Dissertação de Mestrado TRANSCENDÊNCIA E JOGO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER. Tatiana Betanin PPGF. Santa Maria, RS, Brasil

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Transcrição:

UFSM Dissertação de Mestrado TRANSCENDÊNCIA E JOGO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER Tatiana Betanin PPGF Santa Maria, RS, Brasil 2004

i TANSCENDÊNCIA E JOGO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER por Tatiana Betanin Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós- Graduação em Filosofia, Área de Concentração em Filosofia Transcendental e Hermenêutica, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia PPGF Santa Maria, RS, Brasil 2004

ii Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas Curso de Pós-Graduação em Filosofia A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado TRANSCENDÊNCIA E JOGO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER elaborada por Tatiana Betanin como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia COMISSÃO EXAMINADORA: Prof. Dr. Róbson Ramos dos Reis (Presidente/orientador) Prof. Dr. Marco Antônio Casa Nova Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto Santa Maria, 05 agosto de 2004

iii AGRADECIMENTOS Ao Luciano, pelas longas conversas, pela compreensão, paciência e incentivo. Aos meus pais, pelo incentivo. Ao professor Dr. Róbson Ramos dos Reis, pela disponibilidade em orientar e acompanhar este trabalho. Ao Departamento de Filosofia e ao Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM. À CAPES pelo financiamento da pesquisa.

iv SUMÁRIO AGRADECIMENTOS...iv SUMÁRIO...v RESUMO...vii ABREVIATURAS...ix 1INTRODUÇÃO...1 2 A TRANSCENDÊNCIA COMO FUNDAMENTO DA COMPREENSÃO DE SER...7 2.1 A compreensão de ser como abertura...7 2.2 A compreensão de si e do outro...12 2.3 A compreensão de ser e o comportamento com os entes intramundanos...16 2.3.1 O comportamento discursivo...17 2.3.2 O comportamento prático-operativo...20 2.3.3 O comportamento teórico-científico...22 2.4 A compreensão de ser e o mundo... 25 2.5 A transcendência do Dasein... 29 3 O JOGO COMO MODELO EXPLICATIVO DA TRANSCENDÊNCIA...36 3.1 Considerações gerais sobre Introdução à Filosofia...37 3.2 O significado histórico da noção de mundo...39 3.2.1 O significado clássico e medieval de mundo...40 3.2.2 O conceito kantiano de mundo...43 3.2.3 O conceito heideggeriano de mundo...47 3.3 O conceito heideggeriano de jogo...50 3.3.1 O significado originário do jogo e do jogar...52 3.3.2 Características complementares do significado de jogo...57 3.4 Jogo e transcendência... 60 4 A TRANSCENDÊNCIA COMO JOGO... 64 4.1 O jogo como indicação formal...64 4.2 A aplicação do conceito de jogo...70 4.2.1 A visão de mundo como abrigo (Bergung)...72 4.2.2 A visão de mundo como atitude (Haltung)... 77

v 4.3 A justificação da validade da aplicação...82 4.4 Jogo e ser...88 5 CONCLUSÃO... 94 6 BIBLIOGRAFIA... 103

vi RESUMO Dissertação de Mestrado em Filosofia Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil TRANSCENDÊNCIA E JOGO NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE MARTIN HEIDEGGER Autor: Tatiana Betanin Orientador: Prof. Dr. Róbson Ramos dos Reis Esta dissertação trata de uma problemática nova que aparece em um dos cursos recentemente publicado na Gesamtausgabe de Martin Heidegger, que é a lição de inverno de 1928/29 intitulada Introdução à Filosofia. O nosso objetivo consiste em analisar e reconstruir o conceito de jogo que se apresenta como a forma de determinação conceitual da transcendência. Esse conceito não apenas se relaciona à transcendência, senão também à compreensão de ser, que é considerada um momento essencial da transcendência. Então, além da noção de jogo e de transcendência, será caracterizada a noção de compreensão de ser. Como resultado temos a constatação de que a transcendência é a condição de possibilidade da compreensão de ser. Além disso, ela é a formação de sentidos de ser, sentidos que tanto se manifestam como se ocultam historicamente.

vii ABSTRACT Máster`s Dissertation Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil TRANSCENDENCE AND GAME IN MARTIN HEIDEGGER FUNDAMENTAL ONTOLOGY Author: Tatiana Betanin Adviser: Prof. Dr Róbson Ramos dos Reis This dissertation deals with a new matter that appears in one of Martin Heidegger recently published courses Gesamtausgabe, which is the winter 1928/29 lesson named Introduction to Philosophy. In this sense, our objective consists in analysing and rebuilding the game concept presented as a way to transcendence conceptual determination. This concept does not just relate to transcendence but also to the comprehension of being that is considered a transcendence essencial moment. Then, besides the game and transcendence notion, it will be carachterized the comprehension of being notion. As a result, we have the evidence that transcendence is the condition to the comprehension of being possibility. In addition, transcendence is the senses of being formation and these senses either can be manifested or can be historically concealed.

viii ABREVIATURAS IF corresponde a Introducción a la Filosofía. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Cátedra, 1999. KPM corresponde a Kant y el Problema de la metafísica. Trad. Jaime Aspiunza. Madrid: Alianza, 1999. PFF corresponde a Los Problemas Fundamentales de la Fenomenologia. Trad. Juan José Garcia Norro. Madrid: Trotta, 2000. SEF corresponde a Sobre a Essência do Fundamento. Trad. Ernildo Stein. Col. Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ST corresponde a Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante: 6ª ed. Parte I. Petrópolis: Vozes, 1998.

1 1. INTRODUÇÃO Neste trabalho trataremos de uma problemática nova que aparece na lição de inverno 1928/29 recentemente publicada na Gesamtausgabe de Martin Heidegger. A lição, intitulada Introdução à Filosofia e publicada em 1996, discute detalhadamente alguns temas centrais da ontologia fundamental como, por exemplo, os conceitos de ciência, verdade, mundo, compreensão de ser, transcendência, além de abordar o conceito de jogo. Esse conceito aparece intimamente relacionado à noção de transcendência e à de compreensão de ser. A noção de jogo apresenta-se como sendo a forma de determinação conceitual da noção de transcendência e também da noção de compreensão de ser, que é considerada um momento essencial da transcendência. A noção de compreensão de ser não é discutida primeiramente na lição de inverno de 1928/29, mas já é abordada em outros textos, como, por exemplo, na obra fundamental de Heidegger, Ser e Tempo. No início desta obra, mais precisamente no segundo parágrafo, é acentuado o fato de que o existente humano sempre se move em uma compreensão de ser, isso querendo dizer que esse ente sempre dispõe de uma compreensão do ser. Também é ressaltado, nesse parágrafo, que a compreensão do ser vaga e mediana é um fato. A compreensão que o existente humano sempre dispõe, e que faz parte da sua dimensão cotidiana, apresenta-se como sendo aquilo que permite a colocação da questão do sentido do ser e, além disso, é entendida como sendo aquilo que possibilita o comportamento do

2 existente humano em relação aos entes (ao ente que ele mesmo é e aos demais entes). A noção de transcendência é rapidamente abordada em Ser e Tempo, e discutida mais exaustivamente em textos posteriores tais como: Os Problemas Fundamentais de Fenomenologia (1927), Sobre a Essência do Fundamento (1928) e Kant e o Problema da Metafísica (1929). Esses textos do final dos anos vinte, basicamente, salientam a idéia de que a transcendência pertence à essência do existente humano e que ela é a condição de possibilidade da compreensão de ser que esse ente manifesta sempre que se comporta para com o ente (o ente que ele mesmo é e os demais entes do mundo). A lição de inverno de 1928/29, assim como as lições que acima nos referimos, também aborda a noção de transcendência, porém, tal lição revela que a transcendência pode ser conceitualizada de um outro modo, a saber, pela noção de jogo. A transcendência, na verdade, não deixa de ser entendida como a condição de possibilidade da compreensão de ser, mas, o que é reconhecido é que a compreensão de ser não esgota a essência da transcendência. Podemos considerar que a compreensão que o existente humano dispõe é um momento essencial da transcendência, porém, não podemos considerar que a estrutura básica do Dasein é exaustivamente determinada por meio de uma tal compreensão. É pelo fato da compreensão de ser não oferecer uma determinação completa da essência da transcendência que é introduzido o conceito de jogo. O jogo, enquanto modelo explicativo da essência da transcendência, possui um significado originário e metafísico que é completamente distinto do seu significado usual. É a acepção originária da

3 noção de jogo que será utilizada para explicitar a essência da transcendência e da compreensão de ser. No presente trabalho procuraremos analisar e reconstruir a caracterização do conceito que se apresenta como a forma de determinação da essência da transcendência. Nesse sentido, optamos por dividir o trabalho em três capítulos: 1) A transcendência como fundamento da noção de compreensão de ser; 2) O jogo como modelo explicativo da transcendência; 3) A transcendência como jogo. No primeiro capítulo procuraremos caracterizar a noção de compreensão de ser, mas, como essa compreensão é um momento essencial da transcendência, ao caracterizarmos a noção de compreensão de ser ofereceremos uma caracterização da noção de transcendência. Em um primeiro momento mostraremos que a compreensão de ser tem uma função de abertura e, buscando clarificar a natureza da compreensão de ser, também caracterizaremos a maneira como essa compreensão se dá no sersi-mesmo, no ser-com (os outros) e no ser-junto-a (às coisas). Ao tematizarmos esse último momento, o do ser-junto-a (às coisas), caracterizaremos três tipos de comportamento que o existente humano estabelece para com os entes intramundanos. Ainda mostraremos a relação entre compreensão de ser e mundo. Em um segundo momento, mostraremos que a transcendência é a condição de possibilidade da compreensão de ser e, assim sendo, também a condição de possibilidade da diferença ontológica. No segundo capítulo nossa atenção voltar-se-á para o conceito de jogo. Iniciaremos esse capítulo descrevendo a maneira como está dividido o texto que trata da noção de jogo. Em seguida, apresentaremos a

4 abordagem histórica do significado do conceito de mundo feita por Heidegger. Com isso tornar-se-á evidente que na tradição filosófica o conceito de mundo não pode ser compreendido de uma única maneira e que há uma diferença entre um conceito cosmológico e um conceito existencial de mundo. Também tornar-se-á evidente que o conceito kantiano de mundo denominado por Heidegger de existencial corresponde a expressão jogo da vida, e que a partir da noção kantiana de mundo é desenvolvido um novo significado para a noção de mundo e apresentado o significado metafísico e originário de jogo. Não apenas mostraremos que o significado existencial de mundo apresentado por Heidegger depende da noção kantiana de mundo e que a elucidação dessa noção funciona como ponto de partida da determinação do significado originário de jogo, mas, mais do que isso, pretendemos mostrar como Heidegger compreende a noção de jogo e de mundo. Ao caracterizarmos a noção de jogo destacaremos, primeiramente, o significado usual e o significado formal de jogo. Posteriormente, destacaremos os quatro pontos que revelam a natureza do jogar e do jogo, as duas características que Heidegger extraí destes quatro pontos e, por fim, as características que acentuam a mobilidade e a natureza unitária do jogo. Isso tudo revelará que a transcendência corresponde ao jogar e que o jogo, entendido como a determinação da transcendência, é o que resulta do exercício do jogar. No terceiro capítulo pretendemos oferecer uma caracterização mais concreta da essência da transcendência. Essa caracterização será feita mediante a aplicação do conceito de jogo. Em um primeiro momento, procuraremos mostrar que o jogo, entendido como a forma de determinação

5 conceitual da essência da transcendência, pode ser compreendido como uma indicação formal. Ao abordarmos brevemente a noção de indicação formal apresentaremos o significado do termo aplicação. Em um segundo momento procuraremos expor a aplicação do conceito de jogo feita por Heidegger. Isso será feito mediante a reconstrução de um ponto que aparece em Introdução à Filosofia, o qual discute duas possibilidades básicas de visão de mundo (a visão de mundo como abrigo e a visão de mundo como postura). Em seguida, mostraremos a validade da aplicação do conceito de jogo e, a título de conclusão, falaremos da relação entre jogo e ser. Na elaboração deste trabalho nos apoiamos basicamente no texto Introdução à Filosofia, e utilizamos a tradução espanhola desse texto (1999). Mas, é importante salientar que, ao abordarmos a noção de transcendência, compreensão de ser e de mundo, também nos reportaremos a outras obras de Heidegger do período circundante ao da lição de inverno de 1928. Nos referiremos, principalmente, ao texto Problemas Fundamentais de Fenomenologia (1927), disponível em língua espanhola e traduzido por Juan José Garcia Norro, e também a obra Ser e Tempo (1927), disponível em língua portuguesa e traduzida por Márcia de Sá Cavalcanti. Também é importante ressaltar que a elaboração do nosso trabalho não pode contar com o auxílio de muitos comentadores. Isso se deve ao fato de que a noção de jogo é uma temática que aparece em um texto que recentemente foi publicado (1996) e, portanto, ainda não foi exaustivamente explorada. Foi de fundamental importância para este trabalho o texto Heidegger, a transcendência como jogo (1999). Além

6 disso, utilizamos outros textos que, na verdade, não tratam especificamente dos conceitos centrais que abordamos, mas, mesmo assim nos auxiliaram na compreensão de tais conceitos. Ainda é importante ressaltar que vários títulos que aparecem na bibliografia não foram mencionados no corpo do texto da dissertação, mas também foram importantes na elaboração do nosso trabalho.

7 2. A TRANSCENDÊNCIA COMO FUNDAMENTO DA COMPREENSÃO DE SER Na análise seguinte procuraremos mostrar a vinculação do conceito de transcendência à noção de compreensão de ser. Neste sentido, este capítulo pretende-se preparatório para a análise do conceito de jogo que será examinado nos capítulos seguintes. Tendo em vista isso, optamos por subdividir o capítulo em duas seções. Na primeira seção temos por objetivo caracterizar a noção de compreensão de ser. Em um primeiro momento mostraremos que a compreensão de ser tem uma função de abertura, em um segundo momento que o existente humano dispõe de uma compreensão de si mesmo e dos outros existentes humanos, em um terceiro momento que a compreensão de ser subsiste nos comportamentos do Dasein e, desse modo, é a condição de descobrimento dos entes em geral. Por último, mostraremos a relação existente entre compreensão de ser e mundo. Na segunda seção temos como tarefa caracterizar a transcendência do Dasein. Exibiremos o modo como ela condiciona a compreensão e a projeção de ser que ocorre por meio de uma tal compreensão, e, além disso, o modo como ela condiciona a diferença ontológica. 2.1 A compreensão de ser como abertura A explicitação do ser do ente que se caracteriza pela compreensão de ser é a meta buscada pela analítica existencial desenvolvida em Ser e Tempo. Com a análise da existência humana, inicialmente, torna-se explícita a constituição ontológica do ente humano, o ser-no-mundo.

8 Heidegger elabora uma análise minuciosa dessa estrutura fundamental, diferenciando os seus diversos momentos que, embora distintos pela análise, encontram-se estreitamente relacionados. Esses momentos são: o mundo, o ente que sempre está na condição de ser-no-mundo, e o ser-em. Iniciaremos a caracterização da compreensão de ser fazendo breves considerações a respeito do significado do ser-em, pois, dessa maneira, podemos explicitar a abertura que pertence à essência do Dasein. Quando analisarmos a relação entre compreensão de ser e mundo, também faremos breves considerações a respeito do significado fenomenológico de mundo. Heidegger afirma que devemos completar a expressão ser-em dizendo: ser-em um mundo. A expressão ser-em um mundo poderia nos induzir a pensar que há uma relação espacial de inclusão de um ente chamado Dasein a outro chamado mundo, ou seja, poderíamos a partir de tal expressão pensar que o mundo e o Dasein são duas esferas diferentes que entram em uma relação. Porém, a expressão ser-em não pode indicar que um ente (Dasein) está contido em outro (mundo), pois, originariamente em não significa uma relação espacial desta espécie 1. A partir de uma análise etimológica da expressão em, Heidegger constata que ser-em significa ser-junto ao mundo, no sentido de habitá-lo, de morar nele, de estar familiarizado com ele, no sentido de encontrar-se habituado às coisas do mundo 2. Enfim, o que o autor quer ressaltar com a análise do ser-em é, na verdade, o envolvimento do existente humano com o mundo. O existente humano, enquanto ser-em um mundo, é, como sustenta Heidegger, essencialmente ser-junto-a (Sein-bei), ser-com (Mit- 1 ST, 12, p.92 2 Heidegger ressalta que etimologicamente a expressão em é derivada de innan-, morar, habitar, deterse ; e ainda relaciona an com estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo (ST, 12, p.92)

9 sein) os outros e ser-si-mesmo (Selbst-sein). Isso, em outras palavras, significa: o existente humano, enquanto ser-em, está familiarizado consigo mesmo, com os outros existentes e com os entes disponíveis e meramente subsistentes. Esta familiaridade é, como tal, familiaridade com um mundo 3. Na medida em que se encontra familiarizado com o seu mundo, o existente humano permanentemente se comporta (relaciona) consigo mesmo, com os outros existentes humanos e com as coisas e utensílios. Devido ao seu comportamento, o ente que nós mesmos somos sempre descobre a si mesmo e os seus semelhantes, bem como os entes meramente subsistentes e disponíveis. Heidegger sustenta que devido à sua condição de ser-junto ao mundo, o ser humano não necessita sair de sua esfera interior, de sua imanência, para descobrir os entes, mas, ao contrário, enquanto ser-nomundo sempre está fora de si mesmo, isto é, está aberto ao mundo 4. Estaraberto-a significa estar nós mesmos desocultos ou, mais precisamente, significa estar desoculto aquilo que, em cada caso, nós mesmo somos. Esse desocultamento é, como acentua Heidegger, a abertura (Erschlossenheit) que pertence à essência do Dasein. Essa abertura é considerada essencialmente fáctica pois se constitui com o estar-lançado do Dasein, e, é algo completamente diferente do desocultamento ôntico que acontece por meio dos comportamentos que estabelecemos para com os entes com que estamos familiarizados 5. A abertura do Dasein ocorre na medida em que ele está situado em meio a um círculo determinado de entes e, portanto, familiarizado com um 3 PFF, 20, p.359 4 IF, 16, p.139 5 É importante salientar que a abertura que está relacionada ao desocultamento do Dasein não pode ser equiparada à abertura proporcionada pelas três dimensões constitutivas do ser-aí: disposição afetiva, compreensão e discurso.

10 mundo determinado ou, em outras palavras, na medida em que esse ente é essencialmente ser-junto ao mundo. Na abertura, o existente humano determina a sua própria existência e, ao mesmo tempo, descobre os entes em meio aos quais se encontra, e, isso significa que com a abertura e por meio dela, é possível a constituição do ser do Dasein bem como o descobrimento dos entes que vêm ao seu encontro a partir do mundo. Dado que o descobrimento ôntico ocorre devido à abertura do Dasein, então, tal descobrimento, na verdade, não pertence aos entes que são descobertos, mas ao ente que está aberto 6. Ou seja, o descobrimento dos entes com que estabelecemos uma relação diária depende do Dasein. Nesse sentido, o Dasein é considerado algo assim como um Da, um aí. Um aí, significa, um círculo de manifestação (Offenbarkeit), um âmbito de evidência, em relação ao qual os entes podem tornar-se manifestos, isto é, ser descobertos 7. Heidegger considera que o descobrimento ôntico, que ocorre por meio dos comportamentos que o homem estabelece devido a sua abertura, sempre pressupõe um desvelamento de ser. Em outros termos, o existente humano se comporta para com os entes e, assim, descobre-os, mas, tal descobrimento é possível somente porque o Dasein é um ente aberto e porque o seu comportamento está previamente iluminado por uma compreensão do ser do ente. A compreensão de ser, no entanto, não antecede apenas o comportamento dirigido aos entes que fazem parte do mundo do Dasein, mas também antecede o comportamento (relação) que o ser humano estabelece para consigo mesmo, isto é, o comportamento que permite a abertura do Dasein. Nessa direção Lafont afirma o seguinte: 6 IF, 17, p.144 7 Idem, p.147

11 A constatação desta abertura que caracteriza o Dasein (ou que lhe confere sua preeminência diante dos outros entes) resulta compreensível em Ser e Tempo somente sobre o suposto horizonte de que o Dasein já sempre se move em uma compreensão de ser (Seinsverständnis). Esta compreensão de ser que permite ao Dasein levar a cabo a distinção entre ser e ente e, com isso, também dispor de uma relação de ser (Seinsverhältnis) com seu ser, tem por isso uma função de abertura (LAFONT,1997, p.51). Isso sugere que a compreensão de ser que antecede o comportamento do Dasein em relação a si mesmo é o que permite o seu desocultamento entendido como sendo a sua abertura. Em outras palavras, pelo fato de condicionar o comportamento do Dasein para consigo mesmo, à compreensão de ser é atribuída a função de abertura do Dasein. Heidegger sustenta que a compreensão de ser que se apresenta como condição da abertura do Dasein e também do comportamento humano para com os demais entes é, em geral, uma compreensão não explícita, quer dizer, é uma compreensão de ser não articulada conceitualmente. A compreensão não explícita de ser que está dada antes de todo e qualquer comportamento é denominada de compreensão pré-ontológica. A compreensão pré-ontológica de ser pode, como acentua Heidegger, converter-se em uma apreensão explícita de ser, isto é, em uma determinação puramente conceitual. Nesse caso, temos uma compreensão ontológica de ser. Heidegger ainda ressalta que por meio da compreensão pré-ontológica de ser ocorre uma projeção (Entwurf) de ser. Uma tal projeção está dada no comportamento do Dasein para consigo mesmo e para com os outros, assim como no comportamento teórico-científico, no

12 discursivo, e no modo mais básico de relacionamento, o operar com utensílios. Podemos, em suma, dizer que na compreensão pré-ontológica sempre ocorre uma projeção de ser. A compreensão que projeta ser é a condição de possibilidade do comportamento do Dasein para consigo mesmo e, portanto, a condição de sua abertura. Essa compreensão também é condição do comportamento humano para com os entes humanos e para com os entes não humanos, o qual não ocorre ocasionalmente, mas constantemente, enquanto o Dasein facticamente existir 8. A seguir, pretendemos fazer algumas considerações a respeito da compreensão de ser que o existente humano possui acerca de si mesmo e de seus semelhantes e, posteriormente, elucidar a compreensão de ser inerente ao comportamento prático-operativo, enunciativo e teórico-científico. 2.2 Compreensão de si e do outro Heidegger considera que o ser humano existe não devido à sua própria decisão, mas, simplesmente porque foi lançado no mundo. Esse ente, enquanto lançado no mundo, é um ente fáctico preso a determinadas possibilidades fácticas, um ente que não tem o seu ser (existir) definido de antemão e de uma vez por todas, mas está entregue àquilo que é, e, ao mesmo tempo, à tarefa de constituir o próprio ser. Aquilo que, em cada caso, o ente facticamente existente é, determina-se mediante o constante lançamento em possibilidade de ser. Ao lançar-se constantemente em 8 IF, 28, p. 220

13 possibilidades, o existente humano, na verdade, está se ocupando de seu poder-ser-no-mundo, e, isso significa que ele sempre mantém, enquanto existe, uma relação consigo mesmo, com aquilo que é, enfim, com a sua própria existência. Ao existir, porém, o ser humano não apenas ocupa-se de seu poderser, isto é, não apenas se comporta (se relaciona) consigo mesmo, mas também compreende a si mesmo, ou seja, mantém-se sempre numa certa interpretação de seu ser 9. Sendo em uma possibilidade, seja em uma possibilidade escolhida ou em uma possibilidade em que caiu, e já sempre nasceu e cresceu, o homem sempre dispõe de uma compreensão préontológica do próprio ser 10. A compreensão não temática que esse ente dispõe sobre seu ser antecede o comportamento (relação) que ele estabelece para consigo mesmo, ou, em outros termos, o Dasein constantemente ocupa-se de si mesmo, isto é, atualiza possibilidades de ser e, desse modo, desoculta-se, somente porque antes disso possui uma compreensão do seu próprio ser. O desocultamento de si mesmo que acontece justamente porque o existente humano compreende o seu ser é, conforme já indicamos, a abertura do Dasein. Heidegger sustenta que o ser do existente humano é a existência, e, que esta, em sentido formal, nada mais é do que pura possibilidade de ser, conseqüentemente, dizer que o Dasein possui uma compreensão de seu ser significa dizer que ele se compreende como possibilidade de ser, compreende-se como poder-ser. A partir dessa compreensão ocorre uma 9 ST, 5, p. 42 10 É importante ressaltar que o existente humano não apenas move-se em uma compreensão préontológica de seu ser, mas também sempre se move em alguma interpretação variada acerca de seu ser, a qual é formulada historicamente. Essa interpretação corresponde a uma compreensão ontológica do ser do Dasein, e, é elaborada, por exemplo, pela antropologia, pela política, pela ética, pela poesia, etc...(st, 5, p.43-44).

14 projeção de possibilidades de ser. O lançamento em possibilidades acontece precisamente porque previamente está aberto um leque de possibilidades de ser. O existente humano não pode ser todas as possibilidades abertas pela projeção, mas sempre se lança em certas possibilidades, quer dizer, opta por esta ou aquela possibilidade. Quando opta por determinadas possibilidades, ao mesmo tempo, renuncia a possibilidades dadas com a projeção, e isso significa que o existente humano, ao compreender a si mesmo, sempre projeta mais possibilidades do que as que, de fato, atualiza. A compreensão que projeta possibilidades de ser, é, como tal, a condição de possibilidade do comportamento do Dasein para consigo mesmo, em outras palavras, permite ao existente humano ocupar-se de si mesmo, de seu próprio ser. É a partir dessa compreensão e graças a ela que o existente humano pode ser aquilo que, em cada caso, ele é, ou seja, pode constituir sua existência (ser). Heidegger diz que se não acontecesse esta compreensão de ser, o homem, por muitas faculdades excepcionais que possui, jamais poderia ser o ente que é. O homem é um ente que está em meio aos entes, de tal maneira que sempre lhe foi evidente o ente que ele não é e o ente que ele mesmo é. Chamamos a esta forma de ser do homem: existência. A existência não é possível senão sobre a base da compreensão de ser 11. Isso, na verdade, revela a dependência existente entre o ser do Dasein e compreensão de ser. Somente se há compreensão do ser dá-se ser. A compreensão que determina nosso ser, isto é, o saber que temos a respeito do nosso próprio ser não resulta, como indica Heidegger, 11 KPM, 41, p.189

15 de uma reflexão ou percepção imanente de nós mesmos 12. Ele diz que o ente facticamente existente compreende a si mesmo, mais exatamente, compreende-se como possibilidade de ser, na maioria das vezes, a partir dos entes que cotidianamente o circundam, quer dizer, compreende o seu próprio ser a partir dos entes que ele mesmo não é, os quais lhe surgem a partir do mundo. Mas, o existente humano também pode compreender a si mesmo a partir de seu mais próprio poder-ser. Quando esse ente compreende-se não a partir de seu mais próprio poder-ser, mas a partir das coisas de que cotidianamente se ocupa está, na verdade, compreendendo-se impropriamente. A compreensão de si imprópria não significa uma compreensão inautêntica, isto é, um modo incorreto do ser humano compreender o próprio ser, ao contrário, é considerado um modo cotidiano e adequado de apreensão de si mesmo 13. Além de compreender o seu próprio ser, o existente humano também compreende o ser dos outros entes humanos, os quais lhe vêm ao encontro naquilo que são e, justamente, quando ele se ocupa com os entes intramundanos. Os outros não são, conforme Heidegger, todo o resto dos demais além de mim, do qual eu me isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se está 14. Isso quer dizer que os outros que vêm ao encontro não são entes disponíveis nem simplesmente presentes, mas possuem o modo de ser do Dasein. Além disso, isso nos revela que o existente humano não se encontra isolado, mas, ao contrário, o seu modo de existir é essencialmente ser-com (Mitsein) os outros. 12 PFF, 15, p.201 13 Idem, p.202-203 14 ST, 26, p.169

16 O existente humano, enquanto ser-com, necessariamente se comporta para com seus semelhantes. A compreensão do ser do outro sempre antecede o comportamento que o existente humano estabelece para com o tu. Se, enquanto ser-com, o existente humano estabelece um comportamento para com um outro Dasein, então, na verdade, ele se relaciona com um ente que possui o mesmo modo de ser. Nesse sentido, compreender o ser do tu significa, basicamente, compreender o ser do eu, ou seja, significa compreender que o ser do outro, assim como o meu próprio ser, é possibilidade de ser. Na compreensão do ser do outro se dá uma projeção de ser, e o encontro com o outro sempre acontece à base da projeção feita pelo Dasein. 2.3 A compreensão de ser e o comportamento com os entes intramundanos Além de possuir uma compreensão pré-ontológica a respeito de seu ser e do ser dos outros entes humanos, o existente humano também possui uma compreensão do ser dos entes com que estabelece uma relação diária. Enquanto existe, o homem sempre está, devido à facticidade, em um mundo determinado e junto a um âmbito determinado de entes, ou, em outras palavras, na medida em que existe como ser-no-mundo sempre já está familiarizado com os entes pertencentes ao mundo. O fáctico ser-nomundo sempre se comporta de uma forma ou de outra com os entes que lhe vêm ao encontro a partir do mundo. Na verdade, o existente humano não pode fugir disso, quer dizer, não pode existir sem se comportar para com os entes que o cercam.

17 Os entes com que o existente humano sempre se comporta são entes que possuem o seu mesmo modo de ser ou entes que não possuem o seu modo de ser, quer dizer, em sua cotidianidade mediana, o existente humano constantemente convive com outros existentes humanos, e, além disso, está junto a entes disponíveis (Zuhandenheit) e entes meramente subsistentes (Vorhandenheit). O comportamento que o ente facticamente existente sustenta em relação aos entes pertencentes ao mundo pode ser, por exemplo, prático-operativo ou teórico-científico ou discursivo. Em todo o comportamento a respeito do ente intramundano sempre encontramos subjacente uma compreensão do ser do ente. A seguir, procuraremos caracterizar os três comportamentos acima referidos com o intuito de mostrar a presença da compreensão de ser. Iniciaremos falando do comportamento discursivo, posteriormente falaremos do comportamento prático-operativo e, por fim, do comportamento teórico-científico. 2.3.1 O comportamento discursivo Heidegger concebe, em particular os enunciados predicativos, como sendo um modo de agir do existente humano, ou, mais precisamente, como sendo um comportamento humano que tem a finalidade exibir o ente referido tal como ele é em si mesmo, quer dizer, tem a finalidade de descobrir o ente ao qual ele se refere (REIS,1998, p.9). Esse comportamento (o discursivo-predicativo) sempre acontece, conforme Heidegger, na base de uma compreensão de ser, ou seja, quem enuncia uma proposição enunciativa se comporta a respeito do ente e o compreende

18 em seu ser, já antes da proposição 15. Compreender previamente o ser do ente que funciona como objeto do enunciado significa, como ressalta Heidegger, compreender o modo de ser do ente de que se fala e, acrescenta ele, a compreensão de ser daquilo do que se fala é justamente aquilo que se expressa mediante a proposição enunciativa 16. O ente que funciona como referência do discurso-predicativo mostra-se como algo simplesmente presente, mais exatamente, como um ente meramente subsistente. O modo de ser de tal ente é, então, concebido como sendo a subsistência (Vorhandenheit). Nesse sentido, dizer que no enunciar predicativo temos previamente compreendido o ser do ente de que falamos significa dizer que antes desse tipo de enunciado possuímos uma compreensão não explícita da subsistência do ente. Ter uma compreensão da subsistência do ente subsistente significa realizar uma projeção de ser. A projeção do ser do ente que funciona como referência de um enunciado predicativo é completamente diferente da projeção primitiva que é própria do lidar operativo com os entes (REIS,1998, p.9). A projeção de ser presente no discurso-predicativo nada mais é do que a visualização de que o ente que possui o modo da subsistência é, na verdade, um ente dotado de propriedades. É precisamente porque compreende de antemão algo assim como a subsistência do ente, ou, mais exatamente, é somente porque é projetado o ser do ente que o existente humano pode afirmar ou predicar algo de algo, e, assim, mostrar o ente tal como ele é em si mesmo, isto é, expressar as propriedades subsistentes do ente subsistente. A compreensão do ser do ente que funciona como referência do enunciado é, 15 PFF, 17, p.259 16 Idem

19 então, a condição de possibilidade do comportamento discursivopredicativo e do descobrimento que esse comportamento é capaz 17. No discurso cotidiano, as sentenças da linguagem, não apenas sempre possuem uma estrutura predicativa. Heidegger, com o intuito de mostrar que a compreensão de ser também subsiste nos enunciados que não possuem o caráter predicativo, apresenta um exemplo. Ele diz que se alguém grita, por exemplo, fogo!, ao ouvir esse grito imediatamente nos comportamos de uma determinada maneira: ou prestamos socorro ou nos colocamos a salvo. Antes de agir desse modo, no entanto, temos uma compreensão do nosso próprio ser. É a partir da compreensão de si mesmo, isto é, daquilo que é, que o Dasein se comporta deste ou daquele modo. Nessa situação também compreendemos, segundo Heidegger, o ser do ente que funciona como referência do enunciado. Ao escutar o grito fogo!, então, manifestamos uma compreensão não explícita do ser de uma coisa que é meramente subsistente além de uma compreensão a respeito do nosso ser 18. O fato é que não manifestamos uma compreensão de ser somente quando enunciamos, seja predicativamente ou não, algo sobre os entes, senão que, como sustenta Heidegger, é isso o que entendemos também quando não nos expressamos, senão que caladamente, em silêncio, nos comportamos a respeito de algo 19. Com isso ele sugere que uma compreensão pré-ontológica de ser não está presente somente no 17 É importante destacar que há uma discussão em torno da compreensão de ser que é condição de possibilidade do enunciado e a multiplicidade de significados vinculados ao verbo ser. A tese heideggeriana é que há uma indiferenciação dos significados do termo ser no discurso enunciativo, mas essa indiferenciação na forma lingüistica não representa um defeito ou um problema porque na compreensão de ser que condiciona o enunciado sempre já está fixada a diferenciação do significado do termo ser (REIS, 1998, p.15-17). Essa tese, porém, não será tematizada aqui. 18 IF, 26, p. 204 19 IF, 26, p. 204

20 comportamento discursivo para com os entes, mas também em outros comportamentos do Dasein. 2.3.2 O comportamento prático-operativo Heidegger considera que os entes que vêm ao encontro do Dasein a partir do mundo mostram-se, primeiramente, não com entes meramente subsistentes, mas como entes que possuem esta ou aquela utilidade. Em razão disso, o modo mais básico e primordial de relacionamento (comportamento) para com os entes é considerado como sendo a ocupação, o lidar operativo 20. Esse comportamento cotidiano é um modo peculiar de descobrir os entes e, assim como o comportamento discursivo, ocorre à base da compreensão de ser. Porém, a compreensão de ser que condiciona o lidar operativo é distinta daquela compreensão que condiciona o comportamento discursivo. Os entes que, de imediato e na maioria das vezes, se apresentam em nossa cotidianidade como algo que serve para algo são denominados instrumentos ou utensílios. Esses entes descobertos mediante o lidar operativo são considerados como sendo essencialmente algo para (Umzu). Precisamente por isso os utensílios são considerados entes que sempre dispomos para um certo fim, entes que possuem o caráter de serventia em nossa lida diária. Enquanto algo para, os entes disponíveis nunca se manifestam de maneira isolada, mas sempre estão remetidos a outros 20 Ao considerar como modo mais básico e primordial o comportamento prático para com entes, Heidegger não considera, assim como o fez a tradição filosófica, o comportamento teórico contemplativo como o modo primordial da existência apresentar-se no mundo.

21 instrumentos. É dentro de uma totalidade utensiliar que cada instrumento se mostra como efetivamente é, mais exatamente, os entes instrumentais sempre manifestam a sua especificidade quando relacionados a outros utensílios 21. Heidegger sustenta que toda vez que o existente humano lida com esse tipo de ente tem previamente compreendido o ser desse ente. Ou seja, lidamos, por exemplo, com uma faca somente porque de antemão entendemos a natureza de tal ente. O autor nos revela que o que com toda razão chamamos faca nunca poderíamos conhecê-la como uma faca e nunca poderíamos utilizá-la como uma faca, isto é, como uma coisa para cortar, se não entendêssemos algo assim como uma coisa-para, um utensílio para cortar 22. Isso significa que sabemos lidar com os entes disponíveis somente porque antecipamos o para que, em outros termos, lidamos diariamente com os instrumentos porque possuímos uma compreensão pré-ontológica da disponibilidade (Zuhandenheit) de tais entes. Heidegger ressalta que ter uma compreensão prévia da disponibilidade significa projetar o utensílio sobre o seu caráter funcional, isto é, dar-lhe uma função 23. A compreensão pré-ontológica de ser que o ser humano possui a respeito do ente com que lida diariamente, é, portanto, distinta da compreensão de ser que possui a respeito do ente sobre o qual o enunciado se refere, isto é, da compreensão que é a condição de possibilidade do comportamento discursivo. O ente que funciona como referência do comportamento enunciativo não é apreendido como ente disponível, mas 21 Para uma compreensão mais detalhada sobre esse tópico é importante examinar o 15 de Ser e Tempo onde Heidegger determina o modo de ser do utensílio. 22 IF, 26, p.205 23 PFF, 20, p.350

22 como ente meramente subsistente, como coisa portadora de determinações. Então, para que ocorra esse comportamento é necessário estar previamente compreendida a subsistência (Vorhandenheit) do ente. Já o lidar operativo tem como referência os entes que possuem esta ou aquela utilidade e, por isso, exige uma compreensão prévia da disponibilidade (Zuhandenheit) do ente. 2.3.3 O comportamento teórico-científico Não é somente através do discurso enunciativo e do lidar operativo que o existente humano estabelece uma relação para com os entes que lhe vêm ao encontro dentro do mundo, mas também através de um comportamento teórico-científico. Esse comportamento acontece, como indica Heidegger, na medida em que o ente aparece para nós não como algo disponível para isso ou aquilo, mas como um corpo material existente no sentido tradicional de um estar-presente-aí-adiante, aparece como ente no sentido de natureza física 24. Ou seja, o comportamento científico tem como objeto de investigação um ente que possui o modo de ser da Vorhandenheit e não um ente que possui o modo de ser da Zuhandenheit. Heidegger sustenta que o comportamento científico sempre pressupõe uma determinação do que é e de como é o ente, quer dizer, pressupõe uma determinação do ser do ente que funciona como sua referência. Na verdade, isso indica que o comportamento científico sempre 24 IF, 25, p. 197

23 acontece na base de uma compreensão do ser do ente que é convertido em objeto de investigação 25. Dado que o ente de uma investigação científica é algo meramente subsistente, então, ter uma compreensão de ser significa compreender o ente como sendo do modo da subsistência (Vorhandenheit) e realizar uma projeção disso. A projeção de ser é entendida como sendo a determinação conceitual sobre o que é o ente que possui o modo de ser da Vorhandenheit, ou seja, é a instauração dos conceitos fundamentais que revelam o como (modo de ser) e, ao mesmo tempo, o o que (qüididade) do ente que funciona como objeto de uma investigação científica. Com a determinação prévia do ser, isto é, com a delimitação de conceitos fundamentais que explicitam a constituição ontológica do ente, dá-se a delimitação das diferentes regiões ônticas que são investigadas pelas ciências particulares. Portanto, com a projeção não somente se determina de antemão e de outra forma o ser do ente, senão que nessa projeção e com essa projeção de ser se delimita um campo do ente 26. A projeção de ser assim entendida deve, então, ser considerada a condição de possibilidade de cada ciência particular. O comportamento científico dado em cada ciência particular é, em ultima instância, possibilitado pelo projeto de ser que acontece na compreensão de ser, e que discrimina os pressupostos ontológicos que delimitam o âmbito que cada ciência investiga (REIS, 1999, p.270). Heidegger acrescenta que é somente com a projeção prévia da constituição do ser que o ente se manifesta como o pólo de uma possível 25 É importante salientar que para ilustrar esse tópico, Heidegger recorre a um exemplo, a saber, o surgimento da Física matemática moderna tal como foi fundada por Galileu. Ele acredita que a Física Matemática é uma ciência autêntica não pelo fato de ter como método a indução, nem pelo fato de realizar experimentos, mas porque nela há uma projeção expressa da constituição ontológica do ente que ela converte em objeto de investigação.(if, 26, p. 199-201) 26 IF, 26, p.208

24 investigação científica. Nesse sentido, podemos dizer que a projeção que acontece devido à compreensão de ser é o fundamento do comportamento teórico-científico não apenas porque delimita uma região do ente, mas também pelo fato de possibilitar o aparecimento do ente como positum. Assim sendo, ela é aquilo que fundamenta todo o conhecimento científico e, precisamente por isso, é considerada a protoação da ciência. Essa projeção é, como acentua Heidegger, uma espécie de compreensão expressa de ser, mas não implica que, por isso, ela seja reconhecida ou entendida como tal 27. Com essa caracterização do comportamento teórico-científico finalizamos, então, a caracterização da relação da compreensão de ser com os distintos comportamentos do Dasein. Nessa exposição destacamos que quando se comporta a respeito dos entes que fazem parte do mundo, o existente humano move-se em uma compreensão de ser. Quando ele se ocupa dos entes disponíveis e enuncia algo sobre os entes meramente subsistentes, manifesta uma compreensão pré-ontológica de ser, mas ao investigar cientificamente os entes puramente subsistentes manifesta previamente uma compreensão expressa de ser. Esclarecemos, ainda, que uma compreensão pré-ontológica de ser precede o comportamento do Dasein para consigo mesmo, bem como o comportamento desse ente para com os outros existentes humanos. Considerando tudo isso podemos concluir que pelo fato de que possuímos uma compreensão de ser não apenas entendemos algo assim como o ser, senão que essa compreensão de ser, isto é, esse entender o ser (essa compreensão de ser, em alemão: Seinsverständnis) é tal que 27 IF, 27, p.215

25 vai adiante, antecede a experiência do ente. (...). E vai adiante de modo que, por assim dizer, só na claridade que assim se produz, isto é, só na claridade que se produz porque essa compreensão de ser (porque esse entender o ser, esse Seins-verständnis) atua como uma luz que nos precede, podemos encontrar o ente 28. A compreensão de ser que o existente humano manifesta antes de se comportar para com os entes (o ente que ele mesmo é e os demais entes) condiciona, então, a experiência do ente como ente e, por conseguinte, todo e qualquer conhecimento ôntico. Em outras palavras podemos dizer: o nosso acesso aos entes só nos é possível porque o Dasein compreende o ser e não porque temos um outro fundamento para o conhecimento dos entes (STEIN, 2000, p.39). 2.4 A compreensão de ser e o mundo A compreensão de ser que previamente ilumina e orienta todo e qualquer comportamento para com os entes e, conseqüentemente, permite o acesso aos entes, ocorre, basicamente, por ser própria do existente humano a condição de ser em um mundo. Isso indica que a possibilidade da compreensão de ser está relacionada com o mundo. O mundo, na acepção heideggeriana, não é, como já mencionamos, um ente justaposto a outro chamado Dasein nem uma totalidade de entes subsistentes. Sendo assim, podemos perguntar como, então, temos que compreender o mundo. Para obtermos uma resposta, devemos nos voltar para a análise que Heidegger 28 IF, 26, p.204

26 faz de um tipo específico de ente, a saber, daqueles entes que primeiro vêm ao nosso encontro, pois é através disso que ele introduz inicialmente o significado do conceito de mundo. Conforme Heidegger, os entes que em nossa cotidianidade mediana primeiro vêm ao nosso encontro são entes instrumentais. Esse tipo de ente nunca se apresenta isoladamente, mas, ao contrário, sempre se manifesta associado a outros entes que possuem o mesmo modo de ser, isso significa: um ente instrumental sempre está relacionado a um conjunto de outros entes instrumentais, ou ainda, ele pertence a uma totalidade instrumental. Os entes que assim se apresentam são essencialmente algo para, isto é, são entes que servem para algo, entes que possuem uma serventia. Aquilo para que serve um determinado utensílio, ou seja, a função específica de um instrumento revela aquilo que ele é. Isso, na verdade, sempre está determinado de acordo com a totalidade instrumental na qual o instrumento está inserido ou, em outras palavras, um instrumento sempre manifesta o que é, a sua finalidade específica em pertinência a outros entes instrumentais. Heidegger, no entanto, não ressalta apenas que um instrumento sempre está inserido em uma totalidade instrumental e que ele apenas é enquanto relacionado a tal totalidade, mas também que um instrumento sempre está preso a uma totalidade de remissão. Cada ente instrumental, enquanto algo para, possui um para que (Wozu), mais precisamente, está referido ou conformado a algo. Em sua serventia, o instrumento sempre se conforma àquilo que lhe é próprio, a sua função específica, em outras palavras, ao mostrar a sua especificidade, o instrumento está remetido ao para que de sua serventia. Um ente instrumental (por exemplo, o martelo)

27 quando se conforma a algo (ao martelar) sempre está relacionado a um outro instrumento (por exemplo, ao prego) que, por sua vez, também está conformado a algo (ao pregar). Esse instrumento (o prego), novamente, remete-se a um outro (por exemplo, a madeira) que também possui uma conformidade (produzir algo) e assim sucessivamente. Nesse sentido, podemos dizer que um ente instrumental não apenas está relacionado a outros instrumentos, ou melhor, está inserido em uma totalidade instrumental, mas também se encontra remetido a uma rede de remissões, ou ainda, está inserido em uma totalidade remissiva. É dentro de uma totalidade de instrumentos que um dado instrumento é o que é, mas, se tal totalidade é permeada por uma rede de remissões, então, quando os entes instrumentais se mostram como são sempre já está dada uma totalidade de remissão. Ou seja, é relacionado a um todo de instrumentos e remissões que o instrumento se mostra em sua serventia específica. Além disso, Heidegger acentua o fato de que uma rede de remissões, mesmo se ramificando extensamente, remonta, em última instância, a um para que que não mais se conforma a algo, isto é, a um para que que não possui nenhuma outra finalidade. Este para que, na verdade, pode ser compreendido como um em virtude de que (Worumwillen) faz-se tudo (GARCIA, 1987, p.99). Para mostrar o que é aquilo em função do que fazemos tudo citaremos um exemplo apresentado por Heidegger. Ele afirma que aquilo junto a que possui uma conformidade é o para quê (Wozu) da serventia, o em quê (Wofür) da possibilidade de emprego. Com o para que da serventia pode-se dar, novamente, uma conformidade própria; por exemplo, junto com este ente disponível que chamamos, por isso mesmo, de

28 martelo, há uma conformidade em martelar; com o martelar, há uma conformidade em pregar algo em algo, no pregar algo, há a conformidade na proteção contra o mau tempo; e esta proteção é em função do abrigo para o existente humano, ou seja, em função de uma possibilidade do ser do existente humano 29. Esse exemplo revela-nos que um todo remissivo se finaliza no existente humano, ou melhor, que uma rede de remissões tem por finalidade ou está em função da própria existência, de uma possibilidade de ser. Heidegger, ao visualizar isso, anuncia que o mundo com que sempre já estamos familiarizados, o qual nada mais é do que o âmbito no qual vive o existente humano, deve ser compreendido como a totalidade de remissões finalizadas. Em outras palavras, podemos dizer que o mundo significa, como expressa Garcia, a totalidade de remissões conectadas, intrinsecamente referidas ao Dasein e às quais este ente permanentemente se refere (1987, p.99). O mundo assim entendido é o contexto em que se efetiva a existência, é o contexto no qual os outros existentes humanos, bem como os entes disponíveis e meramente subsistentes, vêm ao nosso encontro. Ele é a perspectiva já sempre dada dentro da qual o existente humano compreende o seu próprio ser, o ser dos outros existentes humanos e o ser dos entes que se apresentam como instrumentos ou como meras coisas. Com essa caracterização, então, clarificamos a relação existente entre a compreensão que pertence à essência do ente que nós mesmos somos e o mundo, e, dessa maneira, destacamos o significado de mundo que, como ainda veremos, não se refere ao conceito de jogo. Pretendemos, em seguida, caracterizar esse conceito e também apresentar o significado 29 ST, 18, P. 128