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Transcrição:

Teatro de Invasão em ambiente privado: A casa como elemento de criação. Eduardo Bruno Fernandes Freitas 1 eduardobfreitas@hotmail.com Resumo: O espaço teatral vem ao longo da historia do teatro mundial sendo descoberto e redescoberto como elemento dramatúrgico, porém, é na contemporaneidade, quando o palco italiano já não nos é o bastante, que ele volta a ser visto como um elemento compositor da cena. Neste trabalho pretendemos compreender, por meio da observação de duas cenas da peça Jardim das espécies, apresentadas em duas temporadas no ano de 2011, pelo grupo de Teatro EmFoco, de que forma o espaço modifica e é modificado por um espetáculo. Percebendo, assim, como o local de apresentação é elemento indiscutivelmente importante na construção da dramaturgia e das partituras corporais, principalmente em espetáculos realizados fora dos muros do teatro convencional. É por meio do conceito de Teatro de Invasão discutido por Andre Carreira (2009) e da ideia de ocupação de espaço alternativo, pensada por Antonio Araujo (2002) e Evill Rebouças (2009), que teceremos essa comparação. Palavras- chave: Teatro de Invasão. Espaço. Jardim das espécies. O conceito de Teatro de Rua vem sofrendo modificações ao longo da história do teatro. Inicialmente compreendido como um teatro encenado na rua, para um público que não frequenta a zona normativa do teatro, está atrelado à ideia de uma estética menor em rebuscamento artístico. Quando falamos em rua, não necessariamente nos referindo a calçadas e avenidas; dizemos rua em uma concepção maior, compreendido lugares como casas, igrejas, metros etc. Desse modo, renomear como Teatro de Invasão que é o teatro que interfere nos segmentos da cidade (CARREIRA, 2009, p. 2), nos ajudará a ter uma melhor compreensão espacial. O teatro que se propõe a sair das paredes do palco italiano, ou até mesmo dos muros de proteção da zona teatral, que confortavelmente o abriga, deve ter como ponto inicial do trabalho a compreensão de espaço maior de que os dos espetáculos vinculados ao palco convencional. A ideia de palco como local neutro e vazio, mesmo sendo questionada no palco italiano, torna-se completamente fictícia quando pensamos em uma apresentação teatral em locais alternativos. Esse espaço, seja ele uma praça ou uma casa, não foi construído pensando em ser habitando por um espetáculo teatral, assim como seus vizinhos, transeuntes e/ou moradores não estão no 1 Graduando em Licenciatura em Teatro pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Diretor do grupo de Teatro EmFoco (Fortaleza-CE).

local aceitando que ele seja usado como local de apresentação, assim, não se sentem obrigados a contribuir positivamente com a realização do evento. Dessa forma, Toda performance teatral na rua é uma possibilidade de prática invasora. A partir dessas noções podemos pensar como se dá a ação reflexiva e crítica daqueles que habitam a cidade, e também particularizar nossa abordagem daquele teatro que toma as ruas, praças e edifícios como dispositivo cênico (CARREIRA, 2009, p. 3). Não são, porém apenas as pessoas que compõem o local que irão intervir na construção da peça e alterar a recepção do trabalho, mas o próprio espaço, suas estruturas arquitetônicas e funções sociais. Como exemplo dessa alteração cênica e dramatúrgica, iremos falar, nesse trabalho, sobre as interferências sofridas pela peça Jardim das espécies, do grupo Teatro EmFoco 2. O espetáculo tem como concepção sempre ser apresentado dentro de uma casa, ou um local que tenha estrutura semelhante, pois o grupo compreende que a arquitetura do espaço é importante para a recepção do trabalho, além de haver a necessidade da locomoção do público dentro da peça. Dessa forma, mesmo o espectador sendo convidadas a entrar na casa, suas funções dentro da peça vai desde fantasma, confidente pessoal das personagens até convidado de um aniversário, possibilitando assim um teatro mais de vivencia que de simples observação. Como recorte de analise usaremos as duas temporadas realizadas, respectivamente, no Salão das Ilusões e no Dança no Andar de Cima, em 2011. Os dois locais, mesmo tendo a estrutura básica de uma casa comum, são bastante diferentes em função, além de diferentes na arquitetura dos cômodos, por isso, influenciaram perceptivelmente na apresentação e reelaboração das cenas do espetáculo. O primeiro, o Salão das Ilusões, local conhecido em Fortaleza, por um público mais alternativo, freqüentador de seus bazares e festas, é também atelier da artista Temis, foi o que abrigou a primeira temporada. O segundo, o Dança no Andar de Cima, frequentado normalmente por artistas plásticos, pois possui uma pequena galeria, além de servir como atelier para artistas como Henrique, foi o ambiente utilizado para a realização da segunda temporada da mesma peça. As cenas que usaremos como comparativo entre os dois locais, por serem as que mais sofreram interferências devido às acomodações arquitetônicas e/ou periferias circunscritas serão: A em que a personagens Célia e Teresa preparam um bolo, e a em que a personagem Célia revela sua cleptomania. 2 Grupo de teatro criado em 2009, que tem como atual objeto de pesquisa a utilização do espaço cênico como dramaturgia

A primeira cena sofreu maior alteração no que diz respeito à espacialidade propriamente dita, principalmente por não possuir texto falado. Na concepção da direção, essa cena deveria passar-se dentro de uma cozinha, tendo em vista que toda a preparação do bolo é real, desde sue preparo, cozimento e utilização na cena final do espetáculo. A dificuldade encontrada no primeiro espaço era o tamanho da cozinha, pois era muito pequena, além de ter muitos objetos, o que impossibilitaria a locomoção e realização das partituras desenvolvida pelas atrizes, além de se tornar pouco viável para a visualização do público. Após vários exercícios de ocupação de espaço, a direção e corpo de atuação decidiram que a cena, mesmo tendo sido pensada inicialmente para se realizar em uma cozinha, teria que sofrer uma alteração e seria readaptada a uma sala que tínhamos próxima à cozinha. Para não perdermos totalmente a ideia inicial, parte do público podia ver a personagem Célia se locomovendo até a cozinha para colocar o bolo no fogão e lavar as louças. A mesma cena, na segunda temporada, novamente sofreu mudanças, pois, diferente da primeira, a cozinha e a sala eram divididas por um balcão americano e, mesmo o espaço da cozinha continuando pequeno havia poucos objetos, o que tornava possível a realização da cena no ambiente. Quando decidimos que a cena iria ser realizada, como anteriormente pensada, dentro da própria cozinha, novamente tivemos que modificar as partituras das atrizes, pois o local não possibilitava a entrada de uma mesa grande, objeto usado para apoiar os elementos necessários para a preparação do bolo. Como solução, foi necessária a utilização do balcão americano, como suporte de alguns elementos, o que mesmo parecendo ser uma mudança pequena, influenciou bastante na reelaboração das partituras. Assim, podemos compreender que O espaço afeta a interpretação, ao proporcionar ao ator uma situação atmosférica e objetual específica, diferente daquela construída cenograficamente. [...] a presença física do ator no espaço e a sua relação com os objetos ali presente, também promove um redimensionamento ou mesmo uma redescoberta do lugar (ARAÚJO, 2002, p. 136). A segunda cena, que iremos comentar, sofreu modificações tanto nas partituras corporais quanto na dramaturgia, porém deteremo-nos basicamente no que diz respeito ao texto, para podermos demonstrar duas formas de interferência do espaço na realização de um espetáculo. É nessa cena que a personagem Célia fala sobre sua compulsão por pegar ursinhos de crianças em momentos de distração delas. A dramaturgia do texto no primeiro local de apresentação era Todos os dias pela manhã, vou ao parque que fica a duas ruas daqui de casa e fico observando as crianças, imaginando como seria o meu anjinho, será que seria como aquele menino que fica brincando no parquinho, ou

seria como aquele menino que não sai de perto dos seus pais. Não. Ele seria o meu anjinho (Texto extraído do diário de bordo de Lyvia Marianne) Parte do texto dessa cena foi criado devido à localização do espaço da apresentação, assim, podemos perceber que não somente o próprio local de realização do espetáculo influencia nas criações das cenas, mas também seu entorno. Como fazia parte da proposta de direção, o espetáculo deveria estar em maior ressonância possível com o ambiente ao qual se instalou, assim, a dramaturgia também tinha que sofrer alterações, pois teria que se referir a zonas que estivessem nos arredores da casa. Quando houve a mudança do local da apresentação, foi necessário repensar a fala, pois não fazia mais sentido falarmos de uma praça, tendo em vista que no novo espaço de apresentação não havia nenhuma praça próximo à casa. Ao fazermos uma varredura pela zona que circunscrevia o segundo local, encontramos uma escola de ensino infantil nas redondezas, o que fui muito útil para a modificação da dramaturgia, trabalho esse proposto e realizado pela atriz Lyvia Marianne juntamente com o diretor e as outras atrizes. Por conseguinte experimentadas as possibilidades de alteração do texto, teve como sua construção temporária a seguinte escrita: Todos os dias pela manha, vou a escola que fica aqui próximo e fico observando os crianças sendo deixadas por seus pais, e fico imaginando, como seria o meu anjinho, será que seria como aquele menino nem se despede do pai e já vai correndo para dentro da escola, ou se seria como aquele outro que fica chorando e tem que ser levado até a porta da sala pela mãe? Não. Ele seria o meu anjinho (Texto extraído do diário de bordo de Lyvia Marianne) Como percebemos, entre os dois trechos há uma pequena alteração na fala, mudança essa que poderia ser entendida como desnecessária caso estivéssemos trabalhando com a lógica do palco tradicional; contudo quando deslocada para a idéia de um teatro realizado em espaço alternativo, torna-se bastante pertinente e necessária, se não quiséssemos usar o espaço como mero figurante da cena. Dessa forma, devemos compreender que [...] o espaço afeta a dramaturgia, que tem de ser reescrita e adaptada ás condições arquitetônicas específicas [...] novos textos devem ser criados [...] em função da atmosfera proporcionada pelo local, o roteiro poderá ajustar-se a ela (ARAÚJO, 2002, p. 135-136). São várias as modificações de compreensão lógica pelas quais deve passar um grupo de teatro quando começa a trabalhar com essa zona de risco e volatilidade que é a rua ou, de forma mais ampla, os locais alternativos de encenação. Quando nos locomovemos para dentro desse ambiente que nos foge as rédeas, e como já comentado, não nos é passivo na aceitação das nossas alterações, temos que lhe compreender, para melhor apropriarmo-nos de suas cargas semânticas. Dessa maneira,

encenação e atores devem estar porosos para perceber que nem sempre o que já foi realizado e/ou planejado para a cena deve obrigatoriamente continuar. Será apenas com a reobservação do local de novas apresentações que os planejamentos das ações já criadas em temporadas anteriores mostrará pertinente ou não para o novo espaço. Não estamos querendo dizer que o espaço agora ocupa um novo local, o de superioridade que anteriormente ocupava o texto ou atuação, pois Se compreendermos o termo dramaturgia como uma somatória entre textos ditos e aqueles que se encontram entre as lacunas da encenação, podemos afirmar que a qualidade gerada pela carga semântica do espaço passa a responder por importantes discursos do espetáculo (REBOUÇAS, 2009, p. 174). Assim, esses novos locais, aos quais o teatro pretende novamente voltar-se, simbolizam talvez uma forma de dizer que a peça não quer mais apenas ser bela ou até mesmo divertida, mas que ela quer invadir e ser invadida pelo seu público, que são tanto as pessoas que estão cientes da realização do espetáculo quanto os transeuntes, os vizinhos, os atores e em uma concepção maior, o próprio ambiente que o abriga. Referências: ARAÚJO, Antônio. A gênese da vertigem: O processo de Criação de O Paraíso Perdido. 2002. 191 f. Dissertação. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. CARREIRA, Andre. Ambiente, fluxo e dramaturgias da cidade: materiais do Teatro de Invasão. O percevejo online, 2009. Disponível em: <http://www.seer.unirio.br/index. php/opercevejoonline/article/viewfile/482/402>. Acesso em 29 nov. 2011 LIMA, Evelyn (org.). Espaço e teatro: do edifício teatral á cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. REBOUÇA, Evill. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional. São Paulo: UNESP, 2009.