Entre o apofântico e o hermenêutico: notas sobre a dupla estrutura da linguagem em Ser e tempo de Heidegger
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- Arthur Garrido Correia
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1 Entre o apofântico e o hermenêutico: notas sobre a dupla estrutura da linguagem em Ser e tempo de Heidegger Carine de Oliveira 1 Resumo: Na tentativa de desligar a linguagem dos conceitos a partir dos quais foi interpretada, no decorrer da história da filosofia, Martin Heidegger busca realizar uma discussão em que a proveniência ontológico-existencial dessa estrutura não seja encoberta. Embora a linguagem, em Ser e Tempo, apareça vinculada ao enunciado proposicional, ela não se reduz às explicações lógico-gramaticais, pois Heidegger remete o assunto ao nível do a priori, à instância hermenêutica de realização da compreensão e do sentido. A importância de uma noção de linguagem, tal como se desdobra em Ser e Tempo, está em que não se trata de preterir seu caráter apofântico, mas de reconhecer o horizonte hermenêutico no qual já estamos sempre situados e que, por essa razão, já sempre constitui a estrutura da linguagem. Nessa perspectiva, instaurada pela fenomenologia -hermenêutica, o ser humano passa a ser pensado como um acontecimento compreensivo interpretativo que já não pode falar das coisas, dos objetos, em nível enunciativo-apofântico, sem falar de si mesmo, desde um mundo histórico e cultural, envolvido com tudo o que lhe rodeia e afeta. Palavras-chave: Heidegger. Nível apofântico. Nível hermenêutico. Linguagem. Considerações iniciais A história da filosofia é, segundo Heidegger, a história do esquecimento do ser e se a pergunta pelo sentido do ser, diante dessa problemática, deve ser novamente colocada, então, tal tarefa não deixa de pressupor, ao mesmo tempo, um questionar pelo ser da linguagem (Sprache). Em direção à superação das abordagens metafísicas, é preciso perguntar pelas coisas mesmas para que também a linguagem possa se mostrar tal como é em si mesma, pois se trata de recuperar seus fundamentos ontológicos. Nesse sentido, a discussão heideggeriana sobre a linguagem concentra, como pano de fundo, um veemente debate com os pensadores da tradição, que traz como resposta uma tematização que, em partes, realiza-se através da operação fenomenológica da destruição (Destruktion). Entendida enquanto um processo crítico em que o arcabouço conceitual da tradição é reavaliado, a destruição é a possibilidade de reconstrução dos conceitos herdados em bases mais originárias. Ao serem transmitidas, as conceituações estão sempre sujeitas a encobrimentos que, petrificados no devir histórico, impedem que algo se mostre como 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). cari.oliv@yahoo.com.br. Fone: (55)
2 fenômeno tal como é em si mesmo. O desenvolvimento da fenomenologia, enquanto um questionar metodológico que interroga pelo sentido do ser, suscita o desmantelamento de tais encobrimentos conceituais. Também no que tange à linguagem, esse desmantelamento destrutivo se faz necessário, pois as aporias e enganos a que a problemática ontológica tradicional sobre o ser se vê envolvida, de modo geral, fundam-se na dimensão da linguagem. Heidegger busca, então, superar a tradição e realizar uma abordagem da linguagem em que sua proveniência ontológico-existencial não seja encoberta, pois os encobrimentos conceituais a que esteve associada, no decorrer da história, exigem que a problemática seja colocada em bases mais originárias. Frente a isso, é que ganha corpo a operação fenomenológica da construção que corresponde ao desenvolvimento de um programa fundacional, em relação à linguagem, que se desenvolve em consonância com a tematização ontológico-existencial que Heidegger elabora 2. Nesse sentido é que Heidegger, de certo modo, recupera a noção de logos predominante entre os gregos em que este significa, primeiramente, relação com o ser, o expor e mostrar o ente, do qual se expressa algo linguisticamente, em suas origens e fundamentos 3. Assim sendo, o autor retrocede o assunto ao nível do a priori, ou seja, a um nível antepredicativo de realização da compreensão e do sentido que não se opõe ao universo lógico-semântico. Antes, busca reconhecer um domínio que diz respeito ao horizonte hermenêutico, no qual já estamos sempre situados e que já sempre supomos ao falar das coisas, dos objetos no nível apofântico. Desse modo, procurarei apresentar, neste texto, a linguagem a partir dos dois níveis ou, em outras palavras, a partir da dupla estrutura hermenêutico-apofântica que lhe constitui. 1 A dupla estrutura da linguagem em Ser e tempo No contexto da análise da mundanidade do mundo, em Ser e tempo, ao falar da significância (Bedeutsamkeit), Heidegger fornece as primeiras indicações que nos permitem iniciar, de modo mais preciso, a discussão acerca da linguagem. A significância vem à tona como estrutura formal da mundanidade do mundo. Com o propósito de elucidar como se constitui a mundanidade (Weltlichkeit), o filósofo apresenta o mundo circundante como ponto de partida de sua investigação. É no mundo circundante, sempre em alguma ocupação específica e enquanto instrumentos (Zeug) dotados de disponibilidade (Zuhandenheit), que os 2 Cf. REIS, R. R. dos. Observações sobre o papel da linguagem na fenomenologia-hermenêutica de Ser e Tempo. In: Problemata, João Pessoa, v. 1, n.1, pp , Cf. BAY, T. A. El lenguaje en el primer Heidegger. México: Fondo de Cultura Econômica, p. 19.
3 entes intramundanos tornam-se acessíveis ao Dasein. O modo de ser do instrumento à mão (disponível) é, intrinsecamente, referencial, ou seja, estabelece-se numa intermitente referência (Verweisung) a outros instrumentos. Portanto, o instrumento aparece em seu estar disponível à mão, pois tem em si mesmo o caráter de estar referido a 4. Todavia, ser constituído por referências não é suficiente para que estes entes, de fato, estejam acessíveis. Necessário é que as referências que o constituem se encontrem em conformidade (Bewandtnis). A conformidade indica a remissão do instrumento ao ser do Dasein e libera os entes em sua disponibilidade intramundana ligando-os a uma totalidade relacional/referencial. O compreender, por sua vez, abre o contexto em que (Worin) ocorre a liberação dos entes. O fenômeno do mundo é o em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar o ente no modo de ser da [conformidade]. A estrutura da perspectiva em que [o Dasein] se refere constitui a mundanidade do mundo 5. Desse modo, a compreensão de mundo realiza-se através de uma referência de si, por parte do existente humano, ao contexto das relações referenciais constitutivas da circunstância conformativa. Nessa familiaridade com o contexto referencial 6 é que vem à tona o caráter de significar do Dasein. Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de significar (Bedeuten) 7, que constitui o mundo em sua mundanidade. Assim, o mundo não é dado, previamente, como uma série de coisas com as quais o Dasein se relacionaria, posteriormente, atribuindo significados. As coisas, os entes são descobertos e se apresentam dotados de significados, inseridos em uma totalidade significativa que o existente humano já sempre dispõe. Essa totalidade de significados com a qual o Dasein, enquanto ser-no-mundo, já sempre está originariamente familiarizado, guarda em si uma fundamental possibilidade ontológica: a condição ontológica de possibilidade [do Dasein] em seus movimentos de compreender e interpretar, poder abrir significados, que, por sua vez, fundam a possibilidade da palavra e da linguagem 8. 4 Francisco, p Francisco, p As referências e nexos referenciais são primordialmente significação. Cf. Heidegger, M. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, Francisco, p Francisco, p. 138.
4 A investigação do processo através do qual a significância chega à linguagem implica a tematização da noção de abertura (Erschlossenheit), pois é através da realização de seus existenciais constitutivos que tal possibilidade se efetiva. Assim, é na abertura, enquanto o aí do Dasein, que a linguagem tem suas raízes possíveis. Disposição afetiva (Befindlichkeit), compreender (Verstehen) e discurso (Rede), numa cooriginariedade (Gleichursprünglichkeit) 9 existenciária, constituem a abertura do Dasein enquanto ser-nomundo. Enquanto existencial constitutivo da abertura, a disposição afetiva representa o indício ontológico daquilo que, cotidianamente e de modo familiar, manifesta-se onticamente, ao Dasein, na forma de um humor (Stimmung). O existente humano, nas mais variadas experiências cotidianas, encontra-se sempre afinado com algum humor específico. E é neste estar afinado com algum humor que se dá a abertura do ser-lançado do Dasein em seu aí, a experiência do fato de que ele é, ou seja, a facticidade da responsabilidade em relação ao seu próprio existir. Juntamente, com a abertura do ser-lançado, a disposição abre também o serno-mundo (In-der-Welt-sein) em sua totalidade, isto é, o mundo em seu caráter de mundanidade, a existência e a coexistência. Além da disposição, o compreender igualmente é um existencial constitutivo da abertura. Enquanto a disposição abre, em seu teor afetivo, a ligação existente entre Dasein e mundo em seu caráter de significância, isto é, como mundanidade, o compreender apreende as possibilidades dessa ligação. Tais possibilidades existenciais são assumidas na estrutura projetiva que caracteriza a existência compreensiva. Compreensão e projeto (Entwurf) realizam-se, portanto, em um movimento único. O Dasein já sempre se encontra projetando na medida em que é um compreender. E o que projeta o Dasein é o poder-ser implícito em todo compreender. Assim, através de sua estrutura projetiva, o compreender lança o poderser, enquanto possibilidade própria, ao seu ser, abrindo a totalidade de significações da mundanidade do mundo. Enquanto abertura, o compreender sempre alcança toda a constituição fundamental do ser-no-mundo. Como poder-ser, o ser-em é sempre um poder ser-no-mundo. Este não apenas se abre como mundo, no sentido da possível significância, mas a liberação de tudo que é intramundano libera esse ente para suas possibilidades O caráter de cooriginariedade permite-nos perceber a relação entre tais existenciais não segundo uma hierarquia, mas a partir da interdependência mútua que os caracteriza. 10 Francisco, p. 205.
5 As possibilidades abertas pelo compreender, todavia, necessitam de uma explicitação. Com esse termo, Heidegger indica aquilo que pertence à estrutura da interpretação (Auslegung). A interpretação é o próprio compreender desenvolvendo-se enquanto se apropria das possibilidades projetadas, explicitando-as. Na projeção compreensiva, os entes são abertos em suas possibilidades. A interpretação explicita, justamente, as possibilidades destes entes em sua estrutura como (Als Struktur). Portanto, a explicitação interpretativa diz respeito à dinâmica de possibilitação da manifestação ôntica, ou seja, de que o ente venha ser percebido como algo com uma identidade determinada. Todo ver compreensivo interpretativo descobre o ente naquilo que ele é e como ele é, antes de qualquer exposição enunciativa, pois traz em si as relações referenciais constitutivas da totalidade em conformidade já explicitada. Assim, ao ver as coisas como isto ou como aquilo, já estamos sempre em um processo explicitativo da compreensão. Interpretar é, portanto, explicitar a estrutura como, o sentido enquanto perspectiva em que algo é compreendido como algo determinado. Desse modo, do como hermenêutico, tem origem a projeção de sentido enquanto uma espécie de justificação da compreensão do ser, dado incontornável do qual o existente humano tem sempre que partir. Em outros termos, a projeção de sentido é a legitimação do todo de relações de conformidade constitutivas do mundo e condição de possibilidade do desvelamento ôntico. No entanto, para Heidegger, toda compreensão encontra-se previamente articulada mesmo antes do processo interpretativo explicitativo das possibilidades compreensivas. Nas discussões acerca da interpretação, o autor fala que através da função explicitativaarticuladora desse existencial vem à tona o sentido. No entanto, de modo mais originário que na interpretação, o sentido é articulado discursivamente. Chamamos de totalidade significativa aquilo que, como tal, se estrutura na articulação [do discurso] 11. Por ser articulação significante da compreensibilidade, o discurso já está sempre à base da interpretação e do enunciado 12. Fica claro, portanto, que a compreensão e realização do sentido acontecem num domínio antepredicativo. Porém, se o discurso não fosse capaz de configurar articuladamente a relacionalidade a partir da qual o compreender se decide, ele estaria, em princípio, impossibilitado de se efetivar como condição do sentido, do mostrar-se em geral dos entes. 11 Francisco, p Cf. HEIDEGGER, M. Ser y tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera C. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2009.
6 Em sua função apriorística, o discurso é, justamente, o fundamento ontológicoexistencial que opera como possibilidade de que o Dasein no seu existir fático possua a linguagem. A linguagem, por conseguinte, é o pronunciamento exteriorizado (Hinausgesprochenheit) do discurso e manifesta-se onticamente enquanto uma totalidade de palavras cuja origem mais remota, conforme já foi referido, é a significância. Dos significados surgem as palavras, mas para que cheguem ao nível da expressão linguística é necessária a realização prévia dos existenciais da abertura descrita acima. É no movimento compreensivointerpretativo que a significância é aberta e, consequentemente, articulada pelo discurso. É nesse sentido que o conjunto referencial, ou seja, o todo significativo constitutivo da compreensibilidade disposta afetivamente, através da função articuladora do discurso, manifesta-se, portanto, como linguagem. Se a linguagem enquanto um todo de palavras não pudesse, em princípio, dispor do discurso enquanto seu fundamento, estaria fadada a ser uma multiplicidade desconexa de palavras, com a qual o Dasein nem ao menos saberia o que fazer em seu existir comunicativo com o outro. O entendimento com o outro, na convivência cotidiana, necessita da elaboração discursiva, pois já se dá sempre a partir da totalidade significativa constitutiva do mundo. O discurso expõe e interpreta, isto é, faz que ressaltem na comunicação, de modo estruturado, as relações referenciais da significância 13. A interpretação do mundo e do Dasein como ser-no-mundo encontra-se inserida na significação da palavra, na linguagem, e pode, desse modo, ser compartilhada com o outro. A linguagem expressa a trama significativa da compreensibilidade articulada pelo discurso. Expressa a exterioridade na qual o Dasein já sempre se encontra enquanto ser-nomundo que é. Nesse expressar-se enquanto discurso falado, os estados de ânimo, em que o Dasein já sempre se encontra, estão presentes. Além disso, em toda expressão linguística, uma compreensão interpretativamente explicitada está também inserida. Ou seja, o que Heidegger, ao buscar desligar a estrutura linguagem dos domínios exclusivos da lógica e da gramática, quer mostrar é que já há sempre um universo hermenêutico suposto que constitui tal estrutura, porque constitui o ser-humano mesmo, como dizia Aristóteles, enquanto um zoon logon exon, um ser vivo que sabe discursar 14. É o universo ou âmbito hermenêutico originário que nos rodeia e no qual a linguagem encontra suas raízes mais remotas. Todavia, em Ser e tempo, é na discussão concedida ao enunciado, especificamente em seu caráter comunicativo que aparece a questão da linguagem. Enquanto comunicação de 13 HEIDEGGER, M. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, p HEIDEGGER, M. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, p. 330.
7 algo que foi mostrado e predicado, o enunciado precisa pronunciar-se, precisa da expressão verbal em palavras que é a linguagem. Há de se ter em conta que quando Heidegger mantém essa vinculação da linguagem ao nível apofântico do enunciado é, justamente, para mostrar que não está interessado em uma recusa dessa dimensão. No entanto, o tratamento que ele vai conferir ao enunciado mostra essa estrutura não em um caráter de primazia, tal como se absolutizou na tradição metafísica, mas como uma estrutura derivada da interpretação, ou seja, que dependente do universo hermenêutico da práxis cotidiana para se realizar. Vemos nessa discussão, uma crítica às teorias tradicionais do juízo que privilegiaram, exclusivamente, o caráter apofântico da linguagem. Através dos processos de destruição e construção fenomenológica, Heidegger faz uma inversão dessa problemática, trazendo a tematização da dimensão hermenêutica para o primeiro plano na medida em que ele esclarece que os momentos estruturais do enunciado da indicação (Aufzeigung), predicação (Prädikation) e comunicação (Mitteilung) não podem abrir mão da intepretação compreensiva, ou melhor, da realização dos existenciais da abertura. A possibilidade do enunciado, de certo modo, depende de que o ente não compareça tal como aparece no compreender que se realiza na práxis cotidiana. Ou seja, o ente deve revelar-se como um ente subsistente, objetificado e não como disponível e inserido numa contextura significativa mais ampla. Em termos de descoberta, a diferença que aí ocorre é que, se na compreensão e interpretação os entes são desvelados a partir de um contexto referencial significativo em conformidade, ao alcançar o estatuto enunciativo, os entes passam a ser determinados em suas propriedades. Desse modo, o descobrimento apofântico do ente significa, ao mesmo tempo, o encobrimento do modo de ser instrumental e disponível desse mesmo ente, um encobrimento da significância. Por meio do como apofântico, o enunciado nivela a totalidade dos entes ao status de coisas subsistentes, dotadas de propriedades. No entanto, na estrutura do enunciado é possível de se encontrar, embora de modo modificado, as estruturas fundamentais da compreensão através das quais a interpretação se desenvolve e a articulação do sentido se torna possível. O enunciado fundamenta-se nessa estruturação da compreensão, embora isso implique em uma modificação da mesma. Assim sendo, somente ao se resgatar o momento antepredicativo da estrutura do enunciado, ou seja, somente com base em um retorno à dimensão do como hermenêutico, é possível explicar seu alcance ontológico. Sem o contato compreensivo, contato primeiro como todo o ente do qual não se pode separar a referência ao mundo que constitui todo Dasein, não é possível a concreção do enunciado. O que vemos, então, é que numa espécie de circularidade entre
8 apofântico e hermenêutico, há sempre uma remissão da linguagem para ambas as estruturas que lhe constituem. Em outras palavras, conforme afirma Stein, a linguagem traz em si um duplo elemento, um elemento lógico-formal 15 que manifesta as coisas na linguagem, e o elemento prático de nossa experiência de mundo anterior à linguagem, mas que não se expressa senão via linguagem, e este elemento é o como e o logos hermenêutico 16. Considerações finais O tema da linguagem sempre movimentou, de algum modo, o pensar heideggeriano. Nos escritos de Martin Heidegger, compreendidos entre o período de 1920 a 1930, a discussão sobre a linguagem não conta com a mesma importância adquirida no pensamento do filósofo após a viravolta de seu pensar (Kehre), perspectiva na qual se evidencia a relação originária entre ser e linguagem. Se tomamos como referência Ser e Tempo (1927), claro é que o ponto de partida da investigação não é marcado pela perspectiva de ser e linguagem, antes é a compreensão de ser o factum inevitável do qual Heidegger parte em seu projeto de retomada da problemática ontológica marcada, como afirma ele, pelo esquecimento de ser. Mas, ao contrário do que muitos críticos defendem, as escassas ou insuficientes discussões sobre a linguagem não podem ser consideradas como um descaso por parte do autor em relação a essa temática. O notável diálogo de Heidegger com o professor japonês, presente na obra A caminho da linguagem, comprova que a meditação da linguagem e do ser desde cedo determinaram seu pensamento. Prova disso, são os primeiros escritos heideggerianos: A doutrina do juízo no psicologismo (1915) e A doutrina das categorias e da significação em Duns Scotus (1916), tese doutoral e dissertação de mestrado, respectivamente. Em tais obras, já é possível encontrar discussões sobre o ser dos entes e uma meditação metafísica sobre a linguagem em sua referência ao ser. Porém, Heidegger mesmo assume que, nessa época, eram imperceptíveis ainda para ele quaisquer relações entre ser e linguagem e, por essa razão, a discussão ficou em segundo plano 17. Referindo-se à linguagem, em sua grande obra, o filósofo afirma: Talvez a grande deficiência de Ser e Tempo seja ter-me apressado demais O como apofântico. 16 STEIN, E. Aproximações sobre Hermenêutica. 2 ed. Porto Alegre: Edipucrs, p Cf. HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora universitária São Francisco, HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora universitária São Francisco, p. 76.
9 Assim, no período que culmina em Ser e tempo, a relevância de tal temática ganha sentido, não pela relação originária da linguagem com o ser, mas, sobretudo, pelo que representa enquanto crítica à tradição filosófica do logos, bem como pela reformulação da conceitualidade a partir da qual a linguagem foi estruturada no decorrer da história da filosofia. A não exclusividade de uma tematização que privilegiasse o caráter enunciativo (apofântico) da linguagem pode ser vista como uma espécie de manobra, por parte de Heidegger, para fugir do risco sempre eminente de um comprometimento com as abordagens metafísicas entificadoras do ser. É, nesse sentido, então, que vamos perceber, nas descrições do autor, um constante exercício de estabelecimento da diferença ontológica em relação à linguagem, apontando, assim, não somente para o modo enunciativo apofântico de lidar com as coisas, mas, sobretudo, para um modo hermenêutico de operar vinculado à práxis cotidiana do ser humano que enquanto ser-no-mundo sempre opera lançando mão da compreensão de ser. Ou seja, é a descrição da dupla estrutura hermenêutico-apofântica que constitui a linguagem. Referências Bibliográficas BAY, T. A. El lenguaje en el primer Heidegger. México: Fondo de Cultura Econômica, HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora universitária São Francisco, Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, Ser y tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera C. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, REIS, R. R. dos. Observações sobre o papel da linguagem na fenomenologia-hermenêutica de Ser e Tempo. In: Problemata, João Pessoa, v. 1, n.1, pp , STEIN, E. Aproximações sobre Hermenêutica. 2 ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2004.
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