ROTAS ATLÂNTICAS, O CASO DA CARREIRA DE S.TOMÉ



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Transcrição:

CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E DE CARTOGRAFIA ANTIGA SÉRIE SEPARATAS 226 ROTAS ATLÂNTICAS, O CASO DA CARREIRA DE S.TOMÉ POR MARIA EMÍLIA MADEIRA SANTOS INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL LISBOA. 1990

Separata das Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira Ano 1989 pág. 649-655

ROTAS ATLÂNTICAS, O CASO DA CARREIRA DE S. TOMÉ A minha comunicação constitui apenas a apresentação de pequena parte de uma investigação em curso no Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga. Há exactamente um ano, no Colóquio sobre «Bartolomeu Dias e a Sua Época» a equipa encarregada de executar a História Geral de Cabo Verde apresentou um estudo sobre os circuitos comerciais que se interceptavam naquele arquipélago e consequentemente sobre as rotas marítimas percorridas (1). O cruzamento e complementaridade de rotas atlânticas (2) conduziu-nos até à carreira de S. Tomé. No estudo sobre Cabo Verde avançamos apenas até à década de 20, antes do estabelecimento das novas rotas que partem em direcção às Antilhas. Seguiremos aqui o mesmo critério. Nos estudos sobre as rotas da marinha portuguesa, a carreira da índia tem atraído a maioria das atenções, deixando para segundo plano ou, até mesmo esquecidas, outras carreiras marítimas de intenso movimento. Os historiadores têm encontrado na carreira da índia um tema inesgotável. A sua fertilidade tem-nos afastado do estudo de rotas talvez menos espectaculares, mas igualmente objecto da maior atenção por parte do rei e do aparelho de Estado. É certo que a carreira da índia se nos apresenta sob o ponto de vista político, económico e social como a ligação, ao mesmo tempo, mais importante para a manutenção do Estado da índia, o trânsito comercial oriente- -ocidente, o campo de acção de fidalgos, cavaleiros e homens do povo. Do ponto de vista náutico e da marinharia ela constituiu o itinerário mais longo jamais percorrido regularmente por armadas de um único armador (1) Maria Emília Madeira Santos e Maria Manuel Ferraz Torrão, «Subsídios para a História Geral de Cabo Verde: Legitimidade da Utilização de Fontes Escritas Portuguesas através da Análise de um Documento do Início do Século xvi. Cabo Verde Ponto de Intercepção de Dois Circuitos Comerciais», no prelo. ' (2) «Notas sobre a História dos Pilotos em Portugal», comunicação apresentada à Academia da Marinha em Novembro de 1988, no prelo. 3

650 (o rei de Portugal); exigia as soluções de problemas dos ventos, correntes, características próprias de dois oceanos, um planeamento de datas de partida e de chegada, cronometragem do tempo gasto no caminho, organização da armada, preparação de quadros especializados responsáveis pela viagem mais longa, a carga mais valiosa, os passageiros mais ilustres do reino. É natural que o rei, assim como os oficiais da Casa da Mina e índia se ocupassem demoradamente deste empreendimento anual que marcava a vida comercial do monarca e da nação ligada à mercancia internacional. No entanto os armazéns da Mina e índia, não cuidavam apenas de preparar pilotos para as grandes responsabilidades da navegação para a índia. Dava-se igual atenção aos pilotos especificamente destinados às rotas do Atlântico (carreira da Guiné, mais precisamente de Cabo Verde, carreira da Mina, a mais rápida e regulamentada de todas, a carreira do Brasil e a carreira de S. Tomé). Aulas, experiências e exames eram objecto de regimento tão rigoroso como o que dizia respeito aos pilotos da índia. A mudança da navegação do Atlântico para o Índico exigia viagens experimentais atestados de competência e novos exames (3). Tivemos ocasião e necessidade de estudar a carreira da Guiné quando dos trabalhos monográficos preparatórios para a História Geral de Cabo Verde. Na verdade até cerca de 1560 esta rota deveria chamar-se mais correctamente carreira de Cabo Verde. As ilhas desempenhavam o papel de entreposto entre dois circuitos comerciais distintos: um que circulava entre a costa de África e Santiago, outro entre Lisboa e aquela ilha. As armadas que partiam de Lisboa não contactavam directamente a costa da Guiné, mas carregavam os escravos no porto de Santiago, para aí transportados, por navios especialmente ocupados no trajecto entre Cabo Verde Guiné e vice-versa (4). No Oriente os Portugueses conheceram rapidamente o «Comércio da índia em índia», intrometeram-se nele com excelentes resultados, salientados, desde bem cedo, por Afonso Albuquerque (5). Na costa africana não encontraram um comércio marítimo estabelecido, mas rapidamente firmaram ligações a que se pode bem chamar «comércio de África em África» com entrepostos nas.ilhas relativamente próximas da costa, mas suficientemente afastadas dela. Estas funcionavam como entrepostos seguros para registar, seleccionar e taxar a mercadoria. Cabo Verde desempenhou desde o século xv o papel de placa giratória para o comércio intercontinental entre a África e a Península Ibérica. Posteriormente, partir de 1526, com as Antilhas e mais tarde com o Brasil. (3) Teixeira da Mota, Os Regimentos do Cosmógrafo-mor de 1559 e 1592 e as Origens do Ensino Náutico em Portugal, Sep. n. 51 do C.E.H.C.A., Lisboa, 1969. (4) Ver mapa in «Subsídios para a História Geral de Cabo Verde...». (5) Sobre o comércio de «índia em índia» ver M. E. Madeira Santos «Afonso de Albuquerque e os Feitores» in Actas do II Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, col. Memórias, n. 25, do C.E.H.C.A. do I.I.C.T., Lisboa 1985. 4

Carreira da Guiné LEGENDA Circuito : Lisboa - Cato Verde - Lisboa Circuito : Castela - Cabo Verde - Castela Circuito : Cabo Verde - Rios de Guiné - Cabo Verde Compra de escravos e couros transportados para a Europa a partir de Cabo Verde. Carreira da Mina Circuito: Lisboa - Mina - Lisboa Circuito: Mina - Rios - Benim - Mina (a. 1519) Condução de ouro entre a Mina e Lisboa. Compra de escravos e coris no Benim para servirem de moeda de troca na compra de ouro na feitoria da Mina. Carreira de S. Tome -!.j _!_j Circuito: Lisboa - S. Tomé - Lisboa - _» f_]_ Circuito: S. Tomé - Mina (a. 1519 -f ip o Circuito: S. Tomé - Rios - lienim - S. Tomé - Mina (post. 1519) Condução de mercadorias entre Lisboa e a Mina, via S. Tomé (até 1519) Compra de escravos e coris no Benim, trans porte para o entreposto de S. Tomé e daí para a feitoria da Mina. Carreiras transatlânticas (post. década 1520) Cabo Verde - Antilhas S. Tomé - Antilhas Escravos comprados nos Rios de Guiné e no Benim com transbordo respectivamente em Cabo Verde c S. Tome, transportados c vendidos nas Antilhas. Cruzamento e complementaridade de rotas atlânticas: Carreira da Guiné, Carreira da Mina, Carreira de S. Tomé, Carreiras transatlânticas.

652 São Tomé, antes de constituir um entreposto intercontinental, teve o papel de base para um «comércio de África em África». Esta carreira adquiriu uma complexidade crescente na medida em que foi estabelecendo ligações a outras carreiras atlânticas. A primeira foi a carreira da Mina. Na verdade, em princípio, a carreira de S. Tomé constituía uma ligação marítima e comercial complementar da carreira da Mina. O ouro do castelo de S. Jorge da Mina merecia as moedas mais raras que os seus vendedores exigissem para o entregarem: manilhas de cobre da Flandres, lambeis e aljaravias do Norte de África, cauris, alaquecas e roupa preta da índia. Assim, considerava-se rendoso trazer búzios (cauris), fragmentos brilhantes de pirite e tecido de algodão da índia até Lisboa, embarcá-los de novo para S. Tomé e aí fazer o transbordo para os caravelões da Mina que as conduziam até à costa do ouro, onde as entregavam ao feitor do Castelo da Mina. A transferência das mercadorias do circuito da índia para o da Mina fazia-se na casa da Mina e índia, onde o tesoureiro da especiaria as entregava ao tesoureiro da Mina (6). A carreira de S. Tomé estendia assim um braço até à feitoria de S. Jorge da Mina: uma mera prestação de serviços, sem mercadoria de retorno. Era necessário simplificar ao máximo os objectivos a cumprir pela carreira da Mina. O desvio das mercadorias de troca, via S. Tomé, destinava-se exactamente a aliviar a carreira da Mina de qualquer serviço que não fosse o transporte do ouro dentro da maior segurança. Da fortaleza da Mina apenas saía ouro para el rei, fechado em cofre forte e selado, conduzido em caravelas ligeiras que não deviam deter-se para qualquer outro fim (7). Conhecidas as preferências do mercado africano, fornecedor do ouro, verificou-se a possibilidade de acrescentar ao mostruário das moedas-mercadorias, adquiridas no comércio intercontinental, um «produto» fácil de adquirir em zona próxima, que facultaria um lucro muito superior. Passariam a fazer-se duas transacções de que resultaria a soma dos dois saldos positivos. Assim no início do século xvi já se verifica que parte das mercadorias baldeadas em S. Tomé e entregues ao feitor de S. Jorge eram, numa segunda fase, transportadas nos caravelões da Mina para o Benim, Rio Real, Rio Formoso e Rio dos Forcados. Nesta zona, manilhas e cauris transacionavam-se por escravos que em seguida se conduziam à feitoria, onde eram por sua vez trocados por ouro. O escravo, o ouro negro, funciona aqui como moeda mercadoria para aquisição do ouro amarelo (8). Duarte Pacheco Pereira fez em 1502 uma referência muito discreta a este trato: «E estes escravos são comprados pela nossa gente (...) em uns (6) Damião Peres, Regimento das Casas das índias e Mina, publ. por... Coimbra 1947. (7) Regimento do Capitão da cidade de S. Jorge da Mina, publ. por Jorge Faro «Estevão da Gama Capitão de S. Jorge da Mina e a sua organização administrativa em 1529», in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, n. 51, 1957. (8) Carta de Francisco Froes a el rei, A.N.T.T., c.c. 1-13-48. S. Jorge da Mina, 19 de Agosto de 1513. 6

653 rios onde está uma muito grande cidade a que chamam Benim e dali os trazem. Nem convém que disto mais digamos, pois que o que é dito basta para entendermos o que cumpre; somente que este comércio é de El-Rei nosso senhor» (9). Para uma organização tão rigorosa, como era a do Castelo da Mina, qualquer actividade que não fosse indispensável à aquisição do ouro, corria o risco de fazer perigar a ordem e a segurança rigidamente regulamentada até ao mais íntimo e ínfimo pormenor. A presença dos marinheiros e de toda a tripulação dos caravelões, o movimento marítimo de carga e descarga, toda a uma actividade que forçosamente se desenrolava extra-muros e portanto era de difícil controlo, não se coadonava com a finalidade daquela feitoria, muito especial, que devia dedicar-se em exclusivo à compra do ouro que ali afluia do interior. Em 1513 o feitor da Mina confirma que os escravos constituem a melhor mercadoria que se cá pode ter e aquela em que se faz mais dinheiro, mas queixa-se das dificuldades em aparelhar e concertar os caravelões dos Rios com os meios disponíveis em S. Jorge da Mina. Frequentemente se enviavam a reparar na ilha de S. Tomé o que proporcionava contrabando (10). Por 1514 o trato da Mina para o Benim e vice-versa era um exclusivo concedido pelo rei ao secretário António Carneiro. Mas os seus representantes na Mina não eram suficientemente competitivos, desleixavam o negócio. Durante 4 anos ninguém podia resgatar no Benim sem autorização de António Carneiro. Os armadores de S. Tomé dispunham apenas de uma pequena cota, mas a verdade é que eles faziam grande concorrência aos caravelões da Mina. Apesar de existirem 4 caravelões a funcionar (São Gião, São Cristóvão, Santo Espírito Novo e Santo Espírito Velho) no ano de 1515 apenas duas viagens de negócio foram feitas ao Benim, enquanto que os armadores de S. Tomé resgatavam sem qualquer limite (11). Razões de segurança e eficácia não aconselhavam que se mantivesse a Mina como base deste negócio. É assim que, em 1519, a função comercial da compra de escravos do Benim é retirada da feitoria e desviada para a ilha de S. Tomé. Nesse sentido foi feito um regimento que responsabilizava os oficiais da ilha pelo abastecimento de moeda mercadoria à fortaleza de S. Jorge da Mina (12). (9) Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis. (10) Carta de António Froes ao rei. S. Jorge da Mina, Dezembro de 1513. A.N.T.T., c.c. 1-22. (11) - Carta de António de Coira a António Carneiro. S. Jorge da Mina, 18 de Abril de 1516. A.N.T.T. cc-i-19. (12) Regimento que leva Pêro Gramaxo que vai per capitão do caravelão que há de andar na ilha de Sam Thomé. 17 de Fevereiro de 1529. (...) alvará pêra os tratadores da ilha de São Thomé (...) 29 de Fevereiro de 1529. Publicado in Jorge Faro «A organização Comercial de S. Jorge da Mina em 1529 e as suas relações com a ilha de S. Tomé», Boletim cultural da Guiné Portuguesa, n. 51, Junho de 1958, pp. 318 e segs. 7

654 O funcionamento do entreposto insular tornou-se mais complexo. As manilhas de cobre e latão, assim como os cauris enviados da casa da Mina e índia para S. Tomé eram aí transferidos para os chamados caravelões do trato dos Rios que se dirigiam ao Benim e regiões limitrofas. Neste reino eram trocados por escravos e coris regressando em seguida a S. Tomé. Duarte Pacheco Pereira descreve os coris como «huas contas azues com huns riscos vermelhos» (13). Constituíam mercadoria valiosa, visto que com uma manilha, apenas se compravam 3 dessas contas que eram na quase totalidade transportadas entre S. Tomé e a Mina dentro de um cofre fechado e selado, só aberto dentro da fortaleza. Quanto aos escravos acantonavam-se nas fazendas de el-rei, onde esperavam a vinda do caravelão da Mina. Seleccionados os mais jovens e fortes, deviam partir de 50 em 50 dias para aquela fortaleza. Os restantes embarcavam na carreira de S. Tomé que os traziam para o Reino. Na viagem de regresso o caravelão navegava entre a Mina e S. Tomé sem carga, o que não impedia algum contrabando. Com esta prestação de serviços, por parte de S. Tomé, libertava-se a feitoria do ouro de quaisquer tarefas de apoio, que a desviassem da sua única finalidade. Deve dizer-se que esta actividade complementar de transacção e transporte foi alternadamente exercida pelos oficiais régios e arrendada a contratadores particulares, o que averiguaremos pormenorizadamente em trabalho posterior. A primeira referência à nova ligação marítima e comercial é de 16 de Janeiro de 1519. Trata-se de uma devolução de 17 escravos de refugo rejeitados pelo feitor da Mina, remetidos ao feitor dos tratos do Benim em S. Tomé, o que prova um fornecimento anterior (14). Por outro lado as mercadorias em depósito na feitoria da Mina, destinadas ao comércio de Benim foram, por ordem régia, enviadas para S. Tomé, em 8 de Março de 1520(15). A rota S. Jorge da Mina Rios Benim estava oficialmente interrompida. Agora era S. Tomé que recebia os cauris e as manilhas directamente da casa da Mina e índia para os ir resgatar ao Benim (16) por escravos, coris e contas pardas. Esta sub-carreira que se abria em dois braços a partir de S. Tomé (um navegado pelos caravelões dos Rios, para o Benim, outro pelos caravelões da Mina, para S. Jorge) não dava lucro directo. O ganho era visível na casa da Mina, em Lisboa, quando as caravelas escuteiras chegavam com o (13) Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo, Livro II, cap. VIII. (14) Recibo dos feitores dos tratos do Benim em S. Tomé. S. Tomé, 16 de Janeiro de 1519. A.N.T.T.C.C. 11-79-65. (15) Carta do rei de Portugal ao capitão da Mina de 8 de Março de 1520. A.N.T.T. Núcleo Antigo, n. 16. (16) Conhecimento do tratado da ilha de S. Tomé de certa quantidade de cauris. 28 de Dezembro de 1519. A.N.T.T.C.C. 11-86-142. 8

655 cofre do ouro e, abertas as três fechaduras, o metal brilhava perante o capitão do navio, o tesoureiro e o feitor daquela complexissima engrenagem que era a casa da Mina e índia. No final da década de 20, enquanto a cultura do açúcar florescia, a carreira de S. Tomé subdividia-se ainda, estendendo um braço mais longo até às Antilhas. Os escravos em grande número, numa ilha arborizada e montanhosa, constituiam uma ameaça para os moradores e as autoridades. Revoltas e ataques às plantações sucederam-se na década de vinte e de trinta. As Antilhas seriam o seu próximo destino. Ali iriam confluir dois braços de duas carreiras, a da Guiné e a de S. Tomé, que assim se tornaram transatlânticas. A equipa que agora está a escrever a História de Cabo Verde vai encontrar nas Antilhas os navios de S. Tomé. Para que possamos compreender esse encontro, teremos que continuar a seguir e a esclarecer as rotas atlânticas. MARIA EMÍLIA MADEIRA SANTOS * * Investigadora Coordenadora do I.I.C.T. C.E.H.C.A.. 9