Resenha. Considerações sobre a teoria lacaniana das psicoses*

Documentos relacionados
3) Interrogações sobre a Ética da Psicanálise na Clínica com Pacientes Psicóticos.

O MANEJO DA TRANSFERÊNCIA NA PSICOSE: O SECRETÁRIO DO ALIENADO E SUAS IMPLICAÇÕES

O AMOR NA PSICOSE. fórmulas da sexuação, entre o homem e a mulher. Já na articulação amor / suplência 3 o sujeito

AS DIREÇÕES DO TRATAMENTO NA CLÍNICA DA PSICOSE

A LINGUAGEM E O FUNCIONAMENTO DO DELÍRIO NA PSICOSE

Paranóia A Clínica do Real

ESTRATÉGIAS PSICANALÍTICAS NO DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DA PSICOSE

ANALISTAS E ANALISANDOS PRECISAM SE ACEITAR: REFLEXÕES SOBRE AS ENTREVISTAS PRELIMINARES

Sofrimento e dor no autismo: quem sente?

Curso de Extensão: LEITURAS DIRIGIDAS DA OBRA DE JACQUES LACAN/2014

A OPERAÇÃO DO DISCURSO ANALÍTICO

O PAI NA PSICANÁLISE ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PSICOSES

Psicanálise e Saúde Mental

AS DEPRESSÕES NA ATUALIDADE: UMA QUESTÃO CLÍNICA? OU DISCURSIVA?

Mental ISSN: Universidade Presidente Antônio Carlos Brasil

O OBJETO OLHAR E SUAS MANIFESTAÇÕES NA PSICOSE: O DELÍRIO DE OBSERVAÇÃO

OS TRABALHOS ARTÍSTICOS NÃO SÃO PRODUTOS DO INCONSCIENTE 1

PERGUNTANDO A LACAN: TEM INCONSCIENTE NAS PSICOSES?

Instituto Trianon de Psica nálise

DIMENSÕES PSÍQUICAS DO USO DE MEDICAMENTOS 1. Jacson Fantinelli Dos Santos 2, Tânia Maria De Souza 3.

CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

Tempos significantes na experiência com a psicanálise 1

PROJETO AIMEE: A CLÍNICA DA PSICOSE E SEU EFEITO NO SOCIAL

PSICANÁLISE COM CRIANÇAS: TRANSFERÊNCIA E ENTRADA EM ANÁLISE. psicanálise com crianças, sustentam um tempo lógico, o tempo do inconsciente de fazer

LATINOAMERICANA DE PSICOPATOLOGIA. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p , dezembro 2008

NOME DO PAI E REAL. Jacques Laberge 1

Recalque e foraclusão

6 Referências bibliográficas

PETRI, R. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo, SP: Annablume, 2003

DO MAIS AINDA DA ESCRITA 1

Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line n o 5

CLÍNICA, TRANSFERÊNCIA E O DESEJO DO ANALISTA 1 CLINIC, TRANSFERENCE AND DESIRE OF THE ANALYST. Fernanda Correa 2

Análise de um caso de psicose numa enfermaria psiquiátrica. A psicanálise inaugura uma nova forma de enxergar a verdade e coloca em

Do sintoma ao sinthoma: uma via para pensar a mãe, a mulher e a criança na clínica atual Laura Fangmann

A escuta de orientação analítica na psicose, de que sujeito se trata?

Latusa Digital ano 1 N 8 agosto de 2004

VERSÕES DO SUJEITO. atravessa toda sua obra. Desde seus primeiros pacientes a questão parece se impor com

7 Referências Bibliográficas

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA Deptº de Psicologia / Fafich - UFMG

A INCOMPREENSÃO DA MATEMÁTICA É UM SINTOMA?

O estudo teórico na formação do psicanalista Uma lógica que não é a da. identificação 1

NOME PRÓPRIO - EM NOME DO PAI

Latusa digital ano 2 N 13 abril de 2005

A ESCRAVIDÃO. O DISCURSO DA LIBERDADE É MÍTICO

CEP -CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS. Curso de Formação em Pasicanálise. Ciclo IV 3ª Noite

A ameaça da alta: considerações sobre o amor na psicose 1

A política do sintoma na clínica da saúde mental: aplicações para o semblante-analista Paula Borsoi

As psicoses ordinárias na perspectiva borromeana 1

52 TWEETS SOBRE A TRANSFERÊNCIA

O estatuto do corpo no transexualismo

COMENTÁRIOS SOBRE A DIREÇÃO DA CURA 1. Muito foi dito, durante esta semana, sobre a ética e a direção da cura, textos

O ATO PSICANALÍTICO NO CAMPO DO GOZO. verificação e comprovação. Sendo esse o tema de nosso projeto de mestrado,

Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line n o 8

DE FREUD A LACAN: UMA ANÁLISE SOBRE A CLÍNICA DA PSICOSE

Latusa Digital ano 1 N 8 agosto de 2004

Instituto Trianon de Psicanálise

PSICOSE E PSICANÁLISE: OBSERVAÇÕES SOBRE O DIAGNÓSTICO PSYCHOSIS IN PSYCHOANALYSIS AND IN PSYCHIATRY: OBSERVATIONS ABOUT DIAGNOSTIC

Centro de Estudos Psicanalíticos. Possibilidades diagnósticas em psiquiatria e psicanálise. Patrícia T. Tenguam Ciclo 3 Terça à noite

Psicanálise: ética, discurso e ensino Psychoanalysis: éthics, discourse and teaching

CEP - CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS DE SÃO PAULO. São Paulo, 31 de Maio de A DIFERENÇA ENTRE O DIAGNÓSTICO FENOMENOLÓGICO E O

O Psicótico: aspectos da personalidade David Rosenfeld Sob a ótica da Teoria das Relações Objetais da Escola Inglesa de Psicanálise. Expandiu o entend

OS ESCRITOS DE JOYCE NOS "ESCRITOS" DE LACAN 1

O real escapou da natureza

Referências Bibliográficas

psicóticos que evidenciam uma junção entre significante e significado - manobra que a estrutura psicótica possibilita (Lacan, [ ]: 17).

Um rastro no mundo: as voltas da demanda 1

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO

PsicoDom, v.1, n.1, dez

Programa da Formação em Psicoterapia

DISCUSSÃO AO TRABALHO DA INSTITUIÇÃO CARTÉIS CONSTITUINTES DA ANALISE FREUDIANA: A psicanálise: à prova da passagem do tempo

Componente Curricular: Psicoterapia I Psicanálise Professor(a): Dalmir Lopes Período: 8º TURNO: Noturno Ano:

ISSO NÃO ME FALA MAIS NADA! 1 (Sobre a posição do analista na direção da cura)

A Presença do Analista e o Manejo da Transferência nas Psicoses

DESEJO DE ANALISTA. Ana Lúcia Bastos Falcão 1. O x da questão

Ressonâncias de um trabalho na Escola

DO GOZO À FALTA: O SUJEITO E O ENLAÇAMENTO ENTRE O SINTOMA E O DESEJO. Em termos psicanalíticos a referência ao desejo como campo subjetivo ligado

Número de inscrição dos candidatos requisitantes: ; ; e

Terceiro capítulo A teoria lacaniana da psicose

Questões preliminares à psicanálise de psicóticos

Mesa Redonda: a psicose de Freud a Lacan

UNLVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA GILBER VIEIRA FERREIRA CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA DE FORTALEZA. AS PSICOSES: PARANÓIA, O PARADOXO.

REALMENTE, O QUE SE PASSA?

Algumas considerações sobre a escuta psicanalítica

Sobre o sinthoma José Luiz Machado Gaglianone*

O INTERMINÁVEL DAQUILO QUE TERMINA

Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais Almanaque On-line n.7

A FALHA DA FUNÇÃO PATERNA E O SINTOMA. Desde 1957, Lacan ( /1995, p. 383) havia apontado que a interrogação o que é o

Título:A Mostr(Ação) do Real nas Enunciações de sujeitos em Vivência Psicótica 1 Autor: Ivo de Andrade Lima Filho 2

I n s t i t u t o T r i a n o n d e P s i c a n á l i s e CLaP Centro Lacaniano de Psicanálise e Pesquisa SEMINÁRIO DE FORMAÇÃO PERMANENTE

A psicose e sua relação com a loucura da mulher

Revista da ATO escola de psicanálise Belo Horizonte Topologia e desejo do analista Ano 3, n.3 p ISSN:

Psicanálise e Ciência: um sujeito, dois discursos

UM RASTRO NO MUNDO: AS VOLTAS DA DEMANDA 1 Maria Lia Avelar da Fonte 2

Entrevista com Taciana Mafra Revista Antígona, Na sua opinião, como se dá a formação de um psicanalista?

PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL

DEBILIDADE OU LOUCURA Elucubrações a partir do conceito de Parlêtre

PSICOSE. Organização: Carmen Silvia Cervelatti, Kátia Ribeiro, Luciana Rabelo, Eliane Costa Dias e Niraldo dos Santos.

AS DUAS VERTENTES: SIGNIFICANTE E OBJETO a 1

1. Introdução é preciso aproximar-se da verdade e olhar uma criança como ela é. A invenção pode vir antes ou depois, mas não se deve reinventar uma cr

VI Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental

Transcrição:

Resenha Considerações sobre a teoria lacaniana das psicoses* SOUZA LEITE, M. P. Questões preliminares à psicanálise de psicóticos, Palestra. Iª Semana de Psicanálise. Novembro-1987, PUC-SP (www.marciopeter.com.br). Daniela de Camargo B. Affonso Em tempos em que os debates giram em torno da foraclusão generalizada ou da psicose ordinária, pareceu-me interessante resenhar um texto em que o autor, com sua reconhecida clareza, procura retomar alguns pontos bastante fundamentais (na medida em que remetem aos fundamentos) da teoria lacaniana da psicose. Penso ser ainda mais importante recuperar tais conceitos, na medida em que permitem o cotejamento com as discussões mais recentes sobre o tema. Nesta palestra direcionada a um público não necessariamente informado sobre a psicanálise lacaniana, procura enfatizar as consequências do posicionamento de Lacan na teoria da psicose, seja diante de outras disciplinas especialmente a psiquiatria seja em relação às próprias teorizações de Freud. A psicose é fundamental para a teoria lacaniana na demonstração da relação do sujeito com o significante, a tal ponto que se pode dizer que a paranoia está para Lacan, assim como a histeria está para Freud. Após a tese de Lacan sobre a paranoia, passaram-se 25 anos para que ele retomasse o tema, desta vez na perspectiva propriamente de seu ensino, no seminário de 1956, que resultou no escrito Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. Márcio Peter retoma o texto de 1946, Formulações sobre a causalidade psíquica, em que Lacan debate com Henry Ey a questão da psicose, destacando o seguinte trecho: Longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essência. Lacan, com isso, descarta a organicidade das psicoses, reintroduzindo a especificidade da psicanálise e decidindo a polêmica que se mantinha decorrente da ambiguidade de Freud quanto à possibilidade de haver uma explicação neuroquímica das psicoses. Enfatiza, também, o fato de que a psicanálise, ao descobrir o lugar prevalente da palavra na existência humana, afirma que a palavra, mais que o centro, é o eixo da existência.

A partir daí, o autor desenvolve algumas considerações sobre as relações entre a clínica psiquiátrica e a clínica psicanalítica. Lacan introduziu o sujeito na psicose, quando esta era medida em termos de déficit, do não funcionamento de certas funções mentais. A psicanálise constituiu sua clínica a partir da psiquiatria, mas estabeleceu uma especificidade na medida em que o único meio que a psicanálise tem para a sua investigação são as palavras, pois, tanto na neurose, quanto na psicose, trata-se da relação do sujeito com o significante. O autor destaca três especificidades da psicanálise em relação à psiquiatria: o sintoma, a demanda e a transferência. O sintoma, na clínica psiquiátrica, é constituído pela observação do psiquiatra. Ele observa, descreve e classifica. Na psicanálise, o sintoma é constituído na experiência analítica; ele só existe se é falado pelo paciente. O analista, desde esse ponto de vista, faz parte do sintoma do paciente. A demanda feita ao psiquiatra é demanda social; a demanda endereçada ao psicanalista é fruto do desejo do paciente e depende de uma suposição de saber no analista sobre o seu problema, suposição que é a estrutura da transferência. A transferência é, pois, o contexto em que é realizado o diagnóstico, diferentemente da psiquiatria em que este é feito a partir de elementos descritivos, da intensidade dos sintomas e das noções de déficit e dissociação. Antes de abordar a estrutura psicótica, Márcio Peter faz uma diferenciação entre a estrutura psicótica, a psicose e o psicótico. Em decorrência das vicissitudes do Complexo de Édipo, o sujeito pode ou não desenvolver uma estrutura psicótica, condição para que ele se torne um psicótico. Isso equivale a dizer que alguém que tenha uma estrutura psicótica poderá ou não desenvolver uma psicose, mas só a desenvolverá se possuir a estrutura para tal. O autor lembra o que Lacan escreveu na parede do hospital onde fazia residência: só é psicótico quem pode. A estrutura psicótica, diante de certas condições, desencadeia um surto psicótico, que é a atualização dessa estrutura. Lacan, explica o autor, coloca a paranoia como eixo em relação à esquizofrenia, de tal forma que o eixo organizador das psicoses passa a ser a paranoia. A partir daí, organiza o campo das psicoses fazendo equivaler a paranoia ao momento do narcisismo, na teoria freudiana, o que corresponderia ao estádio do espelho, em seu ensino. A esquizofrenia, que em Freud seria uma regressão ao auto-erotismo, em Lacan corresponde ao corpo despedaçado. Para Lacan, portanto, pode-se dizer que o esquizofrênico adoece por falta de paranoia, falta do elemento organizador do despedaçamento do corpo, proporcionado pelo estádio do espelho. Deste posicionamento lacaniano, decorre que só é analisável a parte paranóica da esquizofrenia, na medida em que a lógica da psicose se dá pela paranoia, e a esquizofrenia seria a ausência de uma lógica na relação do sujeito com o significante.

Após essa introdução, Márcio Peter aborda a especificidade da estrutura psicótica. Nesse aspecto, enfatiza, há um avanço fundamental de Lacan em relação à Freud. Enquanto Freud identificou o inconsciente com o recalcado, Lacan afirmou que elementos poderiam ser inconscientes por efeito de outro mecanismo, diferente do recalque. Na psicose trata-se da falta essencial de um significante primordial que se deve a um acidente no Édipo, a Verwerfung. Este termo, utilizado de forma esparsa por Freud, é tomado por Lacan que o organiza, dando-lhe o nome de foraclusão. Foraclusão é um termo jurídico que diz respeito ao fato de que um crime, por ter sido prescrito, não poder mais ter seu responsável punido, por não haver legislação anterior. O significante que falta, em decorrência da foraclusão, é o significante do pai. Não o pai destaca Márcio Peter como sujeito biológico, mas como significante, denominado por Lacan Nome do Pai, o significante da lei no Outro. Lacan define a causa estrutural das psicoses como a impossibilidade de que o significante pai advenha no nível do simbólico, explica. O Nome do Pai é o significante que estabelece a organização dos significantes, assegurando a estabilidade do pequeno mundo de todos nós, afirma Márcio Peter. Finalmente, o autor pergunta se é possível uma psicanálise da psicose, uma vez que esta decorre de uma alteração no simbólico que resulta na impossibilidade de suposição de saber no Outro. Não há suposição, há atribuição de certeza no Outro. Esta atribuição de certeza caracteriza a irredutibilidade do delírio do psicótico; o psicótico não duvida de suas afirmações, por isso, diz-se que ele delira. A via do simbólico, afirma Márcio Peter, via da análise por excelência, em que se joga o discurso e seus equívocos, fica alterada. O psicótico está fora do significado, porém não está fora da linguagem. Para Lacan, o psicótico só é tratável pela psicanálise a partir de uma manobra na transferência que consistiria numa mudança necessária da posição que o psicótico ocupa no início da situação analítica: em decorrência de sua estrutura, coloca-se frente à demanda do outro como objeto, lugar este que o analista deve ocupar. O autor diz: E justamente quando Lacan formaliza a via do real na análise, que é a do analista como objeto, é que se vai tornar possível efetivar a prática psicanalista com psicóticos. Afirma também que Lacan nunca chegou a formalizar esta manobra necessária na transferência de psicóticos, que consistiria numa inversão do lugar que o paciente ocupa em relação ao analista no início do tratamento. A indicação retirada de Lacan é que o analista se coloque como secretário do alienado. Se o psicótico não tem acesso à castração, é totalmente invadido pelo gozo do Outro. Ao se colocar como secretário do alienado, o analista se posiciona como sujeito castrado diante desse outro, marcando limites ao psicótico. Márcio Peter enfatiza que tais indicações do tratamento de psicóticos são apenas proposições e que o importante é mantermo-nos firmes quanto àquela proposta de Lacan de não retrocedermos diante da psicose, principalmente daquilo que temos a aprender com ela.

Para concluir, retomo alguns trechos em De uma questão preliminar... para, voltando a Lacan, procurar ilustrar a fala de Márcio Peter: Tentemos agora conceber uma circunstância da posição subjetiva em que o apelo ao Nome-do- Pai corresponda, não a ausência do pai real, pois essa ausência é mais do que compatível com a presença do significante, mas a carência do próprio significante. (Escritos, p. 563). Extraiamos de vários textos de Freud um termo suficientemente articulado neles para torná-los injustificáveis, caso esse termo não designe ali uma função do inconsciente distinta do recalcado. (...) esse termo se relaciona com a implicação mais necessária de seu pensamento, quando este se confronta com o fenômeno da psicose: o termo Verwerfung. (Escritos, p. 564). A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica. (Escritos, p. 564). É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose. (Escritos, p. 582). Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai, verworfen, foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito. É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante. (Escritos, p. 584). Todo o mundo sabe que nenhuma elaboração do mecanismo da transferência, não importa quão douta, conseguiu fazer com que ela não seja concebida, na prática, como uma relação puramente dual em seus termos e perfeitamente confusa em seu substrato. (Escritos, p. 583).

O que afirmamos aqui é: ao se reconhecer o drama da loucura, põe-se a razão em pauta, sua res agitur, porque é na relação do homem com o significante que se situa esse drama. O perigo que evocaremos, de delirar com o doente, não é para nos intimidar, como não intimidou a Freud. Com ele, sustentamos que convém escutar aquele que fala, quando se trata de uma mensagem que não provém de um sujeito para-além da linguagem, mas de uma fala para-além do sujeito. (Escritos, p. 581). Deixaremos neste ponto, por ora, essa questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses, que introduz, como vemos, a concepção a ser formada do manejo, nesse tratamento, da transferência. Dizer o que podemos fazer nesse terreno seria prematuro, porque seria ir, agora, para além de Freud, e não se trata de superar Freud quando a psicanálise segundo Freud, como dissemos, voltou à etapa anterior. Pelo menos, é isso que nos afasta de qualquer outro objetivo senão o de restaurar o acesso à experiência que Freud descobriu. Pois usar a técnica que ele instituiu fora da experiência a que ela se aplica é tão estúpido quanto esfalfar-se nos remos quando o barco está encalhado na areia. (Escritos, p. 590). * Texto apresentado na 3ª Reunião da Seção Epistêmica da CLIPP (6.12.2010).