A EXPERIÊNCIA DA LOUCURA, O TRABALHO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA E A INTERCESSÃO-PESQUISA UMA PRÁTICA CLÍNICA NO CAMPO PSICOSSOCIAL DA SAÚDE COLETIVA A relação entre loucura e trabalho esteve e continua presente, no mundo ocidental, tanto na assistência leiga onde o trabalho teve a função de auxiliar na manutenção da ordem social e econômica, como na Psiquiatria com o trabalho enquanto recurso terapêutico no tratamento moral e submetido à autoridade médica, quanto nas Reformas Psiquiátricas a partir da década de 70 do século XX onde o trabalho se torna instrumento de reabilitação ou reinserção social e de resgate da cidadania no engendramento de uma outra contratualidade social entre loucura e sociedade. A autogestão como uma dimensão ético-estético-política fundante dos movimentos das Reformas Psiquiátricas tanto no Brasil, como na Itália e na França encarnada no dispositivo da Assembléia como campo social de uma prática clínica revolucionária está presente também na organização do trabalho na Economia Solidária. O tema que propomos para esse trabalho é a reflexão sobre um processo de intercessão-pesquisa, aliando economia solidária e novas práticas com o sofrimento psíquico, como uma prática clínica no campo psicossocial da Saúde Coletiva. Tomamos a noção de campo como o território da realidade concreta e da intersubjetividade onde se dá o encontro entre a prática social dos sujeitos que compõem esse território que se caracteriza como o campo de intercessão, que vai para além da intervenção porque sua ação não se esgota no próprio campo, pois é a partir dele que a prática social do intercessor sua práxis é construída, mas a posteriori de sua ação, no campo de produção do conhecimento. Sendo assim, a produção de conhecimento sobre a práxis do pesquisador é construída na relação com o campo da práxis dos que lidam com a experiência da loucura e estão envolvidos com a produção e reprodução da vida através do trabalho solidário e autogestionário. Palavras-chave: loucura, trabalho, Economia Solidária, Intercessão-Pesquisa. Abílio da Costa-Rosa - Psicólogo - Prof. Doutor na Universidade Estadual Paulista/UNESP/Assis/SP. Av. Dom Antonio, 2100 Assis/ SP Cep. 19.806-900. Tel (18) 3324 6390. e-mail: abiliocr@assis.unesp.br Márcia Campos Andrade - Psicóloga Profª. Mestre na Universidade Estadual de Maringá/UEM e Doutoranda na Universidade Estadual Paulista/UNESP/Assis/SP. R. Pioneiro Alberto Biazon, 692 Vila Marumby Maringá/PR Cep. 87.005-310. Tel: (44) 3029.0986/9146.1000.e-mail: maringa2008@yahoo.com.br O tema proposto para o presente trabalho é o foco de interesse de nossa práxis universitária de produção de um conhecimento em Psicologia que esteja contextualizado na realidade psicossocial e que seja elaborado através da articulação entre teoria e prática. Além disso, nossa práxis fundamenta-se pelo compromisso em contribuir com o encontro entre dois movimentos sociais contra-hegemônicos que são a Luta Antimanicomial no contexto da Saúde Coletiva onde se inscreve a Atenção Psicossocial aos sujeitos da experiência da loucura e a Economia Solidária no contexto do trabalho
onde se inscreve a prática coletiva, autogestionária e emancipatória dos trabalhadores organizados em empreendimentos econômicos solidários. Os movimentos de resistência engendrados no final do século XX provocaram grandes transformações no âmbito da psiquiatria em vários países do ocidente, como por exemplo, a Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria de Setor na França, a Psiquiatria Democrática Italiana, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Estas mudanças relacionadas à maneira de se referir ao louco aconteceram na medida em que se percebeu a importância da desconstrução do estigma de que o louco é um sujeito incapaz tanto de governar sua vida como de trabalhar de acordo com o ideário capitalista do trabalho regido pela ética protestante em seu formato como emprego. Estes movimentos de Reformas Psiquiátricas que aconteceram em vários países visavam justamente modificar a forma de tratamento destinado aos sujeitos que lidam com o sofrimento psíquico, eliminando gradualmente o internamento com a construção de dispositivos na comunidade substitutivos à lógica manicomial, procurando a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial. Ao mesmo tempo, no mundo do trabalho, não podemos nos esquecer do contexto das transformações em curso desde o final do século XX que, em função das recorrentes crises econômicas inerentes ao modo de produção capitalista industrial que culminaram com a reestruturação produtiva nas décadas de 80 e 90, o processo de globalização econômica e a institucionalização do capitalismo financeiro, colocaram uma grande parte da população economicamente ativa em todos os países, desconfigurando a até então vigente dicotomia entre norte colonizador e o sul colonizado, em situação de desemprego, precarização do trabalho, subemprego e desemprego salarial o que promoveu profundos impactos na saúde mental dos trabalhadores assalariados ou não, sujeitos ou não do sofrimento psíquico. É nesse contexto que se configura no Brasil e em vários outros países um movimento de ruptura com o modo de produção capitalista denominado de Economia Solidária, pautado por valores de autogestão e solidariedade nas relações de trabalho, tendo como centralidade o ser humano e seu trabalho, a natureza e a relação de sustentabilidade entre estes. A Economia Solidária pode ser entendida, de acordo com Singer (2003), como o conjunto de atividades econômicas de produção, comercialização, consumo, poupança e crédito - organizadas sob a forma de autogestão, isto é, pela propriedade coletiva do
capital e participação democrática (uma cabeça, um voto) nas decisões dos membros da entidade promotora da atividade. Segundo o mesmo autor, o desenvolvimento da economia solidária no Brasil acontece a partir da década de 80 com a contra revolução neoliberal. O aumento dos níveis mundiais de desemprego nas últimas décadas do século XX teve como uma de suas principais conseqüências o incremento do trabalho informal como geração de renda, de sobrevivência material e de manutenção de espaços de trabalho, mesmo em condições precárias. Como uma outra forma de organizar o trabalho através da autogestão e da solidariedade, a Economia Solidária emerge como estratégia coletiva de alternativa ao desemprego e à precarização do trabalho. Com a Reforma Psiquiátrica e a Economia Solidária inicia-se o processo de construção de uma outra maneira de se reportar ao louco e também ao trabalho, o primeiro passa a ser visto como sujeito em sofrimento psíquico e não mais como alienado, capaz de pensar e executar coletivamente sua atividade produtiva em uma perspectiva autogestionária e o segundo, é ressignificado para além de seu formato alienado e institucionalizado como emprego na sociedade salarial e redefinido em sua dimensão da práxis humana como atividade livre, universal, criativa e autocriativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz), e transforma (conforma) seu mundo humano, a história e a si mesmo (MARX, 1989). Em alguns serviços de Saúde Mental em Saúde Coletiva, estas dimensões do humano louco e trabalhador estão entrelaçadas na construção de um modo de subjetivação que marca a ruptura com a lógica manicomial resgatando a condição de sujeito trabalhador do louco, mas não o trabalhador do modo de produção capitalista. Diante da importância do trabalho, tanto na Reforma Psiquiátrica quanto na Economia Solidária, ressalta-se o significado deste na vida do ser humano sujeito da experiência da loucura, pois existe a possibilidade da estruturação de um saber através do trabalho, é um meio de inserção na sociedade, é um modo de se lidar melhor com o sofrimento e o que este representa em sua vida, é um meio de estar em contato com outras pessoas facilitando igualmente a troca de experiências, é um combate a cronificação, evitando possíveis crises por conta do sofrimento psíquico. O trabalho na Economia Solidária sendo remunerado, mas não assalariado, proporciona o direito de produzir e reproduzir a vida, direito de fazer escolhas, enfim, resgata a autonomia, a cidadania, promove emancipação e a construção de outros modos de subjetivação. Sabemos que tanto as experiências de geração de trabalho e renda pelos usuários dos serviços de saúde mental como o trabalho autogestionário nos empreendimentos de
economia solidária são construídos no contexto de uma história de lutas políticas contra a exclusão social no contexto da sociedade capitalista. Sabemos também que existe um conjunto legitimado de práticas emancipatórias em seus espaços de referência e a institucionalização destas práticas através de políticas públicas consolidadas e em vias de implantação. Entretanto, o encontro entre a saúde mental e a economia solidária enquanto uma alternativa ao modo de produção capitalista é algo incipiente, desafiador, com referenciais teórico-metodológicos em construção e acontece no contexto de uma sociedade ainda marcada pela lógica manicomial e pelo modo de produção capitalista que estão presentes em todos nós. Sendo assim, é preciso que também provoquemos processos de singularização em nós mesmos na relação com as contradições que vivenciamos no cotidiano do qual participamos, principalmente os trabalhadores da Saúde Mental que são atores importantes no processo de implantação da Reforma Psiquiátrica, que muitas vezes precisam ressignificar sua própria formação acadêmica ao optar pelo trabalho com a loucura. Entretanto, vários serviços de saúde mental, centros de convivência e associações de usuários, familiares e trabalhadores da Saúde Mental têm construído coletivamente iniciativas relacionadas à geração de trabalho com renda junto aos sujeitos que lidam com o sofrimento psíquico. O encontro entre esses movimentos a Reforma Psiquiátrica e a Economia Solidária engendrou a elaboração e implantação desses dispositivos de políticas púbicas que se configuram como espaços concretos e cotidianos da realidade psicossocial, com os quais estamos nos relacionando, que são projetos de geração de trabalho e renda desenvolvidas nos Centros de Atenção Psicossocial, nos Centros de Convivência e nas Associações de usuários, familiares e trabalhadores dos serviços de Saúde Mental. Nestas podemos identificar a construção de práticas autogestionárias presentes tanto no dispositivo da Assembléia como campo social de uma prática clínica revolucionária na Atenção Psicossocial como na organização do trabalho coletivo e autogestionário nos empreendimentos de Economia Solidária. Este é o campo social onde os trabalhadores, sujeitos da experiência da loucura, constroem sua práxis de trabalho coletivo e autogestionário em um Centro de Atenção Psicossocial I, sendo este o nosso campo de intercessão. Como há um processo produtivo que desencadeia a possibilidade de comercialização do que é produzido pelo trabalho nas oficinas terapêuticas, os envolvidos no processo têm refletido sobre a possibilidade de ir para além do trabalho como construção de si (terapêutico) através da organização coletiva, solidária e autogestionária dessa produção com a intencionalidade
de produzir para a comercialização (trabalho para o intercâmbio). A demanda social por um intercessor aconteceu em função de haver esse processo produtivo que desencadeia a possibilidade de comercialização do que é produzido pelo trabalho nas oficinas terapêuticas. Na dimensão intersubjetiva com os sujeitos desse campo é que buscamos, através da intercessão-pesquisa como uma prática clínica, construir a partir de nossa práxis universitária, conhecimento em Psicologia no contexto do encontro da Saúde Mental em Saúde Coletiva com a Economia Solidária. Nesse contexto, buscamos desenvolver a metodologia do Dispositivo Intercessor como Modo de Produção do Conhecimento em Psicologia como uma práxis ligada à Universidade que é construída a partir dessa dimensão intersubjetiva experienciada entre o intercessor-pesquisador e os trabalhadores que lidam com o sofrimento psíquico intenso em sua práxis cotidiana de trabalho coletivo e autogestionário, sendo este o Dispositivo Intercessor, onde acontece a intercessãopesquisa (COSTA-ROSA, 2008). Para Deleuze (1972/1992) a questão para o intercessor é o que se passa entre e o fundamental é chegar entre em vez de ser a origem de um esforço, de um movimento. Sendo assim, os conceitos também se movem e é preciso construir outros conceitos capazes de movimentos intelectuais, sendo esta uma tarefa que pode ser assumida pelo intercessor. Nesse sentido, o intercessor não é um agente, ele é uma função, um acontecimento, uma ação. Existe um saber sobre a práxis, sobre as apreensões do coletivo. O dispositivo intercessor em seu cotidiano funciona como um cartógrafo que produz saber a partir dessa práxis. Há um campo do qual emerge uma demanda social pulsações articuladas dialeticamente, rizomaticamente. A intercessão-pesquisa acontece na relação com um grupo de sujeitos da práxis, ou mesmo apenas com um desses sujeitos. O que propomos para esse trabalho é a reflexão sobre esse processo de intercessão-pesquisa aliando economia solidária e novas práticas com o sofrimento psíquico, como uma prática clínica no campo psicossocial da Saúde Coletiva. Tomamos a noção de campo como o território da realidade concreta e da intersubjetividade onde se dá o encontro entre a prática social dos sujeitos que compõem esse território que se caracteriza como o campo de intercessão também considerada por nós como uma prática clínica, que vai para além da intervenção porque sua ação não se esgota no
próprio campo, pois é a partir dele que a prática social do intercessor-pesquisador sua práxis é construída, mas a posteriori de sua ação, no campo de produção do conhecimento. Para refletirmos sobre a intercessão-pesquisa como uma prática clínica a tomaremos como um dispositivo constituído a partir da demanda de um coletivo na concepção que este tem para Oury (1924-2009, p. 19) como uma organização geral que possa levar em conta um vetor de singularidade dos que o compõem, onde é preciso que exista heterogeneneidade tanto as pessoas que trabalham com este coletivo como as próprias atividades desenvolvidas precisam ser diferentes, evitando sua serialização. Nesse sentido, a intercessão-pesquisa acontece junto com outros intercessores que compõem a equipe de Saúde Mental do CAPs e as atividades desenvolvidas são dialógicas e participativas, ou seja, construídas a partir das questões levantadas pelo coletivo dos sujeitos trabalhadores que lidam com o sofrimento psíquico intenso no início de cada oficina onde o tema é o trabalho. O processo de escuta das histórias de vida de trabalho destes trabalhadores (seja de inclusão, exclusão ou perda do emprego em função do sofrimento psíquico) nos mostra uma centralidade em trabalhar para se sentir sujeito de sua história cotidiana e participante da sociedade do trabalho, ainda marcada pela concepção capitalista do emprego, mas lidando com seus limites; a escuta de suas experiências de relacionamento com o sofrimento psíquico e com o tratamento que lhes é oferecido nos mostra a ainda presente estigmatização social que sofrem por freqüentarem um serviço de saúde mental e como tudo isso interfere em seu cotidiano de vida e de relacionamento social; a escuta de seus desejos relacionados ao trabalho, de seus projetos de vida, de suas possibilidades e impossibilidades em realizar alguma atividade produtiva nos mostra a difícil e revolucionária tarefa a ser construída por esse coletivo em busca de sua reabilitação psicossocial e (re) inserção no mundo do trabalho. Tudo isso configura uma experiência de escuta da subjetividade e da intersubjetividade para além do foco no sintoma, mas no como cada um desses sujeitos lidam de maneira singular com sua experiência com a loucura e como coletivamente começam a buscar alternativas para sua atual condição de desfiliados sociais tendo como ponto de partida a construção de um processo de grupalização, de coletivização, de construção de uma dimensão intersubjetiva forjada no campo do trabalho coletivo, solidário e autogestionário.
Para Oury (2009) o Coletivo seria, talvez, uma máquina a tratar a alienação, todas as formas de alienação, tanto a alienação social, coisificante, produto da produção, como a alienação psicótica. É evidente que é preciso que haja um lugar se quisermos verdadeiramente por em prática algo de eficaz no plano da psicoterapia das psicoses uma máquina que possa tratar a alienação (p.39). Com a prática clínica da intercessão-pesquisa, aliando economia solidária e novas práticas com o sofrimento psíquico no campo da Atenção Psicossocial em Saúde Coletiva, esperamos contribuir com a construção da máquina que possa tratar a alienação proposta por Oury. Referências ANDRADE, M. C. Psicologia Social e Economia Solidária: uma análise psicossocial do trabalho associativo e cooperativo na perspectiva da Economia Solidária. 2004. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. COSTA-ROSA, A. Intercessões e análises sobre o processo de produção saúdeadoecimento atenção no campo psíquico, num território municipal. Produção de novas tecnologias para o implemento da Atenção Psicossocial no Sistema Único de Saúde. UNESP/Assis. Mimeo, 2008. DELEUZE, G. (1972) Os intercessores. In: DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. p. 151-168. MARX, K. Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos. Lisboa: Edições 70, 1989. OURY, J. (1924) O Coletivo. Tradução de Antoine Menárd... (et al.). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2009. PEREIRA, W. C. C. Nas trilhas do trabalho comunitário e social: teoria, método e prática. Belo Horizonte: Vozes; PUC Minas, 2001.