ENTRE NÓS DA REFORMA VITÓRIA, 2010 Autoras: Maristela de Amorim Coelho, Andréa Campos Romanholi, Camila Mariani da Silva, Claudia Viana Gaudio, Elisara Sant anna, Jurema Santana Castello, Maria Helena Amaral, Roberta Belizário Alves. Instituição: Prefeitura Municipal de Vitória/Secretaria Municipal de Saúde/Gerência de Atenção em Saúde/Área Técnica de Saúde Mental Espírito Santo, Brasil. Contato: e-mail maristelacoelho@hotmail.com e saúde.mental@vitoria.es.gov.br Telefones: (27)3329-5441/(27)99433458/(27)3132-5040/(27)3132-5001/(27)3132-5001
ENTRE NÓS DA REFORMA A experiência que apresentamos neste trabalho nasce da emergência de construir e inventar respostas fiéis às diretrizes de dois grandes movimentos que produziram e foram produtos do processo de redemocratização no Brasil: As reformas Sanitárias e Psiquiátricas Brasileiras. Com a Constituição Federal de 1988, a primeira foi rapidamente legitimada e se transformou em símbolo da conquista democrática brasileira, em particular no que diz respeito aos direitos sociais. A saúde pública no Brasil passou a contar com um marco legal que possibilitou que dois anos mais tarde fosse instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pela Lei 8.080 de 1990. A despeito de todas as críticas passíveis de serem feitas em relação ao processo de viabilização e consolidação do SUS, são inegáveis os avanços alcançados, sendo importante e fácil perceber que o investimento na Estratégia Saúde da Família (ESF) e no Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) como vias para o desenvolvimento e fortalecimento da atenção primária tem se tornado a grande aposta na busca pela transformação do modelo hospitalocêntrico de atenção à saúde. No que tange ao movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a legitimação de suas propostas, ao contrário do que aconteceu com o SUS, uma legislação que garantisse sua efetivação levou muitos anos para ser conquistada, tendo sido necessários 12 anos de tramitação para que a lei da reforma psiquiátrica brasileira - Lei 10.216 de 06 de abril de 2001 (BRASIL, 2001) - fosse aprovada, o que só foi possível após várias alterações no projeto de lei original (AMARANTE 1995). Este autor define a reforma psiquiátrica brasileira como um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. Para o autor a trajetória da reforma psiquiátrica brasileira se inicia com o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), seu principal protagonista. O processo se iniciou no final da década de 1970 e foi o primeiro movimento em saúde com participação popular. Em consonância com suas propostas, em 1987 o movimento adotou o lema: Por uma Sociedade Sem Manicômios, ideal que orienta a luta antimanicomial em curso no país que vem organizando inúmeras atividades culturais, artísticas e científicas buscando envolver usuários, familiares e os diversos atores sociais nas questões da saúde mental (AMARANTE, 1995). Do ponto de vista das políticas públicas em saúde mental, desde a formulação das primeiras portarias que regulamentaram as experiências inovadoras em saúde mental em 1991 e 1992 a Reforma Psiquiátrica Brasileira já conquistou muitos avanços. Principalmente após a Lei 10.216 e as Portarias 336 e 189 de 2002, que regulamentaram os CAPS e definiram seu
financiamento (BRASIL, 2002), foi grande a expansão de serviços que possibilitaram a mudança da oferta de cuidado dos hospitais para os serviços territoriais. No entrelace das linhas tecidas por estes dois movimentos, da reforma sanitária e da reforma psiquiátrica, encontramos cotidianamente o desafio de promover a atenção à saúde e, particularmente à atenção integral em saúde mental. Ambas as reformas propuseram estratégias no sentido de intervir no modelo hospitalocêntrico até então hegemônico no país e promover sua inversão: A ESF e o PACS estão para a reforma sanitária assim como os CAPS e os Serviços Residenciais Terapêuticos (STR) estão para a reforma psiquiátrica. Em Vitória o processo de implantação das reformas teve início em 1989 com a implantação paulatina de Unidades Básicas de Saúde e de serviços de saúde mental. Desde 1996 iniciou-se a implantação da ESF e do PACS, com a transformação, ainda em curso, de UBS tradicionais em UBS/ESF/PACS. Os primeiros serviços e ações de atenção em saúde mental foram organizados seguindo a lógica ambulatorial, de acordo com a visão da gestão vigente à época em que foram criados. Só a partir de 2002 com o lançamento das portarias que regulamentam os CAPS (BRASIL, 2002) foi que estes serviços (na época um CAPS II e um CAPS ad) passaram a incorporar efetivamente sua vocação substitutiva ao hospital psiquiátrico e de serviços estratégicos para a mobilização das mudanças propostas. Até o início dos anos 2000 a construção da atenção integral em saúde mental enfrentava alguns desafios, entre eles a pouca compreensão das equipes dos CAPS das propostas da Reforma Psiquiátrica principalmente no que tange a desinstitucionalização e a responsabilização pelo cuidado; o desconhecimento por parte dos profissionais dos CAPS do cotidiano e relações sociais dos seus usuários no território; dificuldade das equipes dos CAPS e das UBS em apostar no desligamento dos usuários e investir na inserção do cuidado e em projetos terapêuticos que envolvessem ações no território; a inexistência de ações de acolhimento dos usuários dos CAPS no território de moradia seja pela família e comunidade seja pelos profissionais da atenção básica; a maioria dos profissionais de saúde era contratada temporariamente dificultando a formação de vínculo com os usuários e a integração entre os profissionais, equipes e serviços; além do entendimento, pela grande maioria dos profissionais e gestores, de que o cuidado em saúde mental deveria ser realizado apenas por especialistas. Desde 2004 a área técnica de saúde mental de Vitória vem desenvolvendo ações visando à superação destas dificuldades. Destacamos duas ações em particular: a implantação do apoio matricial em saúde mental e as mudanças nas estratégias de organização interna do trabalho dos CAPS de modo que estes passassem a desenvolver o cuidado territorial integrados com os serviços da atenção básica. Em cada CAPS foi possível definir profissionais de referência
para as Unidades de Saúde que passaram a trabalhar em estreita relação com as equipes das Unidades, que operam próximas aos espaços existenciais dos usuários e de suas famílias. Esta forma de atuação permitiu ampliar a capacidade de cuidado tanto para o acompanhamento dos usuários em tratamento nos CAPS quanto para a operacionalização do apoio matricial junto às equipes dos territórios. O município de Vitória é dividido em seis regiões de saúde com uma média de cinco UBS em cada uma. As Unidades de Saúde do município contam com equipes multiprofissionais compostas por médicos, enfermeiros, psicólogo, farmacêutico, técnico esportivo, pediatra e assistente social, o que permite que se faça um trabalho de atenção interdisciplinar aos usuários. Atualmente todos estes profissionais estão envolvidos na atenção em saúde mental, evitando-se que o psicólogo seja rotulado como o único responsável por este cuidado no território. A construção da linha de cuidado exigiu maior aproximação entre as equipes do CAPS e do Território de modo que passamos a realizar mensalmente reuniões regionais de saúde mental com participação de todos os atores envolvidos. Além destes espaços de reunião, acontecem, ainda, os encontros pontuais para acompanhamento e discussão dos casos, capacitações, oficinas, desenvolvimento de projetos e treinamento em serviço, ações que constituem o matriciamento feito pelos CAPS. Estas reuniões regionais têm por objetivo a organização e potencialização da rede de atenção. Os casos discutidos nestes espaços são os emblemáticos e desafiadores, considerando-se a dimensão interinstitucional e intersetorial, uma vez que neles o grau de complexidade e risco são maiores, além de quase sempre se tratar de situações de co-morbidades. Estas reuniões regionais funcionam ainda como espaço de educação permanente, sempre voltado para o processo de qualificação e instrumentalização dos profissionais para lidar com os temas e as práticas em curso visando à atenção integral. Para além desta dimensão mais operacional, as reuniões regionais constituem-se também em espaço solidário de intercambio e acolhimento dos profissionais, equipes, diretores de serviços e representantes da área técnica de saúde mental nesta difícil tarefa que entrelaça os ousados desafios das reformas. A rede de atenção à saúde mental do município de Vitória conta hoje com três CAPS II (um voltado para usuários com problemas ligados ao uso de álcool e outras drogas, um para usuários adultos com problemas mentais graves e um CAPS infanto-juvenil), dois psiquiatras para atendimento ambulatorial, uma residência terapêutica e com as 28 Unidades de Saúde do município, todas desenvolvendo ações de saúde mental. O município tem uma população de
320.153 habitantes (IBGE) e 72,60 % de cobertura de atenção na estratégia de saúde da família. As equipes das UBS, em geral, têm compreendido o processo de desinstitucionalização e se vêem como parte dessa transformação, assumindo casos complexos juntamente com os CAPS e não mais apenas os encaminhando para especialistas como se não fossem casos de sua responsabilidade. Levantamentos realizados nos CAPS dão conta de que neste período houve aumento significativo de encaminhamento entre estes e as UBS e vice versa, o que mostra uma rede integrada que se comunica e mantêm a integração na linha do cuidado. Muitos usuários que estiveram em tratamento nos CAPS são hoje acompanhados nas UBS que por sua vez já não encontram os CAPS sem vagas quando da agudização de crises dos usuários acompanhados no território ou da emergência de casos novos ou ainda desconhecidos pela UBS. Através de levantamento das nossas ações pudemos observar uma queda de 46% nas internações psiquiátricas e uma extrema mudança na cultura dos profissionais de saúde das Unidades Básicas. Outra importante mudança apontada pelos profissionais das Unidades de Saúde refere-se ao fato de que hoje o usuário com transtorno mental grave, ao contrário do que acontecia no passado, transita livremente pelo serviço sendo acolhido por toda a equipe. A partir de um trabalho de mapeamento, as equipes conhecem os usuários residentes no território e se apropriam do acompanhamento dispensado a estes, tendo ocorrido um progressivo entendimento de que estes usuários são responsabilidade de toda a equipe, e não apenas de profissionais tradicionalmente envolvidos com estas questões, como os psicólogos e assistentes sociais. Também se destaca o fato de que a discussão sistemática dos casos entre as ESF e destas com as equipes matriciais dos CAPS rompeu com a lógica de encaminhamentos automáticos, fazendo com que a UBS assumisse seu papel de acompanhamento efetivo, ainda que a assistência fosse prestada pelos CAPS. A elaboração de projetos terapêuticos passou a ser feita com participação de vários profissionais e envolvendo outros atores da rede social. O matriciamento tem possibilitado, também, a capacitação das equipes de saúde da família (ESF) sobre a saúde mental e o fortalecimento do trabalho em equipe na Unidade de Saúde, no qual cada profissional tem seu saber reconhecido, rompendo com a hegemonia do saber médico sobre as demais categorias profissionais. Infelizmente não podemos afirmar que todos os profissionais de todas as UBS participam ativamente desse processo. Entre alguns profissionais e algumas UBS as mudanças não acontecem no mesmo ritmo, o que nos leva a continuar investindo nas transformações da
atenção em saúde mental em Vitória. Restam, ainda, como obstáculos, a ausência de um suporte mais adequado para empoderar a família para assumir os cuidados dos usuários com transtorno mental grave e aos associados ao uso danoso de álcool e outras drogas, além da necessidade de avançar ainda mais na integração da rede social que, apesar de hoje operar de forma mais integrada, a integração alcançada ainda está muito aquém das necessidades do usuário e sua família, não suprindo todas as demandas no que se refere à reabilitação psicossocial. REFERÊNCIAS AMARANTE, Paulo. Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil In: BRANDÃO, Claudio. (Org.). 3. ed. Rio de Janeiro. Roma Victor, 2003.. LEI nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1990.. PORTARIA SAS nº 336, de 19 de Fevereiro de 2002. Ministério da Saúde. Estabelece que os Centros de Atenção Psicossocial passem a constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de complexidade. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 Fev. 2002.. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva/Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização HumanizaSUS. EQUIPE DE REFERÊNCIA E APOIO MATRICIAL. Série B. Textos Básicos de Saúde, Brasília, DF, 2004b.