OS REFLEXOS DA ESCRAVIDÃO NO PERÍODO COLONIAL DAS AMÉRICAS



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OS REFLEXOS DA ESCRAVIDÃO NO PERÍODO COLONIAL DAS AMÉRICAS 1167 Jorge Luís Mazzeo Mariano 1, Eduardo Gomes Ferro 2 1 Universidade de São Paulo USP. Curso de História, São Paulo SP. 2 Universidade do Oeste Paulista UNOESTE. Curso de História, Presidente Prudente SP. E-mail: jorgemariano86@yahoo.com.br RESUMO Esse trabalho pretende discutir a escravidão na América colonial. Podemos perceber uma ligação intrínseca da escravidão com a formação colonial das Américas, seja através da exploração do trabalho indígena, seja através do trabalho do negro africano. A escravidão movimentou as economias na formação tanto do sistema atlântico ibérico quanto do sistema atlântico do noroeste europeu 1, no contexto do desenvolvimento do capitalismo histórico. Desse modo, utilizando de diverso material bibliográfico, este artigo discute como a escravidão foi utilizada como um fator de movimentação econômica que esteve na base da formação dos países americanos, além de abordar brevemente como o movimento antiescravista inglês esteve cercado de interesses políticos. Palavras-chave: América colonial; Escravidão; sistemas atlânticos; capitalismo; antiescravismo. THE CONSEQUENCES OF SLAVERY IN THE AMERICAS COLONIAL PERIOD ABSTRACT This paper discusses slavery in colonial America. We can realize an intrinsic connection of slavery with the formation of the colonial Americas, either through the exploitation of indigenous labor, either through the work of African black. Slavery moved the economies in the formation of both the Iberian Atlantic system as the Atlantic system of northwest Europe in the development of historical capitalism. Thus, using diverse bibliography, this article discusses how slavery was used as a factor of economic movement which was the basis of the formation of the American countries, and briefly discuss how the English antislavery movement was surrounded by political interests. Keywords: Colonial America; slavery; Atlantic systems; capitalism; antislavery. 1 Essa nomenclatura visa estabelecer uma distinção entre os colonialismos estabelecidos por Portugal e Espanha (sistema atlântico ibérico) e pela Holanda, França e Grã-Bretanha (sistema atlântico do noroeste europeu).

1168 INTRODUÇÃO A questão da escravidão na formação das Américas é um tema amplo e com diversas interpretações. Assim, intentou-se com esse estudo abordar a questão econômica que moveu o processo de colonização do continente americano tendo em vista o contexto mais amplo do capitalismo histórico. Ao discutir a conquista da América, Steve Stern (2006) afirma que esse processo foi movido pelo entrechoque entre três utopias. Seriam elas: a utopia de riqueza, tendo em vista que a cobiça pelo ouro, sem dúvida moveu muitos sujeitos; a utopia da evangelização, em função de a América ter sido vista por muitos religiosos como uma espécie de paraíso cristão; e a utopia da premência social, uma vez que só a vinda para a América poderia favorecer à esses indivíduos uma possibilidade de ascensão econômica social. Essas utopias que seriam inviáveis na Europa, poderiam se concretizar na América. De acordo Stern (2006), a agência indígena e a leyenda negra são elementos relevantes para a compreensão dessas utopias. O conceito de agência indígena é importantíssimo, em função de exibir a capacidade de ação dos índios. A agência é um conceito sociológico que é empregado para explicar a ação de outros povos e essa agência indígena modificou a todo o momento as três utopias, uma vez que os índios não se adaptaram apenas, mas alteraram o jogo de poder com os conquistadores. Já a leyenda negra, pode ser descrita como a imagem que se desenvolveu, ainda no século XVI, de que os conquistadores aniquilaram os índios que eram um povo pacífico. Essa ideia era tão difundida que chegou a ocultar, nas produções historiográficas, a agência indígena. A questão teórica de Stern se refere aos paradigmas da conquista, defendendo que a agência se manteve, isto é, o paradigma é a relação de poder entre os indígenas e os colonizadores. Apesar da importância dos elementos específicos da relação entre colonizadores e os povos nativos, é necessário, contudo, tomar o devido cuidado para não se perder do horizonte historiográfico o contexto mais amplo da colonização espanhola e mais ainda da expansão marítima europeia. A relação de poder não se travava somente ali, nas terras americanas, mas existia um contexto mais amplo que estruturava e condicionava a existência daqueles entrechoques entre os colonizadores e os ameríndios.

1169 METODOLOGIA Essa pesquisa utilizou-se de uma abordagem qualitativa e adotou como método de coleta de dados a análise bibliográfica. Inicialmente foi realizado um levantamento bibliográfico em obras referentes à formação das Américas e ao escravismo colonial. Posteriormente procedeu-se uma análise buscando compreender como a escravidão indígena e africana contribuíram para a consolidação da domínio dos Estados europeus no território americano. RESULTADOS Miller (1997) aponta que o tráfico negreiro no espaço atlântico contribuiu para complementar os escassos fundos europeus na época do capitalismo comercial, construindo, no século XVIII, um novo mundo Atlântico. De acordo com o referido autor: O tráfico converteu a mão-de-obra africana, adquirida através de mercadorias de pouco valor, em metais preciosos das Américas, ou em especiarias ou drogas americanas - além de açúcar, tabaco, cacau e finalmente café - que valiam moeda corrente ou notas que podiam ser trocadas por moeda. (MILLER, 1997, p. 34). Desse modo, no final do século XVI o comércio de escravos estava bem desenvolvido pelos portugueses, auxiliados pelos holandeses. Além dos portugueses e dos holandeses, os ingleses também se beneficiaram do tráfico negreiro, desenvolvendo o seu comércio conforme o estabelecimento do modelo de plantation, no século XVIII, em Saint-Domingue e na Jamaica. Joseph C. Miller (1997) ainda ressalta que nos séculos XVII e XVIII os banqueiros italianos que financiaram os portugueses, os holandeses e os ingleses, enriqueceram com esse investimento e se tornaram, eles próprios, os capitalistas, passando a estimular o processo para se enriquecerem cada vez mais. Assim, as vias pelas quais o comércio de escravos se enveredou e que sustentaram o açúcar e as plantações do Atlântico, revelam os mecanismos de financiamento das periferias, no contexto da expansão mundial da economia mercantil, que tinha como centro a Europa, não possuindo grandes investimentos em dinheiro no comércio ou na produção. Esse mecanismo fez com que toda a riqueza ficasse com os centros capitalistas do sistema. DISCUSSÃO O marco zero da colonização espanhola foi a Ilha de Hispañola (onde hoje se encontra o Haiti), local em que existia uma população indígena de cerca de um milhão de habitantes, antes da chegada dos conquistadores. Os espanhóis buscavam o ouro que existia em abundância na Ilha.

1170 Cristóvão Colombo pretendia montar fortificações e feitorias como base de exploração das novas terras. Mas, após três viagens fracassadas, a Coroa espanhola passou a cuidar do empreendimento utilizando as encomiendas. As encomiendas eram o ato de distribuir terras conquistadas às ordens militares. Entretanto, o modelo de encomienda que foi aplicado na América não se referia às terras, mas aos índios. Ou seja: a Coroa concedia aos colonos o usufruto do trabalho indígena. Para conseguir uma encomienda era necessário ter certo poder político e, tendo em vista o valor que o trabalho indígena passou a ter, os encomienderos logo se tornaram proprietários de grandes propriedades. Em 1502 foi fundada Santo Domingo, a primeira cidade europeia na América. Nesta cidade os espanhóis buscavam o ouro de aluvião, utilizando-se da mão-de-obra indígena. O modelo indígena anterior à chegada dos espanhóis foi todo desestruturado, causando grande mortalidade nas populações autóctones, além disso, todo o ouro foi retirado da ilha. Essa era a lógica inicial dos espanhóis: explorava-se uma ilha até a sua devastação, depois se passava para outra e o processo era repetido. A partir de 1509 com o esvaziamento dos veios auríferos e também da população indígena, os espanhóis sem encomienda partiram para a terra firme. Os indígenas participaram principalmente da extração de prata recebendo um salário e, quando a essa extração atingiu uma escala industrial, a mobilização para o trabalho também se ampliou. Esse trabalho, executado no sistema de mita (forma de trabalho compulsório e assalariado), era totalmente indígena em função das características locais (altitude, temperatura etc.), fator que não impedia que a mortalidade fosse significativa. A indústria da prata criou uma estrutura mercantil, uma vez que movimentou toda a economia e consolidou o mercado interno da colônia. Mais uma vez os espanhóis se valeram das formas de recrutamento de trabalhadores previamente estabelecida pelos indígenas, sendo que, onde não existia essa organização, foram utilizadas cinco modalidades de arregimentação de mãode-obra: a escravização pura e simples; as encomiendas, que eram o arranjo contratual entre a Coroa e o colono espanhol, que permitia a este último explorar de maneira compulsória o trabalho indígena (uma adaptação da mita); o repartimiento, que era o recrutamento compulsório e assalariado de mão-de-obra adulta masculina indígena; existiam também os naborias, que eram índios que saíam dos repartimientos e passavam a vender o seu trabalho; e a peonagem, que era o trabalho dos naborias em regime de servidão por dívidas. (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002). Existiu também na América espanhola a escravidão negra, que foi primeiramente empregada na exploração do ouro e teve grande influência nos trabalhos urbanos. O trabalho

1171 desses escravos também foi amplamente aplicado na agricultura, constituindo uma escravidão de enclave: de mineração, urbana e agrícola. Toda essa variedade de exploração de mão-de-obra nas colônias espanholas denota que existia um mosaico de formas de trabalho, ao contrário do que ocorria na América portuguesa, que era uma sociedade escravista, estando os escravos na base material. Cabe destacar ainda que foram os traficantes de escravos portugueses que abasteceram a América espanhola. Miller (1997) ressalta que a larga utilização da mão-de-obra escrava negra nas Américas, a partir do século XVI, se deu por fatores aleatórios. Os portugueses encontraram na África um cenário de devastação pela seca e pelas guerras, no qual os nativos se encontravam abandonados, sendo vendidos como escravos a preços irrisórios para os lusitanos, que os transportaram para as Américas e os venderam a preços tão acessíveis que até mesmo aos pequenos produtores puderam comprá-los. Neste sentido, Robin Blackburn (2003) mostra que havia uma impossibilidade de mobilizar a população europeia para trabalhar na colônia, em função do insuficiente número de trabalhadores e também das exigências trabalhistas que estes faziam. Frente a esse impeditivo, existia o tráfico negreiro que vendia escravos africanos a preços mais atrativos do que o salário exigido pelos trabalhadores europeus. Blackburn (2003) indica, desta feita, que o momento decisivo para o início da utilização da mão-de-obra escrava no Caribe e na América do Norte se deu a partir de 1680. Uma das principais ideias defendidas por Blackburn (2003) é a de que a nova forma de plantation criou uma nova demografia. O autor assevera que na América do Norte e no Brasil os escravos negros nunca ultrapassaram numericamente a quantidade de habitantes brancos, ao contrário do que ocorreu no Caribe, onde, a partir de 1700, a população negra africana representava mais de três quartos do total da população. De acordo com Blackburn (2003), a exploração do Caribe inglês e francês esteve fortemente ligada à acumulação de capitais, fato que favoreceu a transição para o capitalismo. O historiador inglês afirma que depois do surgimento da plantation escravista, a escravidão teria se tornado um resultado natural e acessório da transição para o capitalismo: o oxigênio exigido pela fornalha europeia da acumulação capitalista, caso não sucumbisse a auto-asfixia, foi fornecido pelo tráfico de escravos e pelo comércio ligado à plantation. (BALCKBURN, 2003, p. 457). Entretanto, esse autor apenas enfatiza o sistema, opondo o que ele denomina escravidão barroca à escravidão moderna. Blackburn (2003), ao utilizar essas duas categorias, quis contrapor uma estrutura moderna a uma estrutura tradicional, mas na realidade essas duas formas de

1172 escravismo eram modernas, sendo que a forma barroca era apenas uma forma moderna distinta, mas não uma forma tradicional e não-capitalista. Edmund S. Morgan (2000) discute o surgimento da liberdade juntamente com a escravidão. Mostra que a liberdade era concebida como a ausência de vínculo de dependência que, no contexto do século XVIII, significava possuir uma propriedade e não estar endividado. O autor ressalta ainda que foi a escravidão negra que deu a base para a independência, para a liberdade, ou seja, esse é o paradoxo estadunidense que denotou que os direitos dos ingleses (foram) apoiados pelas injustiças contra os africanos. (MORGAN, 2000, p. 142). Pode-se dizer que foi a Revolução Americana que desencadeou o movimento antiescravista britânico. A articulação antiescravista britânica surgiu como resposta à Revolução Americana, em reação ao abalo sofrido na imagem da Inglaterra como a terra da liberdade. Alguns grupos (Quakers, evangélicos e manufatureiros ingleses do norte) queriam afirmar os ingleses novamente como um povo com capital moral, como um povo cristão, moral e livre. Eric Williams (1975) critica a concepção humanitarista dos abolicionistas, ressaltando que os abolicionistas só defendiam a libertação dos escravos e não o seu engajamento na sociedade. Critica também o fato de a Inglaterra continuar comprando produtos de regiões que ainda se utilizavam do trabalho escravo. Este autor defende que o impulso para acabar com a escravidão partiu dos próprios escravos. Contudo, foi o movimento abolicionista britânico, juntamente com a Revolução Haitiana, que trouxe definitivamente a crise do sistema atlântico do noroeste europeu e que se refletiu também no colapso do sistema atlântico ibérico, após 1808. (MARQUESE, 2008). É importante lembrar ainda que a Revolução Haitiana (assim como o movimento abolicionista britânico) é decorrente da Revolução Americana de 1776. A Independência dos Estados Unidos enfraqueceu, em médio prazo, o escravismo no Caribe Inglês, em função do movimento antiescravista que se fortaleceu na Inglaterra. Entretanto, a Geórgia e a Carolina do Sul não permitiram que a Constituição tocasse no tema da escravidão, já que entendiam que este era um assunto particular de cada Estado. Isto fez com que a escravidão durasse ainda muito tempo nos Estados Unidos, haja vista a força das colônias escravistas do sul que permitiram que o tráfico negreiro continuasse por mais vinte anos. Os antiescravistas concentraram a sua luta contra o tráfico negreiro, como uma manobra política. Uma vez proibido o tráfico, não seria mais possível o envio de escravos. Foi grande a influência de grupos marginalizados politicamente que buscavam mais prestígio como é o caso dos Quakers, dos evangélicos e dos manufatureiros do norte da Inglaterra, fazendo com que se

1173 engajassem no movimento antiescravista. O apoio popular a esses grupos foi um fator decisivo, uma vez que todos queriam se recuperar da derrota retumbante na Revolução Americana. Esse movimento fez com que a Inglaterra se auto-revestisse de poderes morais para exigir o fim da escravidão na América portuguesa e espanhola. Ao mesmo tempo também servia como justificativa para manter os trabalhadores assalariados da Inglaterra conformados com a sua situação livre, pois estariam em melhores condições do que os escravos. Enfim, o antiescravismo foi uma ferramenta de articulação interestatal e, consequentemente, de consolidação da Inglaterra no ciclo de acumulação capitalista inglês. CONCLUSÃO À guisa de conclusão, é possível perceber que desde o início da exploração econômica dos dois sistemas atlânticos a mão-de-obra escrava teve de ser utilizada. Primeiramente, o braço do indígena foi a força motriz que moveu as economias na extração de metais preciosos, na América espanhola e na montagem dos engenhos na América portuguesa. Entretanto, com a hecatombe demográfica causada pelos europeus no século XVI e pelas dificuldades em se obrigar os índios ao trabalho, outra mão-de-obra teve de ser utilizada. O trabalho do negro africano passou a ser largamente utilizado nas mais variadas atividades, nas possessões espanholas, inglesas, francesas e portuguesas, ganhando maior proeminência na lavoura açucareira. Enfim, a escravidão em todas as suas fases, nas diversas configurações que assumiu sob o domínio do europeu, nos diversos conflitos que gerou, constitui uma significativa parte da história das Américas, sem a qual não se pode compreender a sua colonização, as assimetrias dos sistemas atlânticos ou mesmo a formação do capitalismo histórico. REFERÊNCIAS BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003. MARQUESE, Rafael de B. 1808 e o impacto do Brasil na construção do escravismo cubano. REVISTA USP, São Paulo, n. 79, setembro/novembro 2008, p. 118-131. MILLER, Joseph C. O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos. Afro-Ásia, Bahia, n. 19/20, 1997, p. 9-36. MORGAN, Edmund S. Escravidão e liberdade: o paradoxo americano. Estudos Avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, jan./abril. 2000, p. 121-150.

SCHWARTZ, Stuart B; LOCKHART, James. A América Latina na época Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. STERN, Steve J. Paradigma da conquista, história, historiografia e política. In: BONILLA, Heraclio (Org.). Os Conquistados. 1492 e a população indígena das Américas. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 27-66. WILLIANS, Eric. Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro: Editora Americana, 1975. 1174