Abordagem Psiquiátrica do Dador Vivo de Rim



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Transcrição:

Abordagem Psiquiátrica do Dador Vivo de Rim Raquel Correia*, Rui Malta*, Manuela Moura**, Rui Coelho*** Resumo: O transplante renal é considerado o tratamento de eleição para os doentes renais em estado terminal. O transplante com dador vivo tem vindo a aumentar, devido à escassez, face às necessidades, de dadores cadáver. Com base na literatura existente abordam-se as questões éticas e os principais aspectos psiquiátricos envolvidos no processo de avaliação dos dadores vivos de rim para transplante, bem como a interferência deste procedimento na qualidade de vida dos dadores, e as suas contra-indicações. Os autores descrevem os procedimentos de avaliação utilizados no Hospital S. João, bem como os dados referentes aos 32 pacientes avaliados no Serviço de Psiquiatria, desde 2004. Palavras-Chave: Transplante Renal; Dador Vivo de Rim; Avaliação; Qualidade de Vida. Psychiatric Approach of the Living Kidney Donner Abstract: Kidney transplantation is considered the treatment of choice for patients with endstage renal disease. Living donor transplantation has increased because of the shortage, the needs of cadaver donors. Based on existing literature the authors address ethical issues and major psychiatric aspects involved in the evaluation of living donor kidney transplant, and the interference of this procedure on quality of life for donors, and their contraindications. The authors further describe the evaluation procedures used in the Hospital S. João, as well as data related to the 32 patients evaluated in the Department of Psychiatry since 2004. Key-Words: Kidney Transplantation; Living Kidney Donors; Evaluation; Quality of Life. Introdução O transplante renal é considerado o tratamento de eleição para os doentes renais em estado terminal, pois permite melhorar muitos dos problemas psicológicos associados com a doença renal e melhora a qualidade de vida dos doentes dependentes de diálise 1. Contudo, a necessidade de rins ultrapassa aqueles que estão disponíveis. A maioria dos transplantes renais é de fontes cadavéricas. Em Portugal o 1.º transplante renal com dador vivo foi efectuado no Hospital de Santa Maria, Lisboa, em 2002, apesar da legislação estar em vigor desde 1993. A Lei n.º 22/2007 de 29 de Junho 2, teve como objectivo facilitar a efectivação dos transplantes, permitindo a colheita em dador vivo, mesmo não havendo relação de parentesco. Esta situação levanta, no entanto, várias Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 25 * Interna de Formação Específica em Psiquiatria, Serviço de Psiquiatria do Hospital S. João, Porto, raquelscorreia@gmail.com. * Interno de Formação Específica em Psiquiatria, Serviço de Psiquiatria do Hospital S. João, Porto. ** Assistente Hospitalar Graduada, Serviço de Psiquiatria do Hospital S. João, Porto. *** Chefe de Serviço, Serviço de Psiquiatria Hospital do S. João; Director do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Raquel Correia, Rui Malta, Manuela Moura, Rui Coelho questões éticas, nomeadamente, de possível comercialização com o dador, a sua motivação, consentimento voluntáro e livre, e a questão da aceitação de menores como dadores, não esquecendo a sua segurança. 3 Apesar destas questões parecem existir várias razões que justificam o dador vivo de rim, entre elas destacam-se 4 : baixo risco de mortalidade e morbilidade (taxa de mortalidade, complicações major e minor na colheita de rim de dador vivo: 0,003%, 2% e 15%, respectivamente); razão risco/benefício favorável; benefícios psicológicos (altruísmo e autonomia; altos níveis de satisfação); aumento da sobrevida do doente renal; sobrevida do enxerto de 15-20 anos (cadáver 8-10 anos). O transplante com dador vivo tem vindo a aumentar, constituindo actualmente cerca de 10% do total dos transplantes renais. De entre as recomendações existentes na literatura internacional acerca do processo de seleção salientam-se os seguintes aspectos 5 : 1. Preferência com dador vivo familiar; 2. Dador vivo não-familiar pode estar justificado se o dador é o cônjuge; 3. Em algumas situações em casos de amizade próxima desde que sejam asseguradas as intenções de doação puramente altruístas, e em que as transacções comerciais sejam excluídas. De referir que a doação deve ser um acto espontâneo, em que inclusive qualquer evidência de transacção comercial, envolvendo a doação de órgãos, é inaceitável e passível de punição. Geralmente existem equipas multidisciplinares que avaliam estes utentes 6. A Nefrologia deve realizar uma cuidadosa investigação clínica, que inclui a anamnese, exame físico completo, avaliação imunológica, laboratorial e imagiológica. Os indivíduos são também sujeitos, geralmente, a uma avaliação psiquiátrica e psico-social. Rodrigue et al. fizeram um trabalho de investigação sobre os programas de avaliação e selecção de potenciais dadores vivos de rim nos Estado Unidos e 74% dos programas incluem a avaliação cognitiva de todos os utentes, 10% dos programas apenas exigem a avaliação de certos tipos de dadores (por exemplo não-familiares) e em 15% dos casos essa avaliação é solicitada quando os outros profissionais de saúde encontram motivos de preocupação. A avaliação deve incluir 5,7,8 : 1. Avaliação da competência, conhecimento e compreensão dos riscos e benefícios da doação; 2. Funcionamento psicológico; 3. Motivação e expectativas; 4. Relacionamento entre dador-receptor; 5. Suporte social e estabilidade financeira. O dador deve encontrar-se de acordo com os parâmetros da normalidade, quanto aos parâmetros clínico e emocional. Somente após a análise de todos os parâmetros, o candidato poderá ser considerado dador para transplante renal (Tabela 1). 26 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Abordagem Psiquiátrica do Dador Vivo de Rim Factores de risco, ou factores de protecção versus resultados psicossociais desfavoráveis em dadores vivos de rim Factores de baixo risco/protectores Factores de alto risco Sem doença psiquiátrica diagnosticada Antecedentes significativos de doenças psiquiátricas ou sintomas psiquiátricos significativos ou sintomas psiquiátricos Sem evidência de abuso de substâncias Abuso ou dependência de substâncias Recursos financeiros que possam suportar despesas inesperadas viagens e preocupações com o emprego) Capacidade financeira limitada (salários perdidos, Seguro de saúde Falta de seguro de saúde Conhecimento de potenciais riscos e benefícios para o dador/receptor para o dador e receptor e suas alternativas Baixa capacidade para entender os riscos e benefícios Riscos médicos aumentados (e.g. dor crónica) Sem ambivalência em relação à doação, Marcada ambivalência sobre a doação, expectativas expectativas realistas sobre a doação e os irrealistas sobre e doação e os potenciais desfechos potenciais desfechos para o receptor para o receptor Motivações altruístas Motivos reflectindo o desejo de reconhecimento, e desejo de utilizar a doação para o desenvolvimento de relações interpessoais (e.g. desejo de publicidade, de relações com o receptor ou a equipa de tratamento) História de adaptação a situações de stress familiares, sem perdas significativas recentes/factores de stress Suporte familiar para a doação, conhecimento da família sobre a possível doação. Múltiplos factores de stress familiares, obrigações e preocupações Relações de subordinação (e.g. empregado, patrão) ou outra evidência de coação Evidência ou expectativas de ganho secundário (e.g. evitar o serviço militar, suporte financeiro do receptor) Relações familiares pobres: suporte familiar fraco para a doação Tabela I 5 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 27

Raquel Correia, Rui Malta, Manuela Moura, Rui Coelho Este procedimento tem contra-indicações absolutas, que são: - recompensa financeira; - problemas manifestos de saúde mental; - abuso activo de substâncias e/ou dependência. São consideradas contra-indicações relativas ao procedimento as seguintes situações 8 : - história prévia de má adesão aos tratamentos recomendados; - falta de suporte social ou familiar; - instabilidade financeira; - relação dador-receptor perturbada; - expectativas pouco realistas. No entanto, é de salientar que nem todos os grupos de transplantação são consensuais no que concerne ao abuso de drogas e álcool. São poucos os programas que excluem os indivíduos com história de abuso de álcool ou drogas ilícitas como potenciais dadores, mas a maioria exige que os indivíduos apresentem períodos de abstinência, que oscilam entre os 6-12 meses para alguns programas e superior a 5 anos para outros. A maioria dos programas aceita fumadores activos, mas cerca de um terço exige que o dador se comprometa a deixar de fumar antes da cirurgia 8. Mas, surge uma questão: Como encontrar o dador? Kranenburg et al., em 2009, estudaram a comunicação (ou sua ausência) entre os pacientes e os potenciais dadores vivos de rim 9. As principais conclusões foram que as tentativas para encontrar o dador no seio da família se caracterizam pela falta de discussão sobre o assunto e por causarem stress nas relações intrafamiliares. Os receptores tendem a assumir, por isso, um papel passivo. Uma outra razão que parece estar associada com o facto de não questionarem os potenciais dadores é a preocupação sobre eventual compromisso no relacionamento com a pessoa em questão. Da investigação efectuada estes autores verificaram que os doentes se sentem mais confortáveis na aceitação de um órgão de um membro da família que se ofereceu espontaneamente. Apesar destas questões existem características do receptor que estão associados com o início do diálogo com um potencial dador, são eles: - preferência de um dador vivo; - vontade de pedir ajuda; - género feminino parecer estar associado a um aumento da iniciativa para o diálogo; - pacientes mais velhos terem menor iniciativa em iniciar um diálogo. No Hospital S. João, E.P.E., existe um protocolo de avaliação dos dadores vivos de rim. Este protocolo teve início em 2004, tendo ficado estabelecido que os potenciais dadores são referenciados ao Serviço de Psiquiatria para avaliação psiquiátrica e psicológica, após uma avaliação inicial do estado físico geral. É efectuada uma entrevista para ava- 28 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Abordagem Psiquiátrica do Dador Vivo de Rim liação da existência de possível psicopatologia, mas também da capacidade de decisão, da compreensão dos riscos e dos benefícios do procedimento, qual a motivação para a doação bem como as expectativas decorrentes deste acto. É, também, avaliado o tipo de relação existente com o receptor. É depois solicitada uma avaliação psicométrica, com instrumentos seleccionados para complementar a informação colhida durante a entrevista e a impressão do clínico, que inclui quociente de inteligência, avaliação psicométrica dos índices de ansiedade e depressão e avaliação de personalidade. Após esta avaliação é comunicado ao Serviço de Nefrologia a capacidade, ou não, para a doação. População e Métodos Foi efectuado um estudo analítico retrospectivo. A recolha de dados ocorreu entre Janeiro de 2004 e Dezembro de 2009. A população do estudo corresponde à globalidade dos dadores vivos referenciados à consulta de Psiquiatria nesse período (Janeiro 2004 a Dezembro de 2009), perfazendo uma amostra de 32 indivíduos. A recolha dos dados foi efectuada através de consulta e análise do processo clínico dos dadores. As variáveis estudadas foram: idade, género, nível de escolaridade, actividade profissional, estado civil e relação com o receptor. Os instrumentos de avaliação utilizados foram: entrevista psiquiátrica semi-estruturada, escala de avaliação dos índices de ansiedade e de depressão, escala de inteligência de Wechsler para adultos (WAIS III), avaliação de personalidade recorrendo ao Hopkins Distress Symptoms Checklist (SCL 90) e ao Minnesota Multiphasic Personality Inventory (MMPI 2), consoante o nível de escolaridade do indivíduo. Quando se verificou necessário foram aplicadas outras escalas como o Inventário Depressivo de Beck (BDI). Os resultados obtidos foram codificados e registados em suporte informático (Microsoft Excel ). Para a análise dos dados foi utilizado o programa informático SPSS versão 16. É efectuada, no presente estudo, uma análise descritiva dos dados e dos resultados obtidos. Resultados Foram avaliados, desde 2004, 32 indivíduos, a maioria são do sexo feminino (78,1%) e com uma média de idades de 41 anos. A maioria dos dadores de rim era casada (75%), 21,9% solteiro e apenas um dos dadores viúvo (3,1%). 75% dos indivíduos estavam empregados na altura da doação, 21,9% eram domésticas e apenas um dos indivíduos submetidos à avaliação estava reformado (3,1%). Relativamente à escolaridade, 34,4% dos potenciais dadores tinham uma escolaridade superior a 10 anos e 65,6% tinham Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 29

Raquel Correia, Rui Malta, Manuela Moura, Rui Coelho uma escolaridade igual ou inferior a 9 anos. A distribuição da população por sexo, grau de escolaridade, actividade e estado civil está expressa no Quadro I. Sexo N % Masculino 7 21,9 Feminino 25 78,1 Grau de Escolaridade N % Igual ou inferior a 9 anos 21 65,6 Superior a 10 anos 11 34,4 Actividade N % Activo 24 75,0 Reformado 1 3,1 Doméstica 7 21,9 Estado Civil N % Casado (a) 24 75,0 Solteiro (a) 7 21,9 Viúvo (a) 1 3,1 Quadro I Distribuição da população por sexo, grau de escolaridade, actividade e estado civil Todos os dadores eram familiares do receptor, a maioria irmãos (34,3% irmãs e 12,5% irmãos), cônjuges (22,0%), mães (12,5%), pais (6,3%) e outros (12,5%) (Quadro II). Grau de Parentesco N % Irmã/o 15 46,8 Cônjuge 7 22,0 Mãe 4 12,5 Pai 2 6,2 Outros 4 12,5 Quadro II Distribuição da população por grau de parentesco com o dador Os dadores tomaram conhecimento desta possibilidade de tratamento através da consulta de Nefrologia ou outra consulta em 37,5% dos casos, em 28,1% souberam da possibilidade de doação através de familiares. 25% dos inquiridos tiveram conhecimento através dos meios de comunicação social e internet. Apenas 9,4% souberam de outras formas. Esta distribuição está representada no Quadro III. Fonte N % Consulta Nefrologia ou outra 12 37,5 Familiares 9 28,1 Comunicação social e internet 8 25,0 Outra 3 9,4 Quadro III Distribuição da população tendo em conta a fonte de informação 30 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Abordagem Psiquiátrica do Dador Vivo de Rim Vinte e nove dadores (90,6%) decidiram a doação por eles próprios e foram os primeiros a sugerir a doação. Apenas 3 (9,4%) foram questionados pelo receptor/outros familiares sobre a doação. Relativamente aos sentimentos sobre a doação a maioria referiu que foi uma decisão fácil de tomar e que não teve que pensar muito. Um grupo de 21,9% revelou que hesitou antes da tomada de decisão. Dos potenciais dadores de rim avaliados no Hospital S. João, apenas 2 da amostra total foram considerados não aptos para a doação (6,2%), dado que durante a avaliação psiquiátrica ficou evidente que num dos casos havia coacção psicológica por parte dos familiares e noutro a doação era uma tentativa de resolução de conflitos familiares. Uma das pacientes não concluiu o processo de avaliação, por desistência (3,1%). A distribuição dos resultados da avaliação está representada no Quadro IV. Resultado N % Apto 29 90,7 Não apto 2 6,2 Desistência 1 3,1 Quadro IV Distribuição da população por resultado da avaliação psiquiátrica efectuada Discussão A maioria dos dadores, neste estudo, era do sexo feminino e em relação ao grau de parentesco foram mais prevalentes os irmãos, o que é consistente com a literatura internacional, apesar dos diferentes enquadramentos jurídicos. De salientar que é muito importante a avaliação da motivação, sendo que nesta amostra houve 2 situações que não continuaram o processo pois a motivação era a resolução de conflitos familiares e noutro caso ficou evidente a coação psicológica. Para a maioria a decisão foi fácil de tomar. A grande maioria dos doadores fê-lo voluntariamente, sem ser questionado sobre o processo, e as pessoas não tiveram receio pelas suas vidas. A maior parte não se mostrou preocupada com a sua saúde no futuro, embora alguns tenham referido que receavam que a doação lhes pudesse causar danos ; um abordou o receio de que a sua sobrevida fosse mais curta pelo facto de ter apenas um rim. Um trabalho, efectuado em 2006, verificou que a possibilidade de existência de algias durante o processo, cicatrizes e a preocupação sobre o estado de saúde no futuro não foram factores importantes na tomada de decisão. Uma pequena percentagem de dadores verbalizou receio em ficar só com um rim. Apesar destes factores, mais de 95% dos indivíduos que participaram neste estudo referiram que voltariam a doar o rim novamente 10. Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 31

Raquel Correia, Rui Malta, Manuela Moura, Rui Coelho A doação de um rim é um assunto complexo. Dada tal complexidade tem sido avaliada em vários trabalhos a saúde psico-social dos dadores de rim. Numa revisão sistemática efectuada por Clemens et al. em 2006 11, os autores salientam que o risco para o dador é ultrapassado por benefícios psico-sociais de altruísmo e melhoria da saúde do receptor, melhoria das relações interpessoais e também aumento da auto-estima 12. Vários trabalhos avaliaram questões como o funcionamento social, a auto-estima, a imagem corporal, o bem-estar psicológico geral e a qualidade de vida, que apresentaram desfechos melhores, ou sem alterações, nos dadores de rim. Em relação ao bem-estar psicológico geral, denota-se que 35-55% dos dadores sentiam serem tratados como pessoas especiais, e a maioria considerava-se mais feliz do que antes da doação. Relativamente à depressão e ansiedade entre 77 a 95% dos participantes não apresentaram quaisquer sintomas de depressão depois do procedimento, apesar de 39% terem revelado que esta experiência foi em alguns momentos causadora de stress. Uma selecção cuidadosa dos dadores, com uma consulta psiquiátrica e uma avaliação psicológica pré-transplante permite minimizar as consequências psicológicas major do processo. Problemas significativos podem ocorrer entre os dadores após a falência do transplante, devendo ser-lhes prestada uma atenção especial nestas circunstâncias. Apesar disto, o dador parece beneficiar com o facto de saber que fez tudo para ajudar. As avaliações psicológicas de follow-up são importantes. Será que existem diferentes perspectivas em relação à doação do rim? Destaca-se um trabalho, efectuado em 2003, em que foram avaliadas a percepção do dador, as preocupações antes e depois do transplante, a experiência com a cirurgia e o pós- -operatório e se tomariam a mesma decisão novamente. Dos grupos avaliados, dadores, receptores e familiares próximos mas não directamente relacionados com o procedimento, todos concordaram que os dadores estavam satisfeitos com a experiência. O relacionamento dador-receptor melhorou após a cirurgia. Os receptores e os familiares identificaram correctamente as preocupações do dador antes do transplante, mas sobrevalorizaram-nas. Os receptores também sobrestimaram quão dolorosa e difícil foi a cirurgia e recuperação para os dadores 13. Conclusões A avaliação dos dadores vivos de rim no Hospital S. João está protocolada desde 2004 e está integrada no processo da avaliação da doação de rim. Muitos dadores consideram que o processo é útil na tomada de decisão. A doação do rim providencia uma oportunidade para os dadores expressarem carinho 32 Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

Abordagem Psiquiátrica do Dador Vivo de Rim pelo sofrimento dos familiares. A segurança e o bem-estar do dador serão maximizados considerando: as circunstâncias que levaram o indivíduo ao processo de doação; e os factores psico-sociais de risco e de protecção de cada indivíduo. BIBLIOGRAFIA 1. Shrestha A, Shrestha A, Vallance C, McKane WS, Shrestha BM, Raftery AT. Quality of Life of Living Kidney Donors: a single center experience. Transplat Proc. 2008; 40: 1375 77. 2. Diário da República, 1ª série N.º 124 29 de Junho de 2007. 4146-4150 3. Mazaris E, Papalois VE. Ethical Issues in Living Donor Kidney Transplantation. Exp Clin Transplant. 2006; 4(2):485-97. 4. Frade IC, Fonseca I, Dias L, Henriques AC, Martins LS, Santos J, Sarmento M, Lopes A. Impact Assessment in Living Kidney Donation: Psychosocial Aspects in the Donor. Transplat Proc. 2008; 40: 677-81. 5. Leo RJ, Smith BA, Mori DL. Guidelines for Conducting Psychiatry Evaluation of the Unrelated Kidney Donor. Psychosomatics 2003; 44(6): 452-460. 6. Sterner K, Zelikovsky N, Green C, Kaplan B. Psychosocial evaluation of candidates for living related kidney donation. Pediatr Nephrol. 2006; 21: 1357-63. 7. Dew MA, Jacobs CL, Jowsey SG, Hanto R, Miller C, Delmonico FL. Guidelines for the psychosocial evaluation of living unrelated kidney donors in the United States. Am J Transplant. 2007; 7: 1047-54. 8. Rodrigue JR, Pavlakis M, Danovitch GM, Johnson SR, Karp SJ, Khwaja K, Hanto DW, Mandelbrot DA. Evaluating living kidney donors: relationship types, psychosocial criteria and consent processes at US Transplant Programs. Am J Transplant. 2007; 7: 2326-32. 9. Kranenburg L, Richards M, Zuidema W, Weimar W, Hilhorst M, IJzermans J, Passchier J, Busschbach J. Avoiding the Issue: Patients (non)communication with potential living kidney donors. Patient Educ Couns. 2009; 74(1): 39-44. 10. Dahm F, Weber M, Müller B, Pradel FG, Laube GF, Neuhaus TH, Cao C, Wüthrich RP, Thiel GT, Clavien PA. Open and laparoscopic living donor nephrectomy in Switzerland: a retrospective assessment of clinical outcomes and the motivation to donate. Nephrol Dial Transplant. 2006; 21: 2563 2568. 11. Clemens KK, Thiessen-Philbrook H, Parikh CR, Yang RC, Karley ML, Boudville N, et al. Psychosocial health of living kidney donors: a systematic review. Am J Transplant. 2006; 6(12):2965 77. 12. Najarian JS. Living donor kidney transplants: personal reflections. Transplant Proc.2005; 37(9):3592-4. 13. Jakobsen A, Holdaas H, Leivestad T. Ethics and Safety of Living Kidney Donation. Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 33

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