Predação de embriões por girinos de Bokermannohyla alvarengai (Anura, Hylidae) em riacho temporário na Serra do Ouro Branco, Minas Gerais, Brasil

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Transcrição:

BOL. MUS. BIOL. MELLO LEITÃO (N. SÉR.) 24:111-118. DEZEMBRO DE 2008 111 Predação de embriões por girinos de Bokermannohyla alvarengai (Anura, Hylidae) em riacho temporário na Serra do Ouro Branco, Minas Gerais, Brasil Vinícius A. São Pedro 1*, Leandro O. Drummond 2, Henrique C. Costa 1, Vítor D. Fernandes 1 & Renato N. Feio 1 RESUMO: O comportamento oofágico e o canibalismo são bastante difundidos entre girinos de diversas famílias de anuros, sendo o último particularmente comum em ambientes temporários, tais como o riacho do presente estudo. Este artigo relata um evento de predação no campo, no qual girinos de Bokermannohyla alvarengai se alimentaram de embriões co-específicos. Esta é uma importante fonte de alimento com alto teor de proteína. Não há publicações mencionando que larvas de B. alvarengai possuam características de espécies oófagas. Contudo, o registro em laboratório de uma taxa significativa de predação de 6 embriões/girino/dia indica que tais larvas sejam oófagas oportunistas. Palavras-chave: alimentação, canibalismo, Hylinae, oofagia. ABSTRACT: Embryo predation by tadpoles of Bokermannohyla alvarengai (Anura, Hylidae) in a temporary stream at Serra do Ouro Branco, Minas Gerais, Brazil. Oophagic behavior and cannibalism are quite widespread among tadpoles of several anuran families, the later being particularly common in temporary environments, such as the stream studied here. We report a predation event where tadpoles of Bokermannohyla alvarengai fed on conspecific embryos. This is as an important food source because of its high protein content. There are no published records mentioning that B. alvarengai larvae have characteristics of an oophagic species. Nevertheless, we found significant predation rate of 6 embryos/tadpole/day in the laboratory, indicating that this larvae are opportunistically oophagous. Key words: cannibalism, feeding, Hylinae, oophagy. 1 Museu de Zoologia João Moojen, Departamento de Biologia Animal, Universidade Federal de Viçosa, 36571-000, Viçosa, MG, Brasil. 2 Laboratório de Zoologia dos Vertebrados, Instituto de Ciências Exatas e Biológicas, Universidade Federal de Ouro Preto, Campus Morro do Cruzeiro, 35400-000, Ouro Preto, MG, Brasil. * Correspondente: vasaopedro@yahoo.com.br Recebido: 13 abr 2008. Aceito: 26 nov 2008.

112 SÃO PEDRO ET AL.: PREDAÇÃO DE EMBRIÕES POR GIRINOS DE BOKERMANNOHYLA ALVARENGAI Introdução Embora a maioria dos girinos de anuros seja herbívora, alguns se alimentam de outros animais de diversos táxons, como anelídeos, cladóceros, copépodos, insetos, nematódeos e rotíferos (Hoff et al., 1999). Muitos girinos também podem suplementar suas dietas através da necrofagia ou predação de outros girinos (Crump, 1986, 1990; Magnusson & Hero, 1991; Alford, 1999). Outra forma de obtenção de nutrientes é o consumo de ovos co-específicos ou hetero-específicos, hábito conhecido como oofagia (Alford, 1999). Espécies de várias famílias de anuros neotropicais são conhecidas por apresentarem larvas oófagas, tais como Cycloramphidae (Giaretta & Facure, 2004), Leptodactylidae (Gibson & Buley, 2004; Prado et al., 2005; Silva & Juncá, 2006), Hylidae (Crump, 1983; Magnusson & Hero, 1991), Bufonidae (Hearnden, 1992) e Dendrobatidae (Caldwell & Araújo, 1998), sugerindo que a oofagia tenha surgido de maneira independente nesses diferentes grupos. Diferentes graus de especialização podem ser encontrados em girinos oófagos. Algumas espécies, ditas oófagas oportunistas, podem incluir ocasionalmente ovos em sua dieta, enquanto outras são oófagas obrigatórias, com larvas que se nutrem exclusivamente de ovos (Jungfer & Weygoldt, 1999). Bokermannohyla alvarengai (Bokermann, 1956) é uma espécie restrita às áreas montanhosas acima de 1.000 metros de altitude da cadeia do Espinhaço, nos estados de Minas Gerais e Bahia, Brasil (Eterovick & Sazima, 2004). Habita áreas abertas, sendo geralmente encontrada em rochas às margens de riachos e córregos. Reproduz-se em ambientes aquáticos lóticos, depositando amontoados frouxos com cerca de 1.500 ovos no fundo pedregoso de riachos, em bacias de certa profundidade e pouca correnteza, de outubro a dezembro. Os girinos podem ser encontrados entre novembro e março (Sazima & Bokermann, 1977; Eterovick & Sazima, 2004). As larvas de B. alvarengai possuem hábitos bentônicos, atingem seu comprimento máximo (aprox. 53 mm) no estágio 40, após cerca de quatro meses (Sazima & Bokermann, 1977; Eterovick & Sazima, 2004), não havendo registros sobre sua dieta. Este trabalho relata um evento de predação de embriões do hilídeo B. alvarengai por girinos da mesma espécie em ambiente temporário de campo rupestre, com observações complementares feitas em laboratório.

BOL. MUS. BIOL. MELLO LEITÃO (N. SÉR.) 24. 2008 113 Métodos A observação aqui relatada foi realizada em um riacho temporário em afloramentos rochosos quartzíticos de campos rupestres, localizado na Serra do Ouro Branco (20 30 30"S, 43 36 47"W), município de Ouro Branco, Minas Gerais. Este corpo d água começa a secar ao final da estação chuvosa, entre os meses de março e abril, tornando a encher durante o período chuvoso, a partir de setembro e outubro. A região se localiza em área de ecótono entre os biomas Mata Atlântica e Cerrado, com médias anuais de 20,7 C de temperatura e 1188,2 mm de pluviosidade. A localidade corresponde ao limite sul da distribuição conhecida para B. alvarengai. No dia 12 de novembro do ano de 2006, durante a estação chuvosa, aproximadamente às 20:00 h, foi encontrada uma desova fragmentada de B. alvarengai, em uma poça com cerca de 1 1,5 m e 30 cm de profundidade, no interior do riacho temporário, onde também se encontravam dezenas de girinos, dos quais cerca de 15 se alimentavam ativamente da desova. A temperatura do ar oscilou entre 12 e 14 C, e a da água entre 16 e 17 C. Quatro girinos foram capturados e levados vivos para laboratório, juntamente com parte da desova contendo 70 ovos. Girinos e ovos foram então mantidos em um pequeno aquário (35 cm 20 cm 30 cm) com água proveniente da poça onde estavam, realizando-se ali as observações de comportamento alimentar. Ao final das observações, os espécimes foram mortos e depositados na coleção herpetológica do Museu de Zoologia João Moojen, da Universidade Federal de Viçosa (MZUFV 8479), Minas Gerais. Os girinos foram identificados ao nível específico e tiveram seu estágio de desenvolvimento determinado (sensu Gosner, 1960). Resultados Em campo, os girinos foram observados em atividade durante a noite, enquanto em cativeiro demonstraram-se ativos também durante todo o dia. Confirmando as observações prévias feitas em campo, as larvas se alimentavam somente do embrião no interior do ovo, descartando as cápsulas gelatinosas que os envolviam. Em 3 dias, todos os 70 ovos tiveram seus embriões predados, resultando numa taxa de predação de aproximadamente 6 embriões/girino/dia (Figura 1).

114 SÃO PEDRO ET AL.: PREDAÇÃO DE EMBRIÕES POR GIRINOS DE BOKERMANNOHYLA ALVARENGAI Os exemplares coletados estavam no estágio 40 de desenvolvimento (sensu Gosner, 1960), com comprimento médio de 49,9 mm. Eles apresentaram características que estão de acordo com as da descrição original feita por Sazima & Bokermann (1977), como: corpo relativamente pequeno e elíptico; olhos pequenos e quase dorsais; cauda muscular pouco desenvolvida com membranas deprimidas; boca pequena e ventral, marginada por uma série de papilas na parte dorsal e série dupla na parte ventral, com fórmula dentária 2(1)/5(1), sendo a primeira série posterior e inferior divididas ao meio, e o bico córneo com bordas serrilhadas. Discussão O canibalismo é comum entre algumas espécies de vertebrados e invertebrados, especialmente sob condições de alta densidade populacional Figura 1. Girinos de Bokermannohyla alvarengai em cativeiro, predando ovos coespecíficos.

BOL. MUS. BIOL. MELLO LEITÃO (N. SÉR.) 24. 2008 115 e escassez de alimento (Fox, 1975), mas não está restrito a isso. Além da energia e nutrientes ganhos, a eliminação de um possível competidor ou predador co-específico pode ser uma das vantagens deste tipo de comportamento (Crump, 1983). Polis & Myers (1985) relatam a presença de canibalismo e/ou oofagia em 53 espécies de anfíbios, e diversos outros registros foram feitos após esta revisão, demonstrando o quão comum é este comportamento neste grupo (e. g., Gibson & Buley, 2004; Prado et al., 2005; Silva & Juncá, 2006; Giaretta & Facure, 2004; Caldwell & Araújo, 1998; Magnusson & Hero, 1991). O canibalismo em girinos pode ser particularmente comum em espécies que se reproduzem em corpos d água temporários, onde tal comportamento possibilita uma rápida obtenção de recursos com alto teor protéico, podendo ser útil na aceleração da metamorfose das larvas, o que reduz os riscos de morte por dessecação (Bragg, 1956; Crump, 1983; Caldwell & Araújo, 1998). Já foi observado que girinos submetidos a dietas com alto teor de proteínas crescem e se desenvolvem mais rápido (Kupferberg, 1997). Crump (1990) observou que girinos de Isthmohyla pseudopuma que se alimentavam de coespecíficos, cresciam significativamente mais que aqueles alimentados com girinos de outras espécies, demonstrando as vantagens do canibalismo em larvas que vivem em ambientes aquáticos com reduzida vida útil. Segundo Sazima & Bokermann (1977), os girinos de B. alvarengai têm atividade predominantemente diurna, contrariando a observação em campo aqui relatada, na qual os girinos se alimentavam à noite. Entretanto, foi observado em laboratório que os girinos também se mostraram ativos durante o dia. Richter-Boix et al. (2007), em estudo feito com o anfíbio europeu Pelodytes punctatus notaram em seus experimentos que girinos submetidos à dessecação do hábitat, além de preferirem uma dieta com alto teor protéico, também mostraram maior atividade que o grupo controle. Outras hipóteses a serem consideradas são as de que os girinos podem aumentar seu período de atividade alimentar nos estágios pré-metamórficos, acarretando uma aceleração no processo de metamorfose, ou ainda, podem aumentar o período de atividade quando há um acréscimo repentino de alimentos disponíveis. Os girinos se alimentavam somente do embrião no interior do ovo, descartando as cápsulas gelatinosas que os envolviam, provavelmente por serem incapazes de engolir os ovos inteiros, que são relativamente grandes. Tal comportamento é observado, por exemplo, em girinos recém-nascidos de Anotheca spinosa, Osteocephalus oophagus e Leptodactylus fallax (Jungfer, 1996; Jungfer & Weygoldt, 1999; Gibson & Buley, 2004). Crump (1983) cita algumas adaptações morfológicas de girinos para a

116 SÃO PEDRO ET AL.: PREDAÇÃO DE EMBRIÕES POR GIRINOS DE BOKERMANNOHYLA ALVARENGAI oofagia, como trato digestivo curto, estômago expansível, ausência de dentículos, bico córneo robusto e estruturas branquiais reduzidas. Não conhecemos trabalhos sobre a dieta de girinos de B. alvarengai, mas a ausência das adaptações morfológicas citadas por Crump (1983) indica que essa espécie não é especializada para alimentar-se de ovos, podendo ser classificada como oófaga oportunista. O grande número de embriões predados pelos girinos mantidos em laboratório indica que este comportamento alimentar pode ser um importante fator de mortalidade para as desovas depositadas ao final da estação reprodutiva, e ao mesmo tempo pode ser uma importante fonte de nutrientes para as larvas prestes a iniciar a metamorfose. Agradecimentos Ao Felipe Leite pela ajuda na identificação dos girinos. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de mestrado ao primeiro autor, durante o qual foram realizadas as observações de campo relatadas neste artigo. Aos dois revisores anônimos pelas sugestões. Referências ALFORD, R. A. 1999. Ecology: resource use, competition and predation, In R. W. Mcdiarmid & R. Altig (eds.). Tadpoles: The biology of anuran larvae. The University of Chicago Press, Chicago, p. 240-247. BOKERMANN, W. C. A. 1956. Sobre uma nova espécie de Hyla do estado de Minas Gerais, Brasil (Amphibia, Salientia, Hylidae). Papéis Avulsos do Departamento de Zoologia, 12 (8): 357-362. BRAGG, A. N. 1956. Dimorphism and cannibalism in tadpoles of Scaphiophus bombifrons (Amphibia, Salientia). The Southwestern Naturalist, 1: 105-108. CALDWELL, J. P. & ARAÚJO, M. C. 1998. Cannibalistic interactions resulting from indiscriminate predatory behavior in tadpoles of poison frogs (Anura: Dendrobatidae). Biotropica, 30: 92-103. CRUMP, M. L. 1983. Opportunistic cannibalism by amphibian larvae in temporary aquatic environments. American Naturalist, 121:281 287. CRUMP, M. L. 1986. Cannibalism by younger tadpoles: Another hazard of

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