as crianças revelaram segredos e ressaltaram que não era para contar à professora. Estes esforços são necessários, pois como propõe Zeila Demartini (2011): (...) se o entrevistador não conseguir estabelecer com as crianças certo grau de relacionamento, se não conseguir estabelecer certo grau de respeito, de intimidade, para que se crie certa abertura, não vai obter fala nenhuma, não vai obter resposta àquilo que está propondo. (DEMARTINI, 2011, p. 17) Embora a relação estabelecida com as crianças tenha sido bem estreita, inclusive de participação em tarefas, uma vez que as crianças demandaram à professora que entregasse a tarefa e a tarja de nome para a pesquisadora, ainda aconteceram momentos, em RC, que as crianças davam suas respostas como se estivessem conversando com algum adulto que fosse funcionário da escola. Isso porque as crianças já possuem discernimento para saber o que devem ou não dizer a um adulto (CRUZ, 2009), sendo este outro desafio enfrentado em pesquisas com crianças. Além desses dois importantes desafios, há outro tão delicado quanto os primeiros apresentados, que é o modo em como ouvir as crianças. As pesquisas afirmam que é necessário aprender a ouvi-las e propõe algumas reflexões. O ponto crucial deste desafio é proposto por Jucirema Quinteiro (2009), que questiona a transformação de um sujeito social em um objeto científico, uma vez que as crianças são consideradas os mudos da história. A princípio é preciso compreender que as crianças são (...) sujeitos sociais e culturais que elaboram modos de pensar, sentir, saber, fazer e dizer próprios. (MARTINS FILHO, PRADO, 2011, p. 4) No entanto, essas elaborações estão marcadas pelas experiências que possuem e na relação com o outro mais experiente (VIGOTSKI, 2007). Assim, as crianças pequenas possuem conhecimento sobre a escola, dessa forma, falar sobre ela e as relações que lá acontecem é algo ao mesmo tempo rico pela visão dada pelas crianças e estarrecedor, uma vez que elas relataram frequentes abusos de poder e desrespeito. Os estudos apontam, assim, para a necessidade de um olhar atento e de possibilidades de

métodos para apreender a fala das crianças. Entretanto, em grupos de crianças, há aquelas que falam e aquelas que se recusam a falar, Demartini (2009) ressalta a importância de se conhecer os contextos de pesquisa e trabalhar com o que as crianças deixam de falar, já que, apesar de existir crianças que não falam, mas de alguma forma elas expressam suas opiniões, então: É preciso verificar quais as marcas de cada criança, as marcas de infância e os processos de socialização. (idem, ibidem) Márcia Gobbi (2009) traz uma reflexão acerca do desenho e da oralidade, uma vez que revelam a visão e a concepção das crianças diante de seu contexto social, histórico e cultural. Dessa forma, a autora conjuga a produção do desenho com a oralidade e alerta para a importância daquilo que é falado durante a produção do desenho, o que contribui para a apreensão da fala das crianças. No desenrolar das RC, percebeu-se que aquelas em que o desenho estava presente, as crianças apontaram detalhes e se detiveram mais em algumas histórias. Contudo, em vários momentos elas demonstraram tentativas de resistência ao tema, sobretudo quando se tratava de assuntos que não as agradava. Essa negação também contribui como fala das crianças, uma vez que elas estão se posicionando diante de algo que as desagrada. Considerações Conforme já mencionado, este texto teve por finalidade suscitar questionamentos e reflexões sobre os desafios de fazer pesquisa com as crianças. Um dos desafios que estará sempre presente e que demanda muita atenção e dedicação do pesquisador é como não enviesar o olhar sobre a fala das crianças e como, de fato, apreender o que elas dizem. Para além destes desafios, resta outro e que abarca não só a comunidade acadêmica, como toda a sociedade, que é considerar a criança como sujeito social e participante das decisões em seus contextos de vida, de forma que crianças e adultos se envolvam uns com outros na tomada de decisões (MOSS, 2009), exercendo a participação democrática como exercício de cidadania. Bibliografia CAMPOS, M. M.; CRUZ, S. H. V. Consulta sobre qualidade na educação infantil: o que pensam e querem os sujeitos deste direito. São Paulo: Cortez, 2006. CORREA, B.; BUCCI, L. Expectativas de um grupo de crianças sobre o ensino fundamental a partir de suas vivências em uma pré-escola. 35ª Reunião Anual da ANPED. Porto de Galinhas, PE. 21 a 24 de outubro de 2012. Disponível em: http://35reuniao.anped.org.br/images/stories/trabalhos/gt07%20trabalhos/gt07-1799_int.pdf Acessado em: 15 de março de 2015.

CRUZ, R. A pré-escola vista pelas crianças. 32ª ANPED, GT 07, 2009. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/32ra/arquivos/trabalhos/gt07-5619--int.pdf Acessado em: 23 de novembro de 2011. CRUZ, S. H. V. A representação da escola em crianças da classe trabalhadora. Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia USP, 1987.. Brincar correndo, antes que a tia chegue: percepções e reações de crianças acerca de suas experiências na pré-escola. In: Anais do V Congresso Paulista de Educação Infantil. Educação Infantil: balanço de uma década de luta. São Paulo, set., 2009. p. 1-15 DEMARTINI, Z. de B. F. Infância, Pesquisa e Relatos Orais. In: FARIA, A. L. G. de; DEMARTINI, Z. de B. F.; PRADO, P. D. (orgs.) Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. GOBBI, M. Desenho infantil e Oralidade: Instrumentos para pesquisas com crianças pequenas. In: FARIA, A. L. G. de; DEMARTINI, Z. de B. F.; PRADO, P. D. (orgs.) Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. ISAIA, C. A participação infantil nos processos de gestão na escola da primeira infância. Dissertação apresentada a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007. MARTINS FILHO, A. J.; PRADO, P. D. (orgs.) Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. MARTINS, M. C.; BRETAS, S.A. O que dizem as crianças sobre sua escola? O debate teóricometodológico da pesquisa com crianças na rede pública de educação infantil. 31ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação ANPED, GT 07, 2008. Disponível em: http://31reuniao.anped.org.br/1trabalho/gt07-4328--int.pdf Acessado em: 27 de setembro de 2014. MOSS, P. Introduzindo a política na creche: a educação infantil como prática democrática. Psicologia. USP. São Paulo, 2009, vol.20, n.3. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v20n3/v20n3a07.pdf Acessado em: 25 de outubro de 2014. OLIVEIRA, A. M. R. Com olhos de criança: o que elas falam, sentem e desenham sobre sua infância no interior da creche. 24ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Educação, GT 7, 2001. Disponível em: http://24reuniao.anped.org.br/tp.htm Acessado em: 27 de setembro de 2014. OLIVEIRA-FORMOSINHO, J. e ARAÚJO, S. B. A construção social da moralidade: a voz das crianças. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, J. (org.) A escola vista pelas crianças. Porto Editora, Porto Portugal, 2008. ; LINO, D. Os papeis das educadoras: as perspectivas das crianças. In: OLIVEIRA- FORMOSINHO, J. (org.) A escola vista pelas crianças. Porto Editora, Porto Portugal, 2008. QUINTEIRO, J. Infância e Educação no Brasil: Um campo de estudos em construção. In: FARIA, A. L. G. de; DEMARTINI, Z. de B. F.; PRADO, P. D. (orgs.) Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007.