O mais além do Édipo: o sintoma entre saber e verdade

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Transcrição:

O mais além do Édipo: o sintoma entre saber e verdade Pedro Teixeira Castilho Resumo No Seminário livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan coloca em tensão o mito edípico e o mito de Totem e Tabu. Para isso, Lacan revisita a única observação de Freud da qual não havia se servido: o caso Dora (FREUD, 1901/2003). Lacan observa que, no caso de Dora, seu pai ocupa um ponto pivô. Este artigo demonstra que Lacan atribui uma grande importância ao segundo sonho de Dora, em particular, ao fragmento esquecido, do qual Dora não se lembra senão após a interpretação de Freud, concernente à primeira parte, em que sonha que seu pai está morto. Por isso, Lacan faz referência a Totem e tabu demonstrando que a verdade é uma estrutura lógica. Dessa maneira, para concluir o artigo, demonstramos que encontramos o avesso do pai, isto é, com o seu gozo, produzindo uma separação entre o saber e a verdade. Palavras-chave Complexo de Édipo, Sintoma, Saber, Verdade, Caso Dora. Sabemos que o Pai, no mais além do Édipo, traz a marca de uma impossibilidade. Sendo assim, pretendemos percorrer a ideia de que o pai real relaciona-se ao registro do impossível que escapa ao simbólico. Real adquire, a partir do Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise, o sentido de designar a efetividade da operação, a castração. Em pai real, a palavra real designa, então, as duas extremidades que parecem antinômicas: o real que escapa à noção de pai simbólico, e o agente definido, encarnado, que realiza a operação simbólica da castração. Esta é a relação do sintoma e da verdade. A verdade do sintoma escapa ao saber por ocupar esse lugar de impossível. O real, o impossível do pai, encarna-se em um personagem do círculo familiar da criança, que não é forçosamente o genitor. Está estritamente fora de cogitação definir o pai real de uma maneira segura que não seja como agente da castração (LA- CAN, 1969-1970/92, p.121). Esse impossível implica demonstrar que sua simbolização não é redutível cientificamente. Se devesse sê-lo, o que se diria é que o pai real é o espermatozóide, mas seria cientificamente insustentável e, até segunda ordem, ninguém jamais pensou em dizer que é filho de tal espermatozóide (LACAN, 1969-1970/92, p.120). A partir desse comentário, podemos perceber que, para Lacan, esse pai está além de qualquer psicologia. Isso quer dizer, então, que a enunciação freudiana nada tem a ver com a psicologia. Não há nenhuma psicologia concebível neste pai original (LA- CAN, 1969-1970/92, p.116). A função do pai real não procede, portanto, do campo e da função da linguagem. Não há ato da morte do pai na origem: outra leitura sobre o mito de Totem e Tabu tem, no campo de uma articulação significante, o sentido de um enunciado dito como impossível. Mas, para além do pai, no ponto em que 91

Pedro Teixeira Castilho não fazemos do pai o operador da lei que impõe um limite ao gozo, qual seria esse operador? No seminário de 1970, Lacan dá um salto dizendo que a inclusão no Outro produz uma perda de gozo. A inclusão do sujeito na linguagem produz, por si mesma, uma perda de gozo, que, por um efeito de entropia, se recupera sob as formas do objeto a. Então, no mais além do pai edípico, é a própria linguagem que produz o efeito de perda de gozo, gozo que é, em parte, recuperado através do objeto a. Nesse ponto, estamos numa dimensão além do Édipo, porque não estamos mais fazendo a castração girar em torno do pai, pois, agora, sabemos que o pai simbólico dá uma vestimenta edípica a um elemento de estrutura. Isso permite a Lacan dar um passo a mais, dizendo que o pai, na verdade, é um pai real, ou um operador lógico que sustenta a castração. Não se trata, portanto, do pai do mito, do pai edípico ou do Nomedo-Pai que executa a castração. Trata-se do pai para além do pai, porque passamos do mito à estrutura. Assim, Lacan não invalida os mitos freudianos, mas vai lhes reconhecer um valor de verdade. Lacan demonstra que esses mitos apontam para uma diferença entre o gozo e o saber. Isso é o que define o termo operador estrutural, que é signo de impossível. Aí reconhecemos, com efeito, para além do mito freudiano do Édipo, um operador, um operador estrutural, aquele chamado de pai real, com a propriedade, eu diria, de também ser ele, na qualidade de paradigma, a promoção, no coração do sistema freudiano, do que é o pai do real, que coloca no centro da enunciação de Freud um termo do impossível. (LACAN, 1969-1970/92, p.116). Aqui se radicaliza a função da castração. No próprio significante-mestre estaria a função topológica. Mesmo na linguagem do mestre, há demanda fracassada em gozo. Há repetição na demanda. O pai também deseja: O pai real é o agente da castração. Não se refere ao pai castrador, mas ao pai agente. O pai real procede da natureza do ato, no que se refere à castração (LA- CAN, 1969-1970/92, p.92-118). Por isso, no Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise, Lacan coloca em tensão o mito edípico e o Totem e tabu. Essa tensão é preliminar à teoria de Lacan sobre os gozos. Lacan considera os mitos freudianos como mitos do pai, e os analisa um em relação ao outro, realizando uma decomposição estrutural do pai, operando uma desconstrução do pai através dessa oposição. Essa oposição entre o Édipo e Totem e tabu é levada a cabo tanto no Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise como, em parte, no Seminário, Livro 23: le Sinthome. As construções, em termos de saber e gozo, são uma desimaginarização do Édipo freudiano; no Édipo, aparecem os elementos imaginários da teoria freudiana ambivalência, o sonho de Freud, que, vale acrescentar, como todo sonho, necessita ser interpretado a partir do método estrutural. A verdadeira mola propulsora é esta: o gozo separa o significante-mestre, na medida em que se atribui ao pai o saber como verdade. Na ocasião dessa distinção, Lacan revisita a única observação de Freud da qual, até esse momento, não havia se servido para introduzir o Nomedo-Pai: o caso Dora (FREUD, 1901/2003). Demonstrando como, na histeria, a relação com o pai é idealizada, Lacan observa que, no caso de Dora, seu pai ocupa um ponto pivô. Ele é doente e impotente. Lacan atribui uma grande importância ao segundo sonho de Dora, e, em particular, ao fragmento esquecido, do qual Dora não se lembra senão após a interpretação de Freud, concernente à primeira parte, em que ela sonha que seu pai está morto: e que ela foi calmamente para seu quarto e pôs- 92

se a ler um livro grande que estava sobre sua escrivaninha (FREUD, 1901/2003, p. 98). Segundo Lacan, o segundo sonho marca que o pai simbólico é justamente o pai morto, que só se alcança a partir de um lugar vazio e sem comunicação: Na caixa vazia desse apartamento abandonado por aqueles que, depois de tê-la convidado, partiram por seu lado para o cemitério, Dora encontra facilmente um substituto para esse pai num grande livro, o dicionário, aquele onde se ensina o que diz respeito ao sexo. Assim, marca com nitidez que o que lhe importa, para além mesmo da morte de seu pai, é o que ele produz de saber. Não qualquer saber um saber sobre a verdade (LACAN, 1969-1970/92, p.90-91). O complexo de Édipo não é a lei do desejo da histérica, mas o resultado, o produto sob forma de saber com pretensão à verdade do discurso que determina a histérica. No Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise, encontramos, a partir da histeria, uma degradação da figura do pai. Lacan formula claramente o pai como castrado em estrutura; sua impotência está revestida com os emblemas da potência. Podemos afirmar que é essencial que o inconsciente comporte um ponto de impossível que mantém uma disjunção entre sujeito, saber e gozo. Pudemos compreender que a herança do complexo de Édipo se transmite sob a égide do amor, isto é, pela identificação ao Pai. O pai imaginário é um pai amor. A histérica demonstra a imago do amor ao pai. Por isso, no Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise, Lacan pode dizer que, para falar do pai, a histeria é, na verdade, um melhor guia do que o Édipo. Por que diz isso? Dora se dirige a um pai idealizado, para denunciar que ele está castrado. Então, se a histérica se dirige, por amor ao pai, a um pai idealizado, isso é seguido da denúncia da falta desse pai. Por isso, a histeria seria um melhor guia para falar do pai, no ponto preciso em que o pai idealizado está essencialmente castrado. Lacan pode, então, insistir que o complexo de Édipo é um sonho de Freud, porque Lacan chega à verdade por meio da estrutura. Assim, com relação ao caso Dora, Lacan introduz, para um dos elementos do triângulo amoroso, o Sr. K., a categoria de terceiro homem (LACAN, 1971/92, p. 89). Como Lacan determina esse terceiro homem no discurso da histérica? A histérica se vincula com distintas figurações do mestre e do laço social. O pai é mestre no discurso da histérica. Lacan, nesse seminário, distingue, em Dora, os lugares do pai e do Sr. K. Nesse caso, denomina o Sr. K. como o terceiro homem. A histérica encontra e aponta a falha do pai. Dora, por exemplo, diz: Meu pai, para dormir com a Sra. K., quer me entregar ao Sr. K. Ele é um gigolô. Lacan retoma o caso Dora na medida em que se produz a discussão do pai em torno de uma causa sexual. A posição feminina de Dora é interpretada a partir do desejo do pai. Com relação ao segundo sonho, que marca o fim da análise com Freud, Lacan lhe atribui uma grande importância, e, em particular, ao fragmento esquecido. Lacan diz que, em vez de seguir à tumba do pai morto, Dora, dirigindo-se calmamente para o seu quarto, vai ao dicionário, fazendo uma transformação da verdade em saber. Nesse saber, surge o lugar do pai, não mais idealizado ou morto, mas sua causa sexual. Para isso, Lacan diz que o Édipo desempenha o papel do saber com pretensão de verdade (LACAN, 1969-1970/ 92, p.92). Com o avesso da psicanálise, o pai idealizado está radicalmente questionado, sobretudo, porque ele está castrado. O feito de recorrer ao mais-além-do- Édipo é a destruição sistemática do pai como ideal universal. 93

Pedro Teixeira Castilho O que convém a Dora é a ideia de que ele tem o órgão. O terceiro homem, para quê? Certamente, seu valor reside no órgão, mas não para que Dora seja feliz com ele, senão para que outra a prive dele (LACAN, 1969-1970/92, p.89). A histérica tem a qualidade de saber fazer declinar o Pai Ideal, colocando-o em um homem particular, portando em si uma distância entre o universal e o singular. É nesse sentido que Lacan faz uma releitura de Dora. A partir desse ponto, o estatuto do complexo de Édipo e da castração será reconsiderado.... é isto precisamente que chega a sustentar, sob esse ângulo da potência de criação, sua posição em relação à mulher, mesmo estando fora de forma. É isto que especifica a função de onde provém a relação com o pai da histérica, e é precisamente isto que designamos como o pai idealizado (LACAN, 1969-1970/92, p.89). Para guiar-se nessa análise, o complexo de Édipo é estritamente inutilizável (LACAN, 1969-1970/92, p.93), e há espaço para empregar outros pontos de referência, em particular, o da divisão do saber e da verdade, bem como o do mestre com o qual o pai não tem senão uma relação distante. É em função dessas referências mais fundamentais que o Édipo tem um papel: O Édipo desempenha o papel do saber com pretensão de verdade, quer dizer, do saber que se situa, na figura do discurso do analista, no lugar do que designei [...] como o da verdade (LACAN, 1969-1970/92, p.92). transferindo-o para uma base lógica. A referência a Totem e tabu demonstra a verdade como uma estrutura lógica, a partir da impossibilidade. Encontramos o avesso do pai, isto é, com o seu gozo. Por ser isto a impossibilidade, caímos, então, em um esquema lógico. O impossível provém do gozo fálico. Para a lógica de Lacan, o pai passa a ser articulado de diferentes modos, para servir-se de um argumento à função fálica. Articulação que se fixa na escrita dos qualificadores da sexuação.ϕ BEYOND THE OEDIPUS: THE SYMPTOM BETWEEN KNOWLEDGE AND TRUTH Abstract In the Seminar book 17: the reverse of psychoanalysis, Lacan puts tension on the Oedipus myth and the myth of Totem and Taboo. For this, Lacan revisits the only observation of Freud which he had not been served: the case of Dora (Freud, 1901/2003). Lacan observes that in the case of Dora, her father occupies a pivotal point. This article demonstrates that Lacan attaches great importance to the second dream of Dora, in particular, the forgotten fragment, which Dora did not remember only after the interpretation of Freud, concerning the first part, where she dreams that his father is dead. Therefore, Lacan makes reference to Totem and Taboo demonstrating that truth is a logical structure. So, to complete the article, we demonstrate that we find the reverse of the father, that is, with his enjoyment, that producesses a separation between knowledge and truth. Keywords The Oedipus complex, Symptom, Knowledge, Truth, Dora s case. É nesse sentido que Lacan, em seguida, comenta que não precisa mais salvar o pai, à moda de Freud. Ele desassocia o complexo de Édipo de uma base mítica, 94

Bibliografia FREUD, Sigmund. Tres ensayos de teoría sexual y otras obras. In: FREUD, S. Fragmento de análisis de um caso de histeria. Trad. José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 2003 (Obras completas, v.7). FREUD, Sigmund. Tótem y tabú y otras obras. Trad. José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 2003 (Obras completas, v.13). LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Trad. Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. LACAN, Jacques. Le séminaire, livre XVIII: D un discours qui ne serait pas du semblant (2006). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Paris: Éditions du Seuil, 2007. LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Texto estabelecido por Jacques- Alain Miller. Versão brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. LACAN, Jacques. O seminário, livro 22: R.S.I. Não estabelecido; não publicado. Sessão de 08-04-1975 e 15-04-1975. LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. (1975-76). Texto estabelecido por Jacques- Alain Miller. Versão brasileira de Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. LACAN, Jacques. Le séminaire, livre 23: Le sinthome. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Paris: Éditions du Seuil, 2005. RECEBIDO EM: 07/02/2011 APROVADO EM: 11/04/2011 SOBRE O AUTOR Pedro Teixeira Castilho Mestre em Literatura e Psicanálise pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009). Professor adjunto do Mestrado em Educação da Unincor Universidade Vale do Rio Verde e Três Corações. Professor substituto do Departamento de Psicologia na área de Psicologia Clínica Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço para correspondência: Av. Contorno, 6283/1503 Savassi 30130-905 BELO HORIZONTE/MG Tel.: (31)3281-9404. E-mail: ctcastilho@ig.com.br 95