A Lei Hipotecária de 1864 e a propriedade no XIX



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Transcrição:

A Lei Hipotecária de 1864 e a propriedade no XIX Pedro Parga Rodrigues* PALAVRA CHAVE: Propriedade, Instituição e Hipoteca. KEYWORD: Property, Institution and Mortgage. RESUMO: Trata-se de apresentar resumidamente os debates legislativos em torno do registro, transmissão e aquisição da propriedade imóvel ocorridos no Brasil Império durante a promulgação da Lei Hipotecária de 1864. ABSTRACT: This article is about the legislatives talk with respect the registration, transfer and acquisition of immovable property occurred in the promulgation of the Brazilian Mortgage Act of 1864. 1. Introdução Trata-se de apresentar resumidamente os debates em torno do registro, transmissão e aquisição da propriedade imóvel ocorridos na promulgação da Lei Hipotecária de 1864. A referida legislação colocou em vigor o Registro Geral, no qual deveriam ser transcritos todos os títulos de transmissão entre vivos da propriedade imóvel e todos os ônus recaídos sobre a mesma. A ausência desta formalidade implicava na incapacidade do título de ter eficácia contra terceiros não contratantes. Entretanto, segundo o mesmo instituto jurídico, a transcrição dos títulos de alienação da propriedade não implicava em prova da propriedade. Embora estes dispositivos tenham se consolidado na lei de 1864 e no seu regulamento de 1865, sua promulgação nunca foi consensual. Muitos foram os debates em torno da necessidade da transcrição e de sua eficácia para a comprovação do domínio. Tais debates ligam-se aos embates sobre a propriedade e ao processo de construção do Estado Nacional. Aqui trabalharemos especificamente as divergências em torno do registro ter ou não valor comprobatório quanto ao domínio. Tais conflitos remontam à regulamentação do Registro Paroquial, instituído pela Lei de Terras. Assim, precisaremos nos reportar

inicialmente a esta legislação para entendermos melhor o contexto histórico da redação da Lei de 1864. 2. A Lei de Terras e seu Registro: Dentre outros objetivos expressos na Lei de Terras de 1850, seus legisladores, ou ao menos alguns deles, buscavam: 1) regularizar a propriedade, separando as terras públicas das privadas; 2) impedir a aquisição por posse após sua promulgação; 3) Criar confiança nos títulos de propriedade, aumentando artificialmente o preço da terra para possibilitar o crédito territorial e a colonização. Mas não havia consenso sobre estas finalidades e a lei foi um produto dos conflitos presentes na sociedade da época. O texto promulgado não possuía o mesmo teor radical do projeto do qual surgira. Foram abolidos o imposto territorial, o limite máximo de tamanho da terra para o reconhecimento legal da posse e a pena de perda da propriedade pela ausência do registro. E, segundo Lígia Osório (OSÓRIO, 1996; 161), a falta de clareza na distinção de terras devolutas e a incapacidade de fiscalização do estado fizeram com que a lei de 1850 abrisse as portas para a grilagem. Como não existiam objetivos unívocos em sua redação e aplicação, muitos dos dispositivos apresentavam brechas para o seu descumprimento ou foram contornados na prática. Segundo Márcia Motta (MOTTA, 1998), a aplicação da referida lei foi diversa em cada parte do império. Seus dispositivos foram acionados de forma diferentes pelas partes nos conflitos agrários, de acordo com a dinâmica social da localidade. No Rio Grande do Sul, por exemplo, várias brechas foram abertas para o descumprimento da lei como forma de garantir a adesão da elite local para o projeto de centralização administrativa (CHRISTILLINO, 2005 & 2006). O Regulamento da Lei de Terras também resultou da disputa entre vários interesses e objetivos. Segundo Christillino (CHRISTILLINO, 2005 & 2006), já havia neste instituto a tendência da coroa de contornar alguns dispositivos da Lei de Terras, como forma de barganhar com as elites a adesão à centralização administrativa. O próprio Registro do Vigário, Instituído por este regulamento, é um sinal claro desta relação de clientelismo. Embora tivesse sido criado com a finalidade de criar um cadastro das terras apropriadas para fins estatísticos e de hipoteca, na prática não conseguiu tal objetivo.

Segundo José Murilo de Carvalho a Lei de terras fracassou, foi vetada pelos barões. O Registro do Vigário, por exemplo, não atingiu todas as propriedades e era marcado por inúmeras incorreções das declarações. Embora concordemos com o autor quanto aos problemas práticos da lei, o simples veto dos barões não é suficiente para entender a questão (MOTTA, 1998). Para Osório, (...) a fraqueza do sistema implementado era conseqüência da disputa existente no interior do Estado imperial entre as forças centrífuga, que lutavam pela predominância dos interesses provinciais, versus as forças que pretendiam concentrar o poder no centro, representado sobretudo pela burocracia imperial e a cafeicultura do Rio de Janeiro. (OSÓRIO, 1996; 175) No entanto, esta oposição não nos pode fazer minimizar a importância da negociação existente entre estas forças. A legislação foi utilizada politicamente pelas forças centrípetas para conquistar o apoio das centrífugas (CHRISTILLINO, 2005 & 2006). Também não devemos esquecer que os dispositivos da lei foram acionados de diversas formas de acordo com a dinâmica da disputa agrária de cada localidade e com as redes de relações estabelecidas (MOTTA, 1998). O Registro do Vigário não incluía as alienações e os ônus reais, aproximando-se mais de um cadastro (OLIVEIRA, 2006). Era feito através de declarações realizadas pelos próprios fazendeiros ao Vigário de sua paróquia. Assim, mesmo tendo um papel importante no processo de construção do Estado Nacional, na hegemonia saquarema e na instituição da ordem jurídica liberal, a magistratura foi excluída pelo Regulamento deste processo regularização da propriedade 1. O que já sinalizava a abertura de brechas para o descumprimento da lei. Não é difícil perceber que as declarações dos fazendeiros, onde foram feitas, estiveram longe de se assemelhar a situação concreta das apropriações. Houve províncias onde as terras declaradas extrapolaram a própria extensão provincial. Assim, 1 Sobre o papel da magistratura na centralização do Estado e sobre o significado da ordem jurídica liberal ver respectivamente: (MATTOS, 1994) e (GROSSI, 2004).

o registro não se constituiu um cadastro efetivo para regularização fundiária e instituição da hipoteca sobre imóveis rurais. Mesmo tendo apenas a finalidade cadastral, houve um intenso debate ainda no império sobre sua eficácia para a comprovação da propriedade. O artigo 94 do regulamento definia que o Registro não implicava em prova de propriedade. Mas Desde a existência da lei, entretanto, o Registro do Vigário tem sido apresentado como uma prova de domínio de particulares sobre terras, em geral, devolutas (OSÓRIO, 1996; 174). O desacordo sobre o assunto remonta ao debate do Conselho de Estado para a produção do referido texto legal. Na época, o Marques de Olinda se opôs no Conselho de Estado (14/04/1851) - a possibilidade de liquidar a propriedade através de uma investigação, na qual seria verificado se os detentores dos títulos de sesmaria cumpriram as condições necessárias para a aquisição do domínio. Defendeu que a investigação deveria ocorrer apenas com relação às posses e os títulos sobre os quais existissem provas de ilegalidade. Caso contrário isto seria, na visão do conselheiro, uma lesão ao direito de propriedade. Para ele, o Registro deveria ser realizado de forma declaratória e todos os títulos seriam revalidados. Desta forma, o título de concessão seria prova da propriedade no momento do registro, que por sua vez demonstraria o real estado da propriedade. Olinda foi derrotado na discussão, mas sua idéia não desapareceu da jurisprudência. Márcia Motta apresenta um momento de aplicação da lei de Terras no qual idéias semelhantes às de Olinda são aplicadas (MOTTA, 2005). Trata-se do litígio no qual Freitas atuou como advogado de Antônio Bernardes de Oliveira, um pequeno posseiro cuja terra - localizada na região do Cantagalo - estava sendo embargada pelo Barão Entre-Rios 2. O autor do processo alegava serem aquelas terras (...) partes de uma sesmaria que havia sido medida e demarcada em 1836 e que ela ainda [era] composta por um outro quinhão comprado posteriormente (MOTTA, 2005). O Advogado do pequeno posseiro questionava a utilização do Registro Paroquial como prova de domínio pelo embargante. Este documento era uma declaração e, assim, não garantia que houvessem sido seguidas as condições necessárias à revalidação do título de sesmarias apresentado pelo Barão. Mesmo recorrendo aos dispositivos do Regulamento de 1854 nos quais se reconhecia a primazia do cultivo em relação ao 2 Este conflito e os processos legais foram trabalhados por Márcia Motta (MOTTA, 1998).

título, no caso a carta de sesmarias, Freitas não conseguiu garantir ao seu cliente a posse de suas terras. Segundo a autora, Teixeira de Freitas questionava as brechas da legislação agrária para seu descumprimento. Na Consolidação das Leis Civis (FREITAS, 1865) o jurisconsulto critica o uso do registro como comprovação de domínio. Para Márcia Motta, esse regulamento permitia aos sesmeiros utilizarem sua influência para expandirem suas terras. Ao instituir um registro feito através de declarações nas paróquias onde se localizavam as propriedades, esta possibilitava a continuidade da incerteza sobre os seus limites. Segundo Márcia Motta (MOTTA, 1998), os Senhores e possuidores de terras declararam, ou não, a extensão de seus domínios de acordo com os interesses e as relações clientelares. Assim, a lei foi aplicada de forma diferente em cada província. Por isso, a oposição de Freitas a estas arbitrariedades o aproximou dos pequenos posseiros (MOTTA, 2005). Diante da forma na qual a Lei de Terras e o seu regulamento foram aplicados, não foi possível a distinção entre as terras públicas e privadas. Continuavam os clamores daqueles interessados em estabelecer o valor da propriedade para criar a hipoteca. Mas, não se deve presumir que este interesse fosse o de todos os fazendeiros. Muitos, de certo, preferiam continuar a adquirir crédito nas mãos dos comissários e poder adquirir terras pela posse, aumentando o seu poder sobre as pessoas que habitavam estes territórios. 3. O Debate sobre o registro da propriedade na construção da Lei Hipotecária: O debate sobre o registro ter ou não capacidade de comprovar o domínio não terminou a redação do Regulamento da Lei de Terras. Alguns dos legisladores e jurisconsultos envolvidos na reforma da legislação hipotecária defendiam a obrigatoriedade do registro da alienação entre vivos e da oneração dos imóveis, para facilitar o crédito sobre imóveis. Dentre eles, alguns defendiam que a transcrição dos atos translativos da propriedade deveriam dar ao adquirente o domínio pleno. Assim, o próprio registro seria uma prova da propriedade. Nem todos concordavam com a necessidade da transcrição, ou com a forma na qual esta deveria ser realizada. Havia aqueles que criticavam a necessidade da formalidade. Também houve debates sobre qual instituição deveria ser encarregada de registrar a propriedade: o Estado, o Tribunal do Comércio ou instituições de crédito.

Mas aqui pretendemos apenas tratar o debate entre aqueles que defendiam que o registro das transmissões de imóveis passasse a servir de prova plena de propriedade e os seus opositores. Não é difícil conceber que dentre os defensores da hipótese segundo a qual o registro das transmissões de propriedade entre vivos devesse ter valor jurídico de comprovação da propriedade, havia alguns sesmeiros cujos títulos haviam caído em comisso e de outros fazendeiros em busca de argumentos legais para adquirir partes de terras compradas por eles que estivessem ocupadas por pequenos posseiros. Atribuir a proteção absoluta ao adquirente serviria para legitimar títulos que não poderiam ser revalidados através dos dispositivos da Lei de Terras. Abriria brecha para os fazendeiros aumentarem suas terras à margem da legalidade instituída pela legislação de 1850. Entre os defensores da proteção absoluta ao adquirente também havia negociantes de créditos e comissários. Para os primeiros, isto facilitaria a circulação dos títulos hipotecários e de alienação de propriedade, caso também fosse permitido o endosso. Além disso, seus (...) interesses (...) estavam mais ligados ao atendimento das demandas urbanas, não sendo importante organizar o crédito territorial (PIÑEIRO, 2002). Para os segundos, o estabelecimento do crédito territorial permitiria o contato direto entre fazendeiros e banqueiros, ameaçando a sua própria profissão. A proteção absoluta seria prejudicial para aqueles que desejavam obter confiança em seus títulos para obter créditos através deles. A publicidade dos atos translativos dos imóveis era um requisito para o crédito imobiliário. Era necessária para que propriedades já gravadas não fossem aceitas como garantia para empréstimos. Assim, para os interessados em substituir os escravos pelas terras enquanto garantia para empréstimos era melhor uma regularização fundiária eficaz do que instituir a alienação como forma de remir a propriedade. No projeto apresentado em 1854 por Nabuco de Araújo na Câmara dos Deputados, a transcrição da transmissão da propriedade era uma exigência para que a alienação fosse realizada. Mas esta formalidade não atribuía ao adquirente o domínio, este continuava salvo a quem o detivesse. Além das tentativas evidentes de adiamento do debate, alguns deputados propunham que a discussão ocorresse considerando o projeto artigo por artigo, como forma de pronlogar as discussões. Embora Nabuco insistisse no debate do projeto considerado globalmente, foi vitoriosa no dia 8/06/1855 a proposta segundo a qual este seria analisado em blocos homogêneos.

Assim, no mesmo ano o projeto começava a ser analisado pelos deputados. Assim, Nunes Gonçalves, no dia 26/06/1855, diria: quaisquer que sejam as razões que possam ser apresentadas contra as transcrições, não podem prevalecer em vista daquelas em que elas se apoiam.. E, no mesmo discurso, complementava: Não digo que a transcrição seja (...) de tal forma que importe a prova da propriedade contra todos que se possam julgar prejudicados desde que se insistisse nesta idéia, seria fácil conceber-se quanta dificuldade haveria para que qualquer transação se pudesse realizar (...). Na Sessão do dia seguinte, Barreto Pedroso diria em oposição às idéias afirmadas no projeto e defendida por Nunes Gonçalves, concordando com a comissão encarregada de avaliar o projeto: Para demonstrar que também neste ponto é a opinião da ilustrada comissão mais conducente e convinhável do que o projeto, para se chegar ao fim de baratear os capitais e estabelecer o crédito territorial, basta atender á própria natureza e índole dos contratos hipotecários. São tais contratos estabelecidos para dar segurança ao que empresta; convém pois que essa segurança seja plena, que não esteja sujeita a circunstâncias e hipóteses que a destruam; convém que o capitalista fique tranqüilo, fique cônscio de que seus capitais serão reembolsados; é só assim que ele facilitará os empréstimos: para obter-se este resultado estabelece-se a transcrição dos títulos da propriedade dada em garantia, transcrição que não pôde ter outro fim senão provir que a propriedade oferecida em garantia pertence, sem contestação, aquele que a oferece como garantia das quantias que recebe: é pois obvio que se - essa transcrição não prova a propriedade; se ainda depois deita feita pode verificar-se que a propriedade pertence a outro, que não aquele que fez transcrever os seus títulos, e a deu em garantia, é óbvio, digo, que a transcrição

não produz todos os efeitos que devia produzir: deixando ainda dúvidas e receios no ânimo dos capitalistas, sempre cautelosos, como são, dificultará a realização do importante objeto de que nos ocupamos, a criação do crédito territorial. Nesta parte, pois, também estou de acordo com a comissão na opinião de que a transcrição dos títulos de propriedade deve importar a prova da mesma propriedade Diante desta e outras discussões sobre privilégios, a urgência do projeto acaba sendo recusada na Câmara. Em 1856, Nabuco de Araújo apresentou um novo projeto. Neste muitos dispositivos foram modificados com relação aos privilégios, mas com relação ao papel da transcrição quase nada foi mudado. Esta continuava sendo obrigatória e permanecia não importando prova plena de propriedade. Assim, o debate sobre o registro continuou a ocorrer na câmara até a data de sua aprovação. Fora da instituição legislativa, a discussão sobre o assunto também gerava polêmicas. Na Consolidação das Leis Civis (FREITAS, 1865), Augusto Teixeira de Freitas comentou a opinião da comissão avaliadora do projeto de 1854, dizendo: Uma comissão especial da Câmara de Deputados examinou esse Projeto, e seu parecer abundou nas mesmas idéias e até excedeu-as, opinando que a transcrição no registro público dos títulos de imóveis devia ter um valor ainda maior, do que se lhe dera no Projeto. A transcrição (Segundo o Projeto) não induz a prova do domínio, que fica salvo a quem for. A transcrição (disse a comissão) deve importar prova da propriedade e não uma presunção. (...) (FREITAS, 1865; CXCIX-CC) E continuou argumentando na defesa de suas idéias: Um ato de alienação não constitui prova do direito de quem aliena, nem por conseguinte do direito de quem adquire (...). Como saber, se o vendedor é seu legítimo e verdadeiro proprietário? Investigando-se a genealogia da propriedade,

sua filiação de título em título, pode-se chegar a `grande probabilidade, e raras vezes à certeza completa. Além disto, os títulos podem conter variados encargos, podem ser anuláveis, por vícios intrínsecos do consentimento dos contratantes, pela sua incapacidade civil, e por vícios de forma. Acresce ainda, que a propriedade não se adquire somente pela transferência feita por legítimos proprietários. Ela também se adquire por uma posse contínua, posse jurídica (...); e esse meio pressupõe a propriedade transferida por quem não era proprietário verdadeiro (...) (FREITAS, 1865; CCI-CCII) L. P de Lacerda Werneck também se posicionou nesta questão (WERNECK, 1857; 21-22). Apresentou inúmeros elogios ao projeto apresentado em 1859 pelo Barão de Muritiba no Senado, no qual a transcrição aparecia como prova de propriedade. Para o autor, enquanto a transcrição da propriedade e as inscrições das hipotecas convencionais não servissem de prova ao adquirente e ao credor respectivamente do domínio, não haveria condições para o crédito imobiliário rural com longos prazos e juros baixos. Mesmo após a promulgação da Lei hipotecária em 1864 e de seu regulamento no ano seguinte, continuavam os embates acerca da transcrição. José de Alencar criticou o fato da legislação não ter atribuído peso de prova ao registro da alienação em seu livro intitulado A Propriedade (ALENCAR, 1883). Estes debates reascenderam também durante a redação do Projeto de Código Civil. O questionamento feito pelo Ministro da Justiça José de Alencar a proposta de Unificação do Direito Privado Pátrio elaborada por Teixeira de Freitas, envolveu esta questão, entre outras. 7. Bibliografia ALENCAR, José de. A propriedade Garnier: Rio de Janeiro, 1883. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Editora Bertrand: Rio de Janeiro, 1989. BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. 21/08/1856. BRASIL. Anais do Senado. 20/07/1861 BRASIL. Atas do Conselho de Estado. 14 de Abril de 1851.

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