Entrevista com Ignácio Cano 1



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Transcrição:

Entrevista com Ignácio Cano 1 Fundação Heinrich Böll: Ignacio, quais são os impactos da participação de membros das milícias no legislativo para o avanço da democracia em nosso país? Ignácio Cano: O impacto é realmente notável. Primeiro no sentido de que a participação no legislativo, e não só no legislativo, mas no executivo também, dificulta o desmantelamento das raízes do crime organizado. Nós temos isso na Baixada Fluminense, com os grupos de extermínio, há muito tempo: vereadores e prefeitos fazem parte disso. Então, o sistema de controle social junta o velho clientelismo, por um lado, com intimidação armada por outro. Isso faz com que seja muito difícil extirpar esse problema, e a possibilidade de mudança social para uma sociedade mais democrática é completamente inviabilizada por essa estrutura. Quando a gente pensa em direitos humanos, que vigência os direitos humanos podem ter num lugar onde as figuras de poder estão associadas ao extermínio? Fundação: Como a sociedade civil organizada pode atuar no enfrentamento das milícias? Ignácio: Dentro das suas limitações, a principal coisa que a sociedade civil organizada pode fazer é conscientizar as pessoas. Convencer as pessoas de que não é possível continuar votando nessas figuras, mesmo que se tenha um benefício em curto prazo dentro desses mecanismos clientelistas. Porque, é claro, que essas pessoas chegam ao poder não só através da intimidação, mas também com o uso de mecanismos de clientelismo. É a mesma coisa que o tráfico faz... É essa duplicidade, intimidação e clientelismo, que é tão difícil de combater. Isso inviabiliza uma sociedade que funcione melhor, mais eficiente, mais justa. O segundo ponto é a cobrança do próprio aparato do Estado que exerça sua função de fiscalização, de investigação e de punição que ainda não está sendo exercida de maneira suficiente. A sociedade tem que cobrar isso do Estado e do sistema de justiça criminal que façam seu papel e coloquem essas pessoas na cadeia, como em alguma medida está sendo feito agora. Fundação: Como você vê o papel das associações de moradores dentro desse quadro? Ignácio: Uma das coisas mais interessantes da pesquisa foi verificar que várias comunidades sofreram uma abordagem da milícia, resistiram e conseguiram mandar os milicianos embora ou pelo menos quebrar o monopólio comercial em alguns setores, como venda de gás, etc. Isso mostra que o desequilíbrio de poder é muito variável de local pra local e de circunstância para circunstância. Quando o tráfico domina anteriormente e trata-se de um local de muita violência, a 1 Professor adjunto do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ

milícia entra e ninguém resiste. Mas, quando a milícia em locais onde não havia tráfico, em alguns casos a comunidade é capaz de resistir. Enfim, um dos grandes custos para uma sociedade democrática e para a sociedade em geral dessa dominação de grupos armados, seja tráfico ou milícia, é a inviabilização de lideranças democráticas que possam defender direitos das comunidades carentes de uma forma mais eficiente. Dentro do livro tem uma pesquisa da Lia Rocha e do Itamar Silva que mostra que as lideranças comunitárias, por um lado, são estigmatizadas por uma associação com o tráfico ou com as milícias, e do outro lado, cobra-se dela exatamente essa intermediação para que muitas vezes o Estado e até mesmo as ONGs possam entrar nessas comunidades. Então eu acho que a gente tem que ter muito respeito por essas pessoas que trabalham nas associações de moradores, em condições muito difíceis e numa situação em que a fronteira entre trabalhar com esse contexto de tráfico e milícias e colaborar com ele é muito fina. Às vezes essa fronteira é ultrapassada e, de fato, muitas lideranças têm sido acusadas, presas, etc. Algumas delas inclusive têm sido criminalizadas injustamente. Outras, não. A gente tem que agradecer, como sociedade, que haja pessoas que estão dispostas a desempenhar esse tipo de papel. Fundação: É notório que, em alguns momentos e em determinadas regiões, as comunidades pobres chegam a apoiar as milícias e até mesmo a violência. Como você vê essa postura? Ignácio: A gente não consegue proteger as pessoas que denunciam. Nós temos testemunhos na pesquisa de pessoas que foram fazer denúncia na Corregedoria de Polícia e, quando voltaram para a comunidade, a milícia já estava sabendo. Houve também o caso do líder da Kelson, que denunciou a milícia e depois foi assassinado. Então, se a gente não consegue nem proteger quem faz denúncia, como é que vamos cobrar da comunidade uma atitude corajosa? Nós teríamos que ser capazes de proteger pra depois cobrar. Enquanto isso não acontece, a gente pode animar, encorajar... mas as pessoas têm que prezar pela sua segurança. Essas pessoas sempre foram submetidas a uma pedagogia da violência que é histórica. Elas aprenderam que controle social se faz assim, matando gente, que quem sai da linha é morto. No mínimo é espancado ou expulso da comunidade. Então, as pessoas naturalizam isso. Nós temos que mudar esse quadro, mas também temos que compreender que essas pessoas só naturalizam essa prática porque só viveram isso até agora. Então, esperar que essas pessoas de um dia para o outro vão denunciar, chamar a polícia, vão acionar o Estado... O Estado nunca existiu nessas comunidades. Não se pode cobrar um heroísmo irreal das pessoas. Fundação: Quais os aspectos mais relevantes do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro? Ignácio: Para mim, as três coisas mais impactantes foram as seguintes: a primeira é que a milícia não tem um parâmetro; a milícia tem muitas realidades diferentes com o mesmo nome. Portanto, não há unificação, não há uma estrutura piramidal, não há ninguém que controle as milícias de

forma geral. E isso abre a possibilidade de conflitos entre elas. Já temos alguns indícios e tenho muito medo que daqui a quatro, cinco anos haja guerra entre milícias assim como hoje temos guerra entre facções de traficantes. A segunda coisa, que eu assinalei antes, é que o comércio consegue resistir, algumas vezes à entrada milícias. E, em terceiro, o fato de que em alguns lugares a milícia também atua no tráfico de drogas, seja comercializando drogas de fato ou permitindo que o tráfico ocorra livremente. Esses foram os pontos mais marcantes, mas isso não é o mais estarrecedor. O mais estarrecedor é que continuamos numa situação em que milhões de pessoas não têm o menor controle sobre sua vida e vivem sob o ditado de um sujeito, porque em muitas situações é apenas uma pessoa, armada, que dita todas as normas naquele território. É o que chamamos de neofeudalismo. Isso é o mais estarrecedor. Isso e a naturalização da violência, que comentamos anteriormente. Tem uma fala muito interessante na pesquisa que diz que, quando a milícia entrou, ela matou todas as pessoas do tráfico. E o depoimento continua: Eram bandidos? Eram, então a gente não podia dizer não mata. Mas eram bandidos que tinham crescido com a gente. Então, é muito interessante essa luta entre a desumanização com que o crime é enfrentado, essa negação da humanidade que o traficante simboliza, e do outro lado essa proximidade afetiva. Fundação: Como você vê essa articulação entre pobreza e violência no Brasil? Combater a pobreza diminui a violência? Ignácio: Isso é um debate muito intenso nas Ciências Sociais e na sociedade em geral. Não há dúvida nenhuma de que as grandes vítimas da violência, sobretudo a violência letal, são as pessoas sem recursos econômicos e simbólicos e sem direitos. Afinal de contas, se você tiver dinheiro, você vai se mudar para uma área que seja mais segura. Então, é claro que, para além das muitas causas que explicam essa situação, não há dúvida de que simplesmente capacidade econômica permite à pessoa que proteja através da locomoção. Essa associação está para além de qualquer dúvida em muitas pesquisas realizadas no Brasil e na América Latina de uma maneira geral. Agora, mais importante do que a pobreza, eu acho que é a desigualdade, a convivência em espaços reduzidos de pessoas com níveis de riqueza muito diferentes. E também o histórico do Brasil de ser uma sociedade muito fragmentada, dividida e escravocrata, dentro da qual o controle se exerce através da violência. Isso é o mais importante, a forma como a desigualdade foi mantida historicamente. Se você ler os registros históricos da polícia no Brasil, uma das funções policiais era açoitar os escravos: os donos os levavam, eles eram açoitados e depois devolvidos. E isso era um progresso histórico porque significava que o Estado incorporava pela primeira vez a punição como função pública, e não privada.

É nisso que temos que pensar, porque existem muitos exemplos de países pobres não-violentos: a Mongólia é muito pobre, mas não tem violência. Há muitos países que são pobres, mas menos desiguais, e que não têm esse histórico de controle social através da violência. Mesmo quando comparado com a América Latina, o Brasil não está no pior lugar, mas está entre os piores. Quando comparado com o Cone Sul, Argentina e Chile, todos têm níveis de violência muito inferiores aos do Brasil. Então esse é o grande diferencial do Brasil: é um país muito fragmentado, onde a elite controla a grande massa através da violência, tornando esta não só um instrumento de controle social, mas de canalização dos conflitos, das carências etc. Nós nunca fizemos uma pesquisa mais aprofundada sobre isso, mas no imaginário da classe média, nada é mais assustador do que a violência social se transformar em violência política. Até pouco tempo atrás, o grande medo era que o Brasil se transformasse numa Colômbia, que agora conseguiu reduzir bastante seus índices de violência em algumas regiões. O maior medo das nossas classes média e alta é de que um dia os pobres poderiam descer do morro e tomar à força o que a gente tirou deles. O arrastão é a melhor representação simbólica desse medo. Mas a nossa violência não é política. Os grupos criminosos só visam a sua perpetuação e o lucro econômico, mas não a tomada do poder. Além do fato de que são grupos fragmentados e não uma associação realmente organizada com projeto político como existe na Colômbia. Fundação: Mas vemos que existe uma construção na sociedade brasileira que permite a aceitação de um sistema de injustiças e desigualdades... Ignácio: Todo animal se adapta ao meio ambiente, então não é nenhuma surpresa que as pessoas se adaptem ao meio onde elas moram. Não poderia ser de outra forma. As pessoas se acostumaram com o elevador de serviço para os funcionários pobres. Elas se acostumam com coisas que em outros países chamariam muita atenção. Então, todo mundo naturaliza: a vítima, o executor, as classes altas e baixas. Não é algo restrito a um setor da sociedade. Quando a gente escuta mães da favela dizendo meu filho foi tratado como bandido, foi torturado, ela naturaliza que, se o filho fosse bandido, ele poderia ser torturado ou até executado. Quando nós visitamos uma prisão e escutamos de um preso eu apanhei, mas naquele dia eu aprontei, realmente. Mas no outro dia eu apanhei e não tinha feito nada, é um absurdo! Então, essas são as regras do jogo. Se você fizer algo de errado, apanha. O desafio é mudar essa realidade, mas a adaptação é algo natural. Fundação: Há pouco tempo eu li o depoimento do primeiro policial condenado pela chacina de Vigário Geral, em que ele dizia que a culpa dele era a mesma das vítimas, uma vez que elas tinham sido mortas porque eram pobres e faveladas. E que ele, o policial, estava sendo acusado só por ser policial, por estar fazendo o trabalho sujo do Estado. Essa declaração teve uma grande

repercussão... as pessoas de fato concordavam com essa comparação e, para elas, o que tinha acontecido com as vítimas era algo inevitável... Ignácio: De fato, tem muita gente dizendo que muitos governos cobram uma polícia violenta e truculenta, mas quando essa violência atinge o lado errado, o governante lava as mãos, chama os policiais de imbecis ou algo do gênero, e diz que não tem nada a ver com isso. E a sociedade também age da mesma maneira. Ela cobra a violência, boa parte dela acha que o extermínio é o único caminho, mas quando a guerra atinge um inocente, aí não pode. Então, que polícia é essa? Em parte, é a polícia que nós queremos. As mazelas da polícia e do Estado não são as mazelas de uma estrutura independente que vêm se impor pela força. São mazelas compartilhadas e geradas, pelo menos em parte, pela sociedade, que se escandaliza ciclicamente quando os mecanismos que parte dela vem encorajando atingem o alvo errado. O próprio presidente Lula, quando houve o massacre no morro do Alemão, declarou que não se poderia combater violência com flores. Essa frase é um sinal verde para truculência policial, numa situação em que muitas das mortes foram execuções sumárias. Fundação: Houve avanços na área de direitos humanos no governo Lula? Ignácio: Houve alguns avanços. Há uma evolução do governo Fernando Henrique até agora, na qual o governo, antigamente, tinha uma atitude de negação, depois adotou uma postura de reconhecer os problemas, porém atribuindo a responsabilidade deles aos Estados, e agora a posição é mais construtiva, de dizer os problemas são nossos, vamos ver como resolvê-los. Nesse sentido, é um avanço pois o governo não foge mais a sua responsabilidade. No entanto, esse tema caminha a passos muito lentos no Brasil. Ainda temos que dizer a toda hora que não somos defensores de bandidos, e a própria universalidade de direitos ainda é um pouco alheia à nossa sociedade, justamente por essa raiz excludente e escravocrata. Então, essa idéia de que você tem direitos porque você é uma pessoa, não bate muito bem com resultados de pesquisas em que as os entrevistados concordam com a frase os criminosos não respeitam os nossos direitos, então também não podemos respeitar os direitos deles. No imaginário brasileiro, direito ainda é algo que precisa ser ganha, merecida, não é algo que temos pelo simples fato de sermos pessoas. O governo Lula está mais avançado, menos por ser o governo Lula e mais por ser o representante de um processo de evolução histórica, porém ainda estamos muito longe de onde deveríamos estar. Todos os países do Cone Sul, por exemplo, já olharam para o seu passado militar, nós nem sequer sabemos onde estão os cadáveres. Então, houve um certo avanço, mas ainda muito tímido. No entanto, temos um secretário de Direitos Humanos (Paulo Vannuchi) mais avançado do que os anteriores, com uma postura mais firme, principalmente no que se refere ao tema da tortura durante a ditadura militar.

Fundação: 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Por que apesar das reivindicações dos defensores de direitos humanos, no Brasil não há políticas públicas sérias na área de segurança pública? Ignácio: Porque não é uma prioridade da sociedade. Porque a sociedade naturalizou a tortura e a execução sumária como meios de controle social e porque até hoje só vira escândalo quando atinge a pessoa errada. E para o governo também não é uma prioridade. A Secretaria de Estado de Direitos Humanos, por exemplo, está tentando agora implementar uma política contra a tortura. O Brasil assinou o protocolo opcional da Convenção contra a Tortura... Então são alguns passos, mas não é uma prioridade. E eu acho que a luta contra a tortura e as execuções sumárias deveriam ser prioridades nacionais. E acho mais, se fizermos isso, os níveis de violência diminuiriam, pois parte do problema é a violência do Estado, os agentes do Estado alimentam e reforçam a violência. Nós temos exemplos claríssimos: quando houve a chacina da baixada e vários integrantes dos grupos de extermínio da polícia militar foram presos, os homicídios caíram na região. Agora, mais recentemente, já há indícios de que o número de mortes na zona oeste caiu depois da prisão de integrantes da milícia que atuava na região. Então, é claro que os agentes do Estado são parte do problema. Se lutarmos contra essas mazelas, muito provavelmente os números da violência diminuiriam. E isso é mais um desafio: mostrar para a sociedade, principalmente para os setores mais conservadores, que essa truculência não só não beneficia a eles como é contraproducente. Fundação: É raro vermos na propaganda política a abordagem desse tema... Muitos candidatos até concordam com essa avaliação, mas não querem falar porque acham que essa postura tira votos. Por outro lado, muitos se elegem com o mote do bandido bom é bandido morto. Aliás, mais gente se elege hoje no Brasil com este mote do que com o discurso dos direitos humanos, infelizmente.