CONSIDERAÇÕES DE DELEUZE SOBRE ONTOLOGIA E ÉTICA EM SPINOZA. Carlos Wagner Benevides Gomes*

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Transcrição:

CONSIDERAÇÕES DE DELEUZE SOBRE ONTOLOGIA E ÉTICA EM SPINOZA Carlos Wagner Benevides Gomes* RESUMO: Este artigo tem como objetivo explicitar a problemática da ontologia e da ética do filósofo holandês Benedictus de Spinoza (1632-1677) como a teoria da Substância ou Deus, os atributos e os modos na sua obra maior Ética (1677). Para tanto, mostraremos, nesta perspectiva, a diferença entre ética e moral e o problema do bem e do mal a partir da leitura do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), nos seus Cursos sobre Spinoza proferidos em Vincennes (1978-1981) e em Spinoza: filosofia prática (1981). Conclui-se que, Deleuze nos apresenta a contribuição e a inovação de Spinoza para a história da filosofia com sua ética geométrica fundada no plano da imanência. PALAVRAS-CHAVES: Spinoza; Deleuze; Ontologia; Ética. ABSTRACT: This article aims to explain the problem of ontology and ethics of the Dutch philosopher Benedictus de Spinoza (1632-1677) as the theory of substance or God, attributes and modes in his greatest work Ethics (1677). Therefore, we will show in this perspective, the difference between ethics and morals and the problem of good and evil from the reading of the French philosopher Gilles Deleuze (1925-1995), in his Courses on Spinoza delivered in Vincennes (1978-1981) and Spinoza: practical philosophy (1981). It follows that, Deleuze presents a contribution and Spinoza s innovation to the history of philosophy with its geometric ethics founded on immanence plane. KEYWORDS: Spinoza; Deleuze; Ontology; Ethics. *Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista CAPES. E-mail: wagnercarlos92@gmail.com.

Introdução A ética tem sua origem grega com o termo ethos 1 e apareceu, desde a antiguidade, por Aristóteles. Segundo Henrique C. de Lima Vaz (2013), o ethos designa a morada ou a casa do homem. O ethos como costume, ou na sua realidade histórico-social, é princípio e norma dos atos que irão plasmar o ethos como hábito (ethos-hexis). (VAZ, 2013, p.15). Aristóteles utilizou o termo ethike para designar a filosofia prática (praktike philosophia) segundo a qual se estuda a ação e a prática humanas, além de suas virtudes morais e de seus costumes. Por conseguinte, ao longo dos anos, com as diversas correntes filosóficas, surgiu a divisão terminológica entre Ética e Moral implicando ora nas suas sinonímias ora nas suas diferenças. Segundo Vaz (2015) 2 : Inicialmente convêm dizer uma palavra sobre um problema de natureza terminológica que ocorre constantemente na linguagem e na literatura sobre Ética, a saber, o problema do uso das denominações Ética e Moral para designar o mesmo domínio do conhecimento. Essa dupla designação tem suscitado alguma dúvida sobre a sinonímia original dos dois termos na medida em que cada um parece exprimir um aspecto diferente da conduta humana em suas componentes social e individual. (VAZ, 2015, p.12). A acepção que está ligada a tentativa de diferenciar a Ética e a Moral remonta desde Hegel com a estrutura dialética da Moralidade (Moralität) e da Eticidade (Sittlichkeit) em sua Filosofia do Espírito Objetivo. Além disso, esta diferença ética/moral relaciona-se [...] à separação moderna entre Ética e Política, e, mais geralmente, à cisão entre indivíduo e sociedade ou entre vida no espaço privado e vida no espaço público. (ibid). O vocábulo latino de Moral (moralis) apresenta uma semântica análoga ao termo ética e [...] como substantiva ou adjetivo, passa a ser a tradução usual do grego ethike, e esse uso é transmitido ao latim tardio e, finalmente, ao latim escolástico [...] (VAZ, 2015, p.14). Neste sentido, designando a disciplina filosófica de Philosophia Moralis. Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês contemporâneo, é considerado um dos maiores produtores de conceitos do pensamento contemporâneo em diversas áreas (éticas, políticas, artísticas, cinematográficas, literárias e metafísicas). Há quatro noções pilares na 1 Para uma exposição histórica da ética em geral como ciência do ethos, ver o capítulo 1 (Fenomenologia do Ethos) de VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 2013. (Filosofia, 8). 2 Para uma introdução acerca do termo ética e as diversas correntes que defenderam a diferença entre ética e moral, Cf. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV: introdução a ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 2015. (Filosofia, 47). 57

filosofia deleuziana: diferença, multiplicidade, imanência e acontecimento. Neste sistema conceitual, há a produção de regras para fugir de outras regras de pensar, pois, se busca o impensado do pensamento como nova forma de filosofar partindo do não-filosófico ( sair da filosofia pela própria filosofia ). Deleuze teve grande influência de Benedictus de Spinoza (1632-1677), filósofo racionalista holandês, que para ele, em O que é a Filosofia? (1991), é o príncipe da filosofia. Os conceitos de diferença (como o que difere de si mesmo) e de imanência (que abrange uma rede de conceitos que se multiplicam) expressam senão novas perspectivas spinozistas. Para Deleuze, Spinoza foi um dos únicos pensadores que não firmou compromisso com a transcendência de Deus (como na religião judaico-cristã) e foi o que melhor explicitou o plano da imanência 3. O filósofo francês, considerado um importante estudioso spinozano, defendeu a proposta ontológica de diferenciar uma ética (como reflexão do agir e da potência) de uma moral (como normatividade de um dever-ser). Além disso, é significativa sua abordagem nietzschiana sobre as questões dos valores morais, da consciência e das paixões em analogia à ética de Spinoza. O objetivo proposto neste artigo é de explicitar, a partir de uma abordagem históricofilosófica deleuziana, a ontologia e a ética do pensador holandês seiscentista, perpassando o problema ontológico da Substância absolutamente infinita (Deus) com seus atributos e modos e a questão da diferença entre a ética e a moral. Utilizamos como principais referências a Ética, demonstrada em ordem geométrica (1677) de Spinoza e como debate às suas questões pertinentes, as obras de Deleuze Cursos sobre Spinoza proferidos em Vincennes (1978-1981) e Spinoza: filosofia prática (1981). Este artigo foi dividido em dois tópicos para uma melhor sistematização da exposição: No primeiro [A Fundamentação geométrica e ontológica da Ética de Spinoza], a exposição do sistema geométrico e ontológico spinozano (os conceitos de substância, de atributos e de modos) presente a partir da Parte I (Deus) da Ética apresentado por Deleuze como uma teoria do ser e de suas maneiras de ser. No segundo [Deleuze e a diferença entre ética e moral em Spinoza], a questão deleuziana sobre a diferença entre a ética e a moral na perspectiva ético-ontológica de Spinoza perpassando também o problema do corpo e da mente, o esforço (conatus) e o 3 Sobre a contribuição de Spinoza para a história da filosofia e para a Teoria da Imanência em Deleuze cf. SILVA, C. V. da. Corpo e pensamento: Alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa. São Paulo: Editora Unicamp, 2013, p.100 : Ora, em A Imagem-movimento, Deleuze retoma a ideia de plano de imanência. Tal ideia é depois retrabalhada em O Que é a Filosofia?, com destaque para Espinosa, indicado como pensador da imanência radical. 58

problema moral do bem e do mal inseridos na Parte IV (Da Servidão humana, ou a Força dos Afetos) da Ética. 1. A Fundamentação geométrica e ontológica da Ética de Spinoza A Ética demonstrada segundo a ordem geométrica (Ethica ordine geometrico demonstrata) é a obra máxima e mais influente de Spinoza, publicada postumamente em 1677 (Opera Posthuma) pelos amigos do pensador holandês. Foi escrita em latim e segundo a ordem geométrica (ordine geometrico) de Euclides que escreve os seus Elementos de Geometria em modo geométrico (more geométrico). Spinoza a escreve também segundo uma ordem matemática, utilizando definições, axiomas, proposições, demonstrações, escólios, corolários, etc. Estes elementos, por exemplo, as definições e os axiomas, são as condições do discurso (Notum per si), ou seja, são verdades universais, pois por si mesmas não têm necessidade de serem provadas. Os escólios, assim como a demonstração, são comentários que aprofundam a proposição. Por sua vez, os corolários são as consequências conclusivas. Além destes, temos os Postulados e os Lemas que designam as regras ou as leis universais na filosofia e na ciência. Além de ser uma ética com pretensões geométricas, é notável a apresentação de Spinoza sobre o corpo, por exemplo, a partir de uma pequena física dos corpos. A Ética foi dividida em cinco partes dos quais tratam os seguintes temas: 1) Deus, 2) Mente e Corpo, 3) Afetos, 4) Servidão humana e Força dos Afetos e 5) a Liberdade Humana 4. Organizada e estruturada com todo um raciocínio lógico, a Ética enfatiza a demonstração clara e distinta de cada proposição enunciada. É interessante notar que no texto há sempre a retomada de referências de outras proposições ou outros conceitos já mencionados antes pelo autor, evitando o máximo a contradição. Trata-se das ordens empregadas na matemática. Spinoza também utilizou o método geométrico euclidiano em sua obra Princípios de Filosofia Cartesiana (1664) que se refere a uma análise dos Princípios da Filosofia (1644), de René Descartes. Ela foi escrita também em latim com uma exposição geométrica e foi a primeira e única obra publicada com o nome de Spinoza a pedido de seu aluno particular Casearus. Além desta obra, o Apêndice de seu Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu Bem-estar (1660). Quanto às 4 Tratam-se respectivamente da Parte I (De Deus), Parte II (Da Natureza e origem da Mente), Parte III (Da origem e natureza dos Afetos), Parte IV (Da Servidão humana, ou a Força dos Afetos) e Parte V (Da Potência do intelecto ou da Liberdade Humana). 59

outras obras que não utilizaram deste método geométrico 5, Spinoza seguiu um discurso menos sistemático comparado à Ética na qual seus principais conceitos estavam também relacionados, por exemplo, ao Tratado da Reforma da Inteligência (1662), ao Tratado Político (1677) e ao Tratado Teológico-Político (1670). Enquanto uma obra sobre ontologia e teoria do conhecimento, a Ética segue um método dedutivo, uma vez que parte de conceitos universais como Deus e conclui com uma questão acerca da Liberdade Humana. Trata-se de uma ética que, diferente de uma regra moral imposta à vida, reflete as potências de agir e de pensar do homem, mostrando a este os caminhos à beatitude e à liberdade, ou seja, segundo Spinoza, o amor de Deus (Amor erga Deum). O conhecimento da causa primeira (Deus), as ações fundadas em causas adequadas e os bons encontros (que aumentam a potência de agir do indivíduo), por exemplo, garantem ao homem o fim de sua servidão e de sua superstição. Primeiramente, devemos compreender que a filosofia de Spinoza, fundamentada na ordem geométrica, também segue o plano da imanência 6 e da ontologia. A idéia fundamental de imanência se junta, ao projeto de uma explicação integral das coisas por elas mesmas [...]. (RIZK, 2006, p.40). Neste sentido, metafísica não seria um termo apropriado para descrever a ética de Spinoza, pois este tratou o ser delimitando questões práticas da vida na qual não existe transcendência ou exterioridade da realidade. A filosofia spinozana, alvo de críticas, entre elas, ser acusada de panteísmo 7, ateísmo e misticismo, defendeu a ideia do monismo da matéria que tem como possível influência o estoicismo. O filósofo holandês, na Parte I (Deus) da Ética, postulou a existência de uma Substância para expressar o todo. O monismo da substância implica que esta é uma realidade autoprodutiva, ou seja, no qual tudo está contido 5 Cf. CHAUI. Marilena. A Nervura do Real - Imanência e Liberdade em Espinosa. v. 1 (Imanência). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.564: Porque o texto geométrico dos Princípios da Filosofia cartesiana é seguido de um Apêndice não geométrico? Há ordem geométrica no Teológico-Político e no Político? Porque a exposição geométrica do Apêndice do Breve Tratado e a das primeiras versões da Ética não correspondem à versão geométrica final que conhecemos? Essas indagações, incessantemente retomadas pelos comentadores da obra espinosana, dizem respeito a um ponto bastante preciso: qual a necessidade da ordem geométrica para e na Filosofia de Espinosa?. 6 Cf. CHAUI. Marilena. A Nervura do Real - Imanência e Liberdade em Espinosa. v. 1 (Imanência). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, Imanência é a Natureza dando-se espontaneamente uma ordem, ordenando-se a si mesma por uma necessidade que é o mais natural em si mesmo, diferenciando-se a si mesma sem fragmentar-se nem separar-se de si, conservando-se presente em cada uma de suas expressões. 7 Segundo Abbagnano (2014), no verbete Panteísmo, do grego, Pan (Todo), Theos (Deus), o Panteísmo foi um termo utilizado pela primeira vez em 1705 por John Toland (1679-1722) para explicitar a identidade de Deus e o Mundo ou a natureza. Segundo os spinozistas, o termo não seria adequado para tratar o conceito de Deus em Spinoza, uma vez que, Deus não é tudo, mas tudo está em Deus. Por conseguinte, a ontologia spinozana se assemelharia a concepção de Paneteísmo, termo utilizado por Christian Krause (1781-1832) para designar a síntese do teísmo e o panteísmo ao afirmar que tudo está em Deus. 60

na Substância, pois, fora dela, não há nada. Diferentemente da concepção monoteísta da religião judaico-cristã de que Deus é um ser transcendente (exterior) criador de todas as coisas, a Substância, segundo Spinoza, está para uma realidade imanente que produz as coisas (que são seus modos). O filósofo holandês retoma a terminologia escolástica de Natura Naturans e Natura Naturata para designar a Natureza naturante e a Natureza naturada, ou seja, a natureza que produz (a Substância e seus Atributos) e aquilo que é produzido pela natureza (seus modos). 1.1. O problema ontológico da substância, seus atributos e modos. Spinoza (2015, p.45) define com precisão a Substância: Por substância entendo aquilo que é em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa a partir da qual deva ser formado. Das proposições de 1 a 8 da Parte I da Ética, há a demonstração da unidade da Substância. Segundo Spinoza (2015, p.51), Na natureza das coisas não podem ser dadas duas ou várias substâncias de mesma natureza, ou seja, de mesmo atributo.. A razão desta proposição é que, para Spinoza (2015, p.53), duas coisas infinitas e perfeitas (como a Substância) não podem existir, simultaneamente, uma vez que haveria uma limitação ou exclusão entre ambas, o que é absurdo. Além disso, Spinoza postula a unidade da Substância à medida que considera seu agir, sua essência e sua existência uma só coisa. Por conseguinte, a questão da Substância nos leva necessariamente para a dedução do conceito de Deus. Diz Spinoza (2015, p.45): Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consiste em infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita. Spinoza define, assim, as propriedades gerais ou a dedução da essência de Deus enquanto uma substância absolutamente infinita e causa sui, como define: Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve existência, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão existente. (ibid) e natura naturante da realidade. No prefácio da Parte IV da Ética, Spinoza afirma a máxima Deus, ou seja, a Natureza (Deus sive Natura) 8 para explicitar a relação de Deus com a noção de causa de todas as coisas e às leis universais da natureza, pois, Tudo que é, é em Deus, e nada sem Deus pode ser nem ser concebido. (SPINOZA, 2015, p.67). Resta dizer que Deus não é um ser pessoal, ou seja, tratase da crítica ao antropomorfismo de Deus segundo o qual se atribuem as vontades, as ações e 8 [...] aquele Ente eterno e infinito que chamamos Deus ou a natureza, pela mesma necessidade por que existe, age. (SPINOZA, 2015, p.373). 61

as leis humanas a Deus como a exemplo da jurisprudência dos Reis. Deus também não é um criador que castiga e manda para o inferno, mas produtor e imanente ao todo, pois fora deste, não há nada. Spinoza rompe, assim, com a concepção judaico-cristã da transcendência de Deus, ao afirmar que Deus é causa imanente de todas as coisas, mas não transitiva. (SPINOZA, 2015, p.81). Deus é um ente cuja existência é necessária, pois não depende de outra coisa para existir. Por conseguinte, não tem finalismos, pois, se, por exemplo, criasse o homem ou o mundo a partir do nada, cairia numa carência e num antropomorfismo, isto porque Deus é causa de si, não sendo coagido por ninguém, é necessário por si mesmo. Neste sentido, dito sobre a substância ou Deus, os Atributos aparecem, na definição 4 da Parte I da Ética, como expressões substanciais infinitas e aquilo que o intelecto percebe como essência da Substância (SPINOZA, 2015, p.45). Os homens, por exemplo, são Modos finitos da Substância (O Corpo e a Mente 9 ), ou seja, as afecções substanciais e aquilo que existe em outra coisa e, por serem concebidos por outra coisa, não são livres; eles fazem parte de dois diferentes atributos: os atributos pensamento e extensão de uma única Substância. Esta composição entre os modos finitos corpo e mente e suas relações paralelas entre os atributos extensão e pensamento é o que ficará conhecido como o problema do paralelismo 10 dos atributos ou da união psicofísica. 1.2. Da Teoria dos Afetos Outra questão importante é aquela que Spinoza nos diz na Parte III (A origem e natureza dos Afetos) da Ética ao tratar da teoria das paixões. Spinoza (2015, p.237) afirma, nas definições 2 e 3 que agimos quando estamos fundados numa causa adequada, ao contrário, padecemos (pelas paixões), quando agimos fundados numa causa inadequada ou parcial. Neste sentido, temos a definição dos Afetos como [...] as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do próprio corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as ideias 9 Na Parte II (Da Natureza e a origem da Mente) da Ética, Spinoza diz que, a mente é a ideia do corpo e este é objeto daquela expressando, assim, uma relação psicofísica onde corpo e mente agem simultaneamente, pois, como disse a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas [corpos] (SPINOZA, 2015, p.135). 10 Deleuze (2002, pp.73-77) defende o paralelismo do espírito (mente) e do corpo ao dizer que há dois tipos de paralelismo: 1) O paralelismo ontológico, ou seja, a relação entre os modos e seus atributos substanciais e 2) o paralelismo epistemológico, ou seja, a relação da ideia e o seu objeto, a mente e o corpo. Segundo Abbagnano (2014), no verbete, Paralelismo psicofísico, o termo paralelismo foi inventado por Fechner para designar a doutrina segundo a qual o psíquico e o físico seriam realidades paralelas onde nenhum age sobre o outro. Por sua vez, Spinoza não teve a intenção de afirmar a independência causal recíproca entre fatos físicos e mentais, mas a subordinação comum à causalidade direta da substância. Por conseguinte, a doutrina de Spinoza não seria um Paralelismo, mas um monismo panteísta. 62

dessas afecções. (ibid). Os afetos, relacionados à causa adequada, é uma ação; caso contrário, é uma paixão. Todos os seres têm um esforço (conatus) para perseverarem em suas existências (SPINOZA, 2015, p.251); é uma Potência ou força interna 11. Na Parte IV (Da Servidão humana ou a Força dos Afetos) da Ética, a potência é tratada como a própria essência do homem ou sua virtude que, enquanto tal, é uma parte finita da Potência infinita de Deus. Segundo Spinoza (2015, p.253), o esforço referido apenas à mente chama-se vontade (voluntas), mas o esforço referido à mente e ao corpo chama-se apetite (appetitus). Logo, tanto no corpo como na Mente há uma Potência (conatus): o esforço para existir e para agir e o esforço para pensar. Os afetos primários, pela definição geral dos afetos da Parte III da Ética, são três: a Alegria, a Tristeza e o Desejo, que podem diminuir ou aumentar a potência: a Alegria é uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior, pois aumenta a Potência; a Tristeza, por sua vez, é uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor, pois diminui a Potência. Por fim, o Desejo é a nossa essência ou a potência. Segue-se que, somos afetados e afetamos vários outros corpos que nos compõem ou decompõem segundo Encontros (occursus) favoráveis ou desfavoráveis. É através desta Potência (Potentia), que tanto o corpo como a mente humana se esforçam (conatus) para perseverarem na existência, buscando o que aumenta e evitando a diminuição (pelas paixões) de sua potência de existir (Agir) e de pensar para, enfim, o homem tornar-se livre. 2. Deleuze e a diferença entre ética e moral em Spinoza Em uma série de cursos ministrados em Vincennes, Deleuze, num Curso de 21 de Dezembro de 1980, tratou acerca de Ontologia e Ética e a questão da Ética e da Moral a partir da leitura de Spinoza. O ponto inicial de Deleuze (2012, p.125) foi o debate sobre o problema clássico da Ontologia para entender a proposta ética spinozana: Sobre o projeto de uma ontologia pura, o que faz com que Spinoza chame a esta ontologia pura uma ética? Seria por uma acumulação de traços que nós percebemos que estava bem ele chamou a isto uma ética. Para Deleuze, a ética aqui não coincide com uma Moral. A Ontologia pura de Spinoza se expressa absolutamente infinita uma vez que remete a substância absolutamente infinita, enquanto o Ser dos entes. Mas, não se trata de dizer que os entes não são seres, mas como diz 11 Do latim, virtus deriva de vis, força, segundo Spinoza, Potência (Potentia) e Virtude são uma só e mesma coisa. 63

Spinoza, os modos da substância (maneiras de ser). Nós como existentes, somos maneiras de Ser da Substância. 2.1. O problema ética/moral sob uma perspectiva ontológica Segundo Deleuze (ibid): E se eu me pergunto qual é o sentido mais imediato da palavra ética, em que é já outra coisa do que moral, bem, a ética nos é conhecida hoje sob um outro nome, é a palavra etologia. A etologia são as ciências práticas das maneiras de ser. Mas, o que a difere da moral? É o fato de que, na ética, as maneiras de ser estão no ser, como etologia. A moral nos leva à essência que nos leva para os valores. Mas, este não é o ponto de vista do ser; da Ontologia: Porque a moral sempre implica alguma coisa de superior ao ser, o que há superior ao ser é alguma coisa que desempenha o papel do uno, do bem, é o uno superior ao ser. (DELEUZE, 2012, p. 126). A moral, neste sentido, pretende julgar tanto aquilo que é como ao ser mesmo, sendo, assim, superior. Mas, não podemos julgar o ser com uma instância superior ao ser. Para Deleuze (2012, p.127), na moral, sempre se toma como partida a realização da essência, pois, a essência está num estado em que ela não é realizada; nós temos uma essência e ela está em potência no homem. Esta essência humana em potência é aquela que diz Aristóteles ao dizer que o homem, tem como essência, ser um animal racional. Ou seja, a essência como aquilo que a coisa é. Mas, o homem não se conduz apenas racionalmente, porque o homem não é razão pura, então há os acidentes, ele não cessa de ser desviado. (ibid). A essência é realizada pela moral, pois ela é tomada por um fim. A tarefa da moral é passar a essência ao ato; a essência como fim (o Valor). Segundo Deleuze (2002, p.128), Spinoza fala de essência, mas não como essência do homem, pois, a essência é determinação singular disto e daquilo que não do homem (ideias confusas nos levariam a pensar desta forma). [...] o discurso de uma ética prossegue dizendo que também há uma oposição qualitativa entre modos de existência. (ibid). Distinção qualitativa dos existentes ante uma oposição qualitativa dos modos de existência. Estes serão os laços da Ética com a ontologia (ibid). Segundo Deleuze, trata-se de um mundo da imanência que se diferencia de um mundo dos valores morais onde há a tensão entre a essência por realizar e a realização da essência. O acabamento do mundo moral, podemos dizer que é Kant [...] que uma essência humana suposta torna-se por fim [...] Em absoluto, a ética não é isto, são como dois mundos absolutamente diferentes. (DELEUZE, 2012, p.129). A moral, por conseguinte, é um sistema de julgamento onde há um duplo 64

julgamento: você julga a si mesmo e é julgado. E este ato de julgar é uma instância superior ao ser e a toda ontologia. É o uno, o Bem, o superior ao Ser. Os valores são os elementos fundamentais do sistema de julgamento enquanto instância superior ao ser. Numa Ética, diz Deleuze, é diferente, pois, você não julga. O que quer que façamos, não teremos mais do que aquilo que merecemos. O que dizemos ou fazemos não tem relação com os valores. Como isto é possível? Segundo Deleuze (2012, p.130), [...] você procura os modos de existência envolvidos e não os valores transcendentes. É a operação da imanência. O ponto de vista da ética é saber o que somos capazes e o que podemos. Daí a célebre questão spinozana o que pode um corpo? que é retomado por Nietzsche. Para Spinoza, não se trata de um corpo qualquer, mas o homem e o que ele pode. Segundo Deleuze, a ética se caracteriza pela existência de dois grandes modos de existência. Quando pressupomos que cada ente tem uma distinção quantitativa falamos no sentido da Teoria da individuação de Fichte e Schelling, segundo a qual definiu as pessoas, os animais ou coisas pelo que cada um pode. Jamais um moralista definirá o homem pelo que ele pode [...] define o homem pelo que ele é, pelo que ele é em direito (DELEUZE, 2012, p.131). Spinoza não define o homem pelo que ele é (como animal racional), mas pelo que ele pode (enquanto potências do corpo e da mente). Segue-se que, o homem pode ser tanto racional como irracional. Deleuze (2012, p.132) reforça, mais uma vez, a questão ao dizer que Definimos as coisas pelo que elas podem, o que abre às experiências. Do ponto de vista da ética, todos os existentes e entes estão relacionados à potência. O discurso ético não fala de essências, mas da potência, das ações e das paixões que uma coisa é capaz. Não é o que a coisa é, mas o que ela é capaz de fazer e de suportar. Segundo Deleuze, a potência aqui influencia Nietzsche com o conceito de Vontade de Potência. A potência nunca é o que eu quero, mas o que eu tenho, pois, fazer da potência o objeto da vontade é um contrassenso [...] (DELEUZE, 2012, p.133). A potência, portanto, é a escala quantitativa dos seres. É a quantidade da potência que diferencia a existência de cada ser. Num golpe filosófico, diz Deleuze, Spinoza subverte a tradição ao colocar a essência como potência. 2.2. A crítica do bem e mal como valores absolutos Numa segunda abordagem sobre a ontologia e a ética de Spinoza, veremos quais são as questões debatidas por Deleuze, precisamente, no Capítulo 2 (Sobre a diferença da Ética em relação a uma moral) de Spinoza: Filosofia Prática (1981). Como posto acima, a Ética, diz Deleuze, 65

apresenta-se oposta a Moral no que se refere ao sistema ontológico de Spinoza. Ao iniciar com uma breve biografia do pensador holandês, Deleuze (2002, p.23) admite que Nenhum filósofo foi mais digno do que Espinosa, mas também nenhum outro foi tão injuriado e odiado. Deleuze nos mostra a preocupação do spinozismo como um objeto de escândalo partindo das seguintes teses práticas: 1) a crítica da consciência, 2) a crítica dos valores e 3) a crítica das paixões negativas. Estas denúncias foram tomadas, posteriormente, por Nietzsche. Neste sentido, Spinoza foi acusado de ateísmo, imoralismo e materialismo. O primeiro ponto (epistemológico), posto por Deleuze, é a questão sobre a desvalorização da consciência: Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhe instituir o corpo como modelo: Não sabemos o que pode o corpo... (ibid). Esta teoria é uma contraposição para a tradição, pois, antes de falarmos de consciência do domínio do corpo sobre as paixões, somos ignorantes por não sabermos o que é capaz um corpo. Como Nietzsche disse, espantamo-nos com a consciência, mas o corpo nos surpreende. Adiante, Deleuze (2002, p.24) explicita o problema do paralelismo de Espinosa que não admitia qualquer superioridade entre o corpo e a mente: A significação prática do paralelismo aparece na inversão do princípio tradicional em que se fundava a moral como empreendimento de dominação das paixões pela consciência. Diferentemente de Descartes, em suas Paixões da Alma, que afirmava que quando o corpo agia a alma padecia, Spinoza diz, na Ética, que a ação na alma é ação no corpo. Por conseguinte, o corpo ultrapassa o conhecimento que temos dele. Adquirimos o conhecimento da potência do corpo para descobrir paralelamente a potência da alma. (ibid). Segundo Deleuze (2002, p.25), nosso conhecimento sobre as coisas e de nós mesmos são ideias inadequadas, ou seja, confusas e mutiladas, segundo a teoria das ideias adequadas (verdadeiras) e inadequadas (falsas) de Spinoza. A natureza de nossa consciência recolhe o efeito, mas ignora as causas. Assim, nossa ignorância inverte a ordem das coisas, pois tomamos os efeitos como causas, ou seja, como causas finais 12. Além disso, nos proporciona uma ilusão tanto de decretos livres e teológicos. Segundo Deleuze (2002, p.26), A consciência é apenas um sonho de olhos abertos. Por sua vez, Spinoza define o desejo (cuppiditas), na definição geral dos afetos da Parte III da Ética como apetite com consciência de si mesmo. Ao explicar o processo de apetite, Deleuze explicita a teoria spinozana do 12 Spinoza critica qualquer ideia de causa final ou de pretensões teleológicas. Sua ética baseia-se numa causa livre, que é Deus enquanto substância absolutamente infinita. O homem, a partir de ideias confusas, tem a ilusão de que age conforme fins determinados por ele, isto porque ele desconhece as causas da natureza naturante. 66

conatus ou o esforço do ser de perseverar na existência exposta na proposição 6 da Parte III da Ética. O segundo ponto (Moral), posto por Deleuze, é a crítica do Bem e do Mal como valores absolutos que são problemáticas remissivas à Parte IV (Da Servidão humana ou a Força dos Afetos) da Ética. Segundo Deleuze (2002, p.28), todos os fenômenos que agrupamos sob a categoria do mal, doenças, morte, são deste tipo: mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação. Segundo Spinoza, não há bem e mal como valores absolutos, mas o bom e o ruim como relativos. 13 Assim, Deleuze também remete esta problemática a Nietzsche, em sua Genealogia da Moral (I, 17). Segundo Deleuze, o bom é, por exemplo, um corpo que compõe sua relação com o nosso; é aquilo que aumenta a minha potência (o alimento, por exemplo). O mau, por sua vez, é um corpo que decompõe sua relação com o nosso, portanto, diminui minha potência (o veneno que decompõe o sangue, por exemplo). Segue-se que, há encontros (occursus) bons e maus. O bom e o mau são relativos, pois, expressam, segundo Spinoza, o útil e o nocivo, e para Deleuze (2002, p.29), o que convém à nossa natureza e o que não convém. Em específico, o bom é aquele capaz de organizar certos encontros em favor do aumento de sua potência; o mau é aquele que vive ao acaso (fortuna) dos encontros. Daí porque o bom é o forte e o mau, o fraco, que está resignado e contentado, passivo aos maus encontros. Eis, pois, o que é a Ética, isto é, uma tipologia dos modos de existências imanentes, substitui a moral, a qual relaciona sempre a valores transcendentes. A moral é o julgamento de Deus, o sistema de julgamentos. Mas a Ética desarticula o sistema de julgamento. (DELEUZE, 2002, p.29). A questão não é julgar com valores absolutos de bem e de mal, mas perceber a diferença dos modos de existência que é o bom e o mau. Segundo Deleuze, um dos maiores problemas para a ontologia é a confusão que fazem entre o mandamento como algo a ser compreendido e a obediência como conhecimento. A lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/ Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau. (DELEUZE, 2002, p.31). 13 A definição de Bem e Mal é apresentada por Spinoza (2015, p.379) da seguinte forma, Por bem entenderei aquilo que sabemos certamente nos ser útil. e Por mal, porém, aquilo que sabemos certamente impedir que sejamos possuidores de um bem. 67

Por fim, num terceiro ponto, Deleuze trata sobre a teoria das paixões em Spinoza. O filósofo francês ressalta uma das denúncias de Spinoza: o homem das paixões tristes que se entristece com elas e com elas justifica, muitas vezes, seu poder para indignar-se com a paixão humana em geral. Pois, como já abordado em seu Tratado Teológico-Político (1670), Spinoza atribui a essas paixões tristes uma das causas da superstição, como é o caso do medo. Mas, segundo Deleuze (2002, p.32) há em Spinoza uma filosofia da vida, ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa consciência. A crítica às paixões tristes, diz Deleuze, relaciona-se com a teoria das afecções segundo a qual o indivíduo é um grau de potência. O homem, por exemplo, tem o poder de afetar e de ser afetado por outros corpos, ele é preenchido por afecções, ou seja, modificações a partir de outros modos finitos. Deleuze distingue dois tipos de afecções: a ação e a paixão. O poder de ser afetado por afecções ativas é a potência de agir, por outro lado, temos a potência de padecer se formos atingidos por paixões com afecções passivas. Por conseguinte, o encontro com um corpo que convém com nossa natureza, pois a compõe, são de paixões que nos afetam como alegria (aumenta a potência), mas o encontro com um corpo que não convém com nossa natureza são de paixões que nos afetam como tristeza (diminui a potência). Considerações Finais Segundo Deleuze (2002, p.34), A Ética [obra de Spinoza] é necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. Eis como Spinoza demonstrou no final da Parte II da Ética as razões por que fez uma Doutrina ética (e não outra coisa) e quais seus objetivos para a vida do homem, em particular, e na sua relação com a sociedade: Resta, enfim, indicar quanto o conhecimento dessa doutrina contribui para o uso da vida, o que observaremos facilmente pelo que segue: Iº Enquanto ensina que agimos pelo só comando de Deus e que somos partícipes da natureza divina [...] Portanto, essa doutrina, além de tornar o ânimo espírito tranquilo de todas as maneiras, também nos ensina em que consiste nossa suma felicidade, ou seja, beatitude [...] IIº Enquanto ensina como devemos proceder quanto as coisas da fortuna, ou seja aqueles que não estão em nosso poder, isto é, quanto as coisas que não seguem de nossa natureza; [...] IIIº Essa doutrina contribui para a vida social enquanto ensina a não ter por ninguém ódio, desprezo, escárnio, cólera ou inveja. [...] 68

IVº Finalmente, essa doutrina contribui muito para a sociedade comum enquanto ensina de que maneira devem ser governados e conduzidos os cidadãos, a saber, para que não sejam servos, mas para que façam livremente o que é melhor. [...]. (SPINOZA, 2015, pp.227-9). Daí porque o problema principal da Ética é questionar pela possibilidade de alcançarmos o máximo as paixões alegres e consequentemente, passar aos afetos ativos e livres visto que estamos determinados aos maus encontros. Segundo Deleuze, as grandes teorias da Ética-unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência, necessidade universal, paralelismo relacionam-se às três teses práticas acerca da consciência, dos valores e das paixões tristes. Em suma, a Ética de Spinoza, diz Deleuze (2002, p.35), segue o caminho da imanência enquanto inconsciente e conquista do inconsciente. Assim, Deleuze explicitou, a partir da leitura da filosofia de Spinoza, a relação necessária entre uma Ontologia e uma Ética à medida que ambas se fundamentam na realidade da imanência. Deleuze pretendeu, neste sentido, demonstrar que a ética de Spinoza não está baseada em valores transcendentes como Bem e Mal em absoluto nem como normatividade de um Dever-ser; diferente de uma Moral, a ética de Spinoza reflete o agir e suas potencialidades e não prescreve normas para agir. Por conseguinte, a leitura deleuziana da ontologia de Spinoza permitiu constatar que tanto ontologia como ética se diferem da moral, já que não pressupõem valores e instâncias superiores ao ser e a vida prática dos indivíduos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014. CHAUI, Marilena. A Nervura do Real - Imanência e Liberdade em Espinosa. v. 1 (Imanência). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. DELEUZE, Gilles. Curso sobre Spinoza (Vincennes, 1978, 1981), Tradução para o português: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Francisca Evelina Barbosa de Castro, Hélio Rebello Cardoso Junior e Jefferson Alves de Aquino. Fortaleza-Ce: Coleção Argentum Nostrum. Ed. UECE, 2009.. Espinosa Filosofia Prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002. RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Tradução: Jaime A. Clausen. Petrópolis-RJ: Vozes, 2006. 69

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