É uma esquizofrenia tratar o menor como capaz de entender um contrato, mas incapaz de discernir plenamente um homicídio



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Transcrição:

Maio de 2015 Edição n o 4 Articulação Ciências Humanas e suas Tecnologias Contato Imediato Maioridade penal e discernimento É uma esquizofrenia tratar o menor como capaz de entender um contrato, mas incapaz de discernir plenamente um homicídio Rogério Gandra Martins O ponto de partida dos debates sobre a redução da maioridade penal é o Direito. Nossa Constituição consagrou no artigo 14 que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (...) sendo o direito ao voto facultativo aos maiores de 16 anos e menores de 18. Por outro prisma, a Constituição estabeleceu em seu artigo 228 que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial. A legislação especial a que faz menção o artigo veio a ser promulgada pouco após a Constituição: O Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069/90), que tratou no campo específi co do menor infrator o estabelecimento de medidas socioeducativas como formas de penas pelos atos praticados. Comparando o tratamento conferido ao menor caso cometa algum ato contra a lei e a gama de direitos ao mesmo conferidos, noto uma verdadeira esquizofrenia legislativa. O Código Civil de 2002, por exemplo, estabelece que o menor pode dispor sobre seu patrimônio por testamento, ser mandatário em atos jurídicos, entre outras conquistas. Quando se verifi ca que o menor pode por si só entender as complexidades de um contrato de compra e venda, mas não consegue discernir plenamente o que é um homicídio ou não, e caso o pratique será totalmente inimputável, conclui-se que há uma profunda discrepância entre como os outros campos de direito cada vez mais veem o menor como apto a conhecer a realidade de direitos e deveres e a legislação penal, datada de 1940, que ainda o vê com ares de total falta de discernimento, tratando-o como uma criança de 2 anos! Ainda do ponto de vista jurídico, não compartilho do entendimento segundo o qual a inimputabilidade penal ao menor de 18 anos seja uma cláusula pétrea da Constituição e, portanto, imodifi cável. O Direito deve ser revisto de forma urgente, caso contrário, continuará letra morta na questão da maioridade penal. O tema quebrou as barreiras de questionamentos acerca de classes sociais. Barbáries são perpetradas hoje por jovens de todas as classes e a todos é necessária imperiosa repreensão estatal. Reconheço que a diminuição da maioridade penal não resolverá em absoluto os problemas da criminalidade. Mas, uma vez aprovada, grande parte dos menores sem discernimento parará para pensar antes de cometer atrocidades. Não podemos ser ingênuos a ponto de imaginar que um menor que pratica um ilícito não sabe de todo o aparato de benesses que o espera. No máximo uma condução a um estabelecimento especial, com a aplicação de uma medida socioeducativa, prazo de permanência ínfi mo, bem como um período de prescrição da conduta mínimo. Se adotada a medida, as técnicas do crime organizado de usar a infantaria dos menores inimputáveis na primeira linha do front de guerra, a fi m de que os de maior sejam poupados para operações de grande vulto, seriam razoavelmente diminuídas. O problema da criminalidade no país só será realmente analisado caso se pratiquem contundentes medidas interdisciplinares. Um elevadíssimo investimento em educação de altíssima qualidade, aparelhamento e condições efetivas para que as polícias possam de fato prestar segurança à população, uma verdadeira revolução em termos de políticas públicas a fi m de retirar as populações menos abastadas dos níveis de miséria e não as algemas eleitorais de parcas bolsas família e tantas outras bolsas. Se 93% da população brasileira é favorável a essa redução, o mínimo que a ela se pode ofertar é a possibilidade de exercer sua cidadania por um plebiscito. Ou se toma uma atitude condizente com a realidade brasileira, ou o que se poderá falar amanhã para o pai ou mãe de um fi lho vítima inocente de um homicídio com requintes de crueldade? Será que aceitarão as palavras Tenham pena do garoto, não sabe ainda o que faz.? MARTINS, Rogério Gandra. Maioridade penal e discernimento. Folha de S.Paulo, Opinião. Fornecido pela Folhapress. Extraído do site: <www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/108620-maioridade-penal-e-discernimento.shtml>. Acesso em: 16 abr. 2015. 1

Não à redução da maioridade penal Chico Sardelli O tema da redução da maioridade penal tramita há mais de 20 anos na Câmara Federal, mas recentemente ganhou mais força a discussão da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171. Como homem público, tenho sido abordado com certa frequência a respeito do assunto e respondo que meu posicionamento é contrário à iniciativa de que adolescentes em ato infracional a partir dos 16 anos sejam presos em celas comuns. Na minha opinião, reduzir a maioridade penal é tratar apenas o efeito e não a causa do problema. É claro que muitas situações de crimes registrados no país nos revoltam e geram reações das famílias envolvidas. A violência urbana vai diminuir levando para a cadeia jovens de 16 ou 17 anos? Como o problema não será resolvido, mais um tempo e vão pedir a redução da maioridade para 14 anos, 12 anos, 10 anos, por exemplo. A cadeia não educa absolutamente ninguém. Pelo contrário, o sistema prisional brasileiro está falido, dominado por facções criminosas, é a universidade do crime e diminui ainda mais qualquer chance de recuperação desses jovens. Os dados apresentados em audiência pública promovida na Assembleia Legislativa [de São Paulo] servem para uma reflexão mais profunda sobre o tema. O Brasil tem aproximadamente 60 milhões de adolescentes com menos de 18 anos, dos quais apenas 0,09% aparecem envolvidos em algum tipo de delinquência. Desse percentual, somente 0,9% tiveram participação em atos contra a vida, como homicídio ou latrocínio. Por outro lado, o Índice de Homicídios de Adolescentes (IHA), divulgado em janeiro, aponta que enquanto a população brasileira tem 5% de chance de ter uma morte violenta, os adolescentes têm 36%. Em 2012, entre os 56 mil homicídios ocorridos no país, 30 mil eram jovens, em sua maioria negros e pobres. Em documento contra a PEC 171, assinado no final de abril por ministros da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República de vários governos, eles afirmaram que os jovens brasileiros estão sendo retratados como culpados pelo alto índice de violência, mas na verdade são as vítimas. Os ministros rebatem, inclusive, os argumentos favoráveis à proposta de que os adolescentes envolvidos em atos violentos são impunes por falta de lei adequada. A legislação, destaca o documento, já dispõe dos meios para que os adolescentes respondam por seus atos para que consigam romper o ciclo de violência em que estão envolvidos. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a responsabilização do jovem a partir dos 12 anos, por meio de medidas socioeducativas e, também, a privação da liberdade. Pelo atual sistema, em muitos casos, um adolescente chega a ficar mais tempo preso do que adultos que cometeram crimes similares. A questão de a Fundação Casa [SP], que abriga adolescentes infratores, estar com suas unidades superlotadas é sem dúvida outro ponto que precisa ser destacado e tratado pelo governo. O medo e a insegurança certamente fazem as pessoas buscarem soluções imediatas, o que justifica o resultado de pesquisas indicando que a maioria da população é favorável à redução da maioridade penal. A proposta, no entanto, precisa ser melhor debatida com a sociedade, aprofundando as causas da violência com menores. Precisamos de programas sociais que façam a família ter condições de sustentar e dar qualidade de vida aos filhos. E de políticas públicas abrangentes para a educação, a saúde, a cultura, o esporte, que tiram as crianças e adolescentes das ruas e dos crimes. SARDELLI, Chico. Não à redução da maioridade penal. Noticiário da Assembleia (Alesp), São Paulo, 7 maio 2015. Extraído do site: <www.al.sp.gov.br/noticia/?id=364245>. Acesso em: 13 maio 2015. Diálogo aberto Redução da maioridade penal: confusão conceitual e oportunismo político Murilo Cruz No dia 31 de março deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJC) decidiu que a proposta de emenda constitucional (PEC) 171, apresentada em 1993, e que propõe a redução da maioridade penal para 16 anos, não é inconstitucional, e, portanto, pode seguir para votação na Câmara e no Senado. PEC 171: a emenda é avaliada como inconstitucional por muitos juristas, pela contradição com uma cláusula pétrea da Constituição Federal do Brasil. As cláusulas pétreas são aquelas que não podem ser alteradas nem mesmo por emenda constitucional. Por se caracterizar como uma proposta de emenda constitucional, isto é, de mudança na Constituição, da cláusula que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, a PEC 171 feriria o direito dos brasileiros entre 16 e 18 anos, qual seja, o de não ficarem presos em penitenciárias comuns. 2

Na argumentação apresentada à CCJC, responsável por avaliar a constitucionalidade das propostas do Legislativo, a questão do direito dos jovens ficou em segundo plano apesar de tratar, justamente, da supressão dos direitos deles. Ao mesmo tempo, não são acatados outros argumentos contrários à redução, como, por exemplo, que tal mudança feriria acordos internacionais de proteção à criança, assinados pelo Brasil, o que é uma questão geopolítica relevante. É importante, no entanto, a compreensão e o debate de um tema tão polêmico, considerando especialmente a confusão conceitual e os oportunismos políticos envolvidos. O defensor da legalidade da proposta é o deputado Marcos Rogério (PDT-RO), para quem o maior problema da atual legislação penal seria o fato de que menores de 16 anos já podem votar e trabalhar, mas não ser punidos por crimes como homicídio, estupro e roubo. O problema seria, portanto, que o Estado brasileiro não poderia responsabilizar penalmente os infratores menores de 18 anos. Tal questão, porém, é um pouco mais complexa. Quando alguém comete um crime e não se enquadra em nenhum caso de inimputabilidade, dizemos que é possível aplicar a responsabilidade penal. Considerando que vivemos em sociedade, a cultura da punição está presente desde muito cedo, quando pais castigam seus filhos, quando condutas passam pela desaprovação e censura de grupos sociais, e, sobretudo, o que é o caso aqui discutido, quando o Estado intervém e impõe severas restrições ao convívio social. Nesse aspecto, em uma democracia pode-se refletir e discutir sobre qual a melhor solução para tais casos, pensando, inclusive, em medidas de prevenção ao crime. De modo geral, exceto nos casos de pessoas com problemas mentais graves e de crianças, os cidadãos podem ser penalmente responsabilizados. Há, no entanto, um detalhe a ser considerado. A responsabilidade penal costuma ser dividida em duas categorias: a juvenil e a dos adultos. Podendo, ainda, ser utilizada uma categoria intermediária: jovens adultos. O que muda de uma categoria para outra é a forma da punição e, mais precisamente, a maneira como o Estado passa a ter direito de tutela sobre a pessoa que cometeu o crime. Em 2009, a Unicef, em parceria com o governo federal brasileiro, publicou um relatório sobre as diferentes formas de organizar essas categorias de responsabilidade penal 1. Estados Unidos, Canadá, Japão, Coreia do Sul, China, América Latina e Europa estão incluídos no relatório. Vejamos alguns dados. Primeiramente, vale destacar que todos os países pesquisados fazem algum tipo de diferenciação entre a responsabilidade penal juvenil e a adulta. O que muda é o tipo de diferenciação e a idade que marca cada uma das duas fases. Há países, como a Suíça, Estados Unidos e México, nos quais a responsabilidade juvenil começa bem cedo, respectivamente aos 7, 10 e 11 anos. À exceção desses países, a idade de 12 anos é a mais rigorosa para marcar o início da fase da responsabilidade penal. Muitos países adotam o piso entre 13 e 15 anos, entre eles, países muito diferentes como Chile, China e Dinamarca. No Brasil, a responsabilidade penal juvenil começa aos 12 anos, o que contradiz a afirmação dos defensores da PEC 171, de que os menores de 18 anos não podem ser punidos por crimes. O fato é que eles podem e são punidos, porém, a forma de punição é diferenciada, e pode chegar à reclusão por até três anos em centros de atendimento socioeducativos ao adolescente, conhecidos no estado de São Paulo como Fundação Casa. É a punição idêntica à dos adultos que, realmente, só pode ocorrer no país após os 18 anos. Este é o limite da maioridade penal, isto é, a idade a partir da qual a punição pode seguir os padrões mais extremos, no contexto de cada país. O relatório da Unicef informa ainda que 18 anos é o limite para 79% dos países pesquisados, havendo ainda os que apresentam a categoria de jovens adultos (entre 18 e 21 anos), para a qual a punição também não é igual à dos adultos. Nessa situação incluem-se Alemanha, Itália, Espanha e Inglaterra. Com base nesses dados e definições, podemos lançar luzes à polêmica reinante no Brasil. A legislação penal determina duas categorias, uma dos 12 aos 18 anos e outra a partir dos 18 anos. Vê-se, portanto, que o Brasil possui leis para punir tanto adultos quanto adolescentes. O que poderíamos questionar é a forma da punição e sua relação com as características políticas, econômicas e sociais do país. Os defensores da redução da maioridade penal acreditam que o maior problema é o fato de que o encarceramento dos infratores entre 12 e 18 anos ser insuficiente, pois tem limite de três anos. Independentemente do crime, o jovem menor de 18 anos só pode ficar preso por três anos. Esse é um ponto muito importante que não costuma ficar claro nos debates sobre o assunto. 1 SPOSATO, Karina Batista. Porque dizer não à redução da maioridade penal. Unicef, nov. 2007. p. 76. Extraído do site: <www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/file/idade_penal/unicef_id_penal_nov2007_completo.pdf>. Acesso em: 12 maio 2015. 3

Maria do CArmo/Folhapress FTD Sistema de Ensino Articulação Maio de 2015 Edição no 4 É importante esclarecer três principais posicionamentos sobre esse ponto. E encontramos (1) os que defendem a manutenção das coisas como estão; (2) os que defendem que, a partir dos 16 anos o jovem seja punido como adulto (o que, lembremos, vai contra o que fazem 80% dos países democráticos do mundo) e (3) os que consideram que é importante a manutenção da maioridade penal em 18 anos, mas que defendem a mudança nas formas de punição para os infratores menores de 16. Normalmente, as mudanças defendidas tem dois sentidos: aumentar o tempo de reclusão (para crimes mais graves) e, principalmente, melhorar as condições das instituições onde os jovens ficam reclusos, as quais teriam um caráter mais de recuperação e reinserção social do que simplesmente de punição. Essa última posição chama a atenção pelo fato de reforçar a necessidade de que haja uma forma diferenciada para a punição de menores infratores. E isso nos leva a outro ponto importante da discussão: o vínculo entre a questão criminal e a questão social. É fato que o Brasil é um país extremamente desigual, que o sistema de ensino público é caótico, que a polícia é mais violenta nos bairros da periferia, onde o Estado aparece muito mais nesta forma brutal do que na de políticas públicas eficientes que propiciem mais proteção e perspectivas a uma juventude que dificilmente as encontra em seu dia a dia. Tampouco o sistema penal do país é exemplo de eficiência. Além disso, em grande parte dos centros de atendimento socioeducativos onde são internados os menores infratores há violência contra o menor e falta de programas educativos e de reabilitação. 4 o Conteúdo Filipe Araújo/Estadã É importante ressaltar, também, que a situação nas prisões é bem pior. Primeiramente, por causa da violência à qual os presidiários são abandonados, mas também por causa das condições sub-humanas de superlotação e higiene. Em tais condições, os detentos acabam reféns de organizações criminosas, como o PCC (Primeiro Comando da Capital). A partir desse momento, ele está comprometido com o crime tanto dentro Internos na unidade do Tatuapé da antiga Fundacomo fora do sisção Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), tema prisional. atual Fundação Casa, em São Paulo, durante rebelião ocorrida em 2005. Diversas vezes denesse connunciada por maus tratos e violação dos direitos texto, defender humanos, a unidade foi desativada em 2007. Foto a simples redude março de 2005. ção da maioridade penal pode ser visto como um ato de populismo dos deputados e senadores. Afinal, não faz sentido acreditar que, sem resolver os problemas sociais e investir no sistema prisional, poderá haver algum benefício em transferir mais rapidamente os jovens infratores para as prisões. Praticada Cabe à sociedade o debate acerca da eficácia da redução da maioridade penal, bem como a ampliação de políticas voltadas à prevenção de atos ilícitos por menores, estendidas à reeducação e reinserção. Na foto, sala de aula da escola estadual Prof. Lúcia de Castro Bueno, em São Paulo, que, em 2009, obteve o melhor desempenho no Enem, dentre as escolas públicas do país.

da forma como é feita hoje, essa transferência só tenderia a realimentar a violência e o crime organizado. É característica de ações populistas a proposição de medidas de grande apoio popular, como a redução da maioridade penal, mesmo que tal apoio seja também resultado da falta de informação e de esclarecimento por parte da população. Que os congressistas estejam propondo tal medida num momento de baixíssima popularidade da classe política é, no mínimo, um sinal de alerta para pensarmos em suas reais intenções. É indispensável, portanto, a promoção de uma ampla discussão sobre o problema, levando em consideração todos os seus aspectos e os pontos de vista envolvidos. Murilo Cruz é graduado e mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), autor de livros didáticos e de Atlas de Geografia para Ensino Médio e Pré-vestibular e professor de Geografia nos ensinos Fundamental, Médio e Pré-vestibular desde 1997. Murilo Cruz Sua opinião 1. Em 15 de abril deste ano, o instituto de pesquisa Datafolha divulgou que 87% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal. Considerando os resultados dessa pesquisa e que a redução da maioridade penal significa a determinação de penas mais severas para os jovens infratores, faça uma reflexão contrapondo duas posições possíveis: reclusão como forma de punição e reclusão como forma de recuperação e reinserção social. 2. Em Sociologia, considera-se que a violência tem suas origens na própria forma de organização do complexo social. Com base nessa informação, apresente argumentos que defendam a redução da maioridade penal como solução para a redução da violência. Em seguida, apresente outras medidas possíveis para alcançar tal objetivo. 3. As polêmicas em torno da violência costumam contrapor dois lados: os que tratam o problema como uma questão de polícia e de repressão e os que o tratam como um problema social e de necessária intervenção estatal na forma de políticas distributivas e de justiça social. Escreva um texto de pelo menos 20 linhas argumentando em favor de um desses dois pontos de vista. Fundamente seu texto em dados, que devem ser pesquisados na internet, em livros ou revistas. Sugestão: procure relacionar mais de um tipo de dado, por exemplo, estatísticas sobre escolaridade, desigualdade social, violência, renda per capita, desigualdade racial, entre outras. 5

Ligando a maioridade penal à Constituição 1 A proposta de redução da maioridade penal no Brasil para 16 anos é controversa, pois fere a Constituição Federal, uma vez que retira direitos que devem ser garantidos pelo Estado. É necessário, portanto, maior compreensão e debate sobre a questão. A proposta de recuperação e reinserção social, em lugar da simples defesa da redução da maioridade penal para 16 anos, pode contribuir, a médio e longo prazo, para o avanço da democracia brasileira. 6 2 É essencial refletir e debater sobre a questão da maioridade penal e a cultura da punição, tão presentes na sociedade brasileira, e sobre as diferenças entre responsabilidade penal juvenil e de adultos, questionando, fundamentalmente, a necessidade de reclusão de jovens infratores junto a adultos. No Brasil, a segregação e exclusão socioeconômica começam desde muito cedo, em especial por causa da violência urbana, que atinge particularmente os bairros de periferia. Isso ressalta a importância de ações sociais que possam contribuir para a recuperação e reinserção de jovens infratores. 5 3 Para a Unicef, deve-se dizer não à redução da maioridade penal. A entidade produziu um documento no qual apresenta as razões de tal posicionamento; nele, constata-se que 79% dos países consultados, entre os quais a China e a Dinamarca, estabeleceram a responsabilidade penal adulta aos 18 anos, o que ressalta a necessidade de refl etir sobre a cultura da punição e aprofundar o debate no Brasil. O debate sobre a redução da maioridade penal demanda também a avaliação do sistema penal e, sobretudo, a análise das relações socioeconômicas e políticas da sociedade brasileira, bem como a proposição de ações sociais voltadas aos jovens infratores. 4 6

Resolução 1. Diante de um quadro de altos índices de violência urbana, principalmente ligados a assaltos, tráfico de drogas e homicídios, é compreensível que grande parte da população se sinta assustada e passe a exigir a reclusão como punição contra aqueles que são vistos como a origem do problema e a criação de mecanismos de vingança contra os infratores. Esse sentimento é reforçado pela forma como muitos meios de comunicação tratam o problema, enfatizando o sofrimento das famílias vítimas da violência, mas não tratando os próprios atores dos atos de violência como vítimas sociais. Numa perspectiva de recuperação e reinserção social, a reclusão passa a ser uma política social cujo objetivo é corrigir aquilo que outras instituições (escola, polícia, família) falharam. É, portanto, um ponto de vista em que a sociedade assume a responsabilidade pela violência, em lugar de culpar indivíduos isoladamente. Nessa perspectiva, porém, a redução da maioridade penal e a reclusão de maiores de 16 anos no atual sistema penitenciário brasileiro e suas péssimas condições dificilmente atingiria o objetivo de recuperar e reinserir esses jovens infratores, devido às suas péssimas condições socioeconômicas. 2. Uma das propostas pode ser a redução da maioridade penal como estratégia para combater a impunidade e, dessa forma, evitar que mais jovens ingressem no mundo do crime. Ainda considerando essa perspectiva, seria possível defender que os jovens menores de 18 anos poderiam ser utilizados pelo crime organizado para cometer delitos em lugar daqueles imputáveis penalmente. Assim sendo, a redução da maioridade penal poderia ser defendida como uma proteção aos jovens contra o próprio crime organizado. Tais propostas, no entanto, seriam sempre parciais, uma vez que a criminalidade está sendo relacionada, em ambos os casos, a aspectos pontuais da organização social (impunidade, assédio do crime organizado sobre os jovens, entre outros) e não ao seu conjunto. Inversamente, quando consideramos o conjunto da sociedade, é preciso destacar a desigualdade social, a precariedade da educação pública, a discriminação social e racial, a violência policial, a estrutura urbana precária das periferias, dentre outros aspectos de uma sociedade injusta como a brasileira. Com esse tipo de consideração, torna-se mais coerente propor o combate a todas essas injustiças a fim de reduzir a violência e a criminalidade. 3. Resposta pessoal. É importante elaborar uma argumentação coerente com os dados levantados. Diretor editorial Lauri Cericato Gerente editorial Sandra Carla Ferreira de Castro Autor Murilo Cruz Editor Alício Roberto Egydio Leva Editores assistentes Georges Nicolau Kormikiaris Jarimar Aparecida Jesus Assistente editorial Juliana Oliveira Gerente de produção editorial Mariana Milani Coordenadora de produção Luzia Estevão Garcia Coordenadora de preparação e revisão Lilian Semenichin Nogueira Preparação e revisão Líder Adriana Soares de Souza Preparador Daniel Haberli Silva Revisora Renata Favareto Callari Iconografia Supervisora Célia Rosa Pesquisadora Marli Garcia Coordenadora de diagramação e arte Daniela Máximo Editora de arte Flavia Yamamoto Boni Diagramadora Patrícia Lé 7