A AMAZÔNIA ANTES DA COMPLEXIDADE SOCIAL: UM ESTUDO DE COMUNIDADES PRÉ-COLONIAIS NO BAIXO TAPAJÓS.



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Transcrição:

A AMAZÔNIA ANTES DA COMPLEXIDADE SOCIAL: UM ESTUDO DE COMUNIDADES PRÉ-COLONIAIS NO BAIXO TAPAJÓS. Denise Maria CAVALCANTE GOMES Museu de Arqueologia e Etnologia Introdução: A maior parte das pesquisas arqueológicas atuais, desenvolvidas na Amazônia brasileira, têm como principal foco o estudo das sociedades complexas précoloniais (consultar McEwan et alii 2001 para um panorama geral; Roosevelt 1987, 1991, 1992; Heckenberger et alii. 1999). Fontes etno-históricas sugerem que, na época da conquista européia, as várzeas dos principais rios estavam repletas de assentamentos humanos. Os relatos indicam que tais assentamentos estavam integrados a amplos territórios, controlados por chefias políticas hierarquizadas (Betendorf 1910; Daniel 1840; Heriarte 1940; Acuña 1891; Carvajal 1892; Porro 1994, 1996). De fato, o registro arqueológico destas áreas apresenta estilos cerâmicos elaborados, construções coletivas, além de inúmeras evidências que confirmam a existência de grandes densidades populacionais. Figura 1 Mapa da área de estudo. Embora Denevan (1996) tenha argumentado contra a dicotomia entre várzea e terra firme, demonstrado que a ocupação destes ambientes se dava de forma

integrada e complementar, as áreas de terra firme são ainda hoje vistas como pobres, desinteressantes e com um registro arqueológico que não justifica o esforço, que demanda a pesquisa arqueológica em regiões densamente florestadas. Percebemos que o registro arqueológico da Amazônia tem sido analisado seletivamente e estas sociedades de terra firme continuam, em grande parte, pouco estudadas. O projeto de doutorado "Análise dos Padrões de Organização Comunitária no Baixo Tapajós" vem preencher esta lacuna. Desenvolvido pela autora, junto ao Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari, representa um estudo inédito sobre a aplicação do conceito de comunidade arqueológica na Amazônia, numa região de terra firme, considerada historicamente como área de possível influência política da cultura Santarém (1000-1500 A.D.), nos séculos que antecedem a conquista. O projeto de pesquisa: O objetivo do projeto de pesquisa é a caracterização dos padrões comunitários de implantação dos sítios na paisagem, de ocupação intra-sítio e do uso da cerâmica, numa área de terra firme correspondente à atual comunidade do Parauá, município de Santarém, no Baixo Tapajós, cujos sítios estão associados à tradição Borda Incisa (Meggers & Evans 1961; Brochado & Lathrap 1999). O que se pretende é evidenciar práticas de subsistência e de conteúdo simbólico, que permitam inferir interações comunitárias locais e regionais, particularmente interessantes para a compreensão da dinâmica de desenvolvimento cultural de sociedades formativas, que antecedem o surgimento das sociedades complexas na região. Uma das premissas teóricas do projeto é assumir uma postura crítica, com relação ao emprego de categorias classificatórias histórico-culturais, que, por vezes, redundam em correlações simplistas entre cultura material, língua e etnicidade. Além disso, o projeto possui estreita relação com a Arqueologia Pública e Arqueologia de Comunidades, uma vez que seu desenvolvimento se dá numa área ocupada por uma comunidade tradicional da Amazônia (Gomes s.d., cujo texto se baseia numa apresentação da WAC5). Ao lado da disseminação das informações relativas à pesquisa, por meio de palestras periódicas e distribuição de folhetos, houve uma preocupação em envolver membros da comunidade nos trabalhos de campo. A participação da população local no projeto de pesquisa teve conseqüências sobre o processo de construção do conhecimento, demonstrando que a prática científica é socialmente e politicamente norteada (Gero 1994; Shanks & Tilley 1989). Neste caso a interação com a comunidade do Parauá permitiu o acesso a diferentes perspectivas e interpretações, que incluem o reconhecimento de aspectos subjetivos na construção do conhecimento arqueológico (Gomes s.d.).

Figura 2 Mata de Igapó. Comunidade do Parauá às margens do rio Tapajós. O contexto arqueológico da área de estudo: A Arqueologia Amazônica é marcada por uma forte herança histórico-cultural. Durante os anos 1970, o principal foco da pesquisa foi a realização de prospecções arqueológicas, empreendidas pelo PRONAPABA Programa Nacional de Prospecções Arqueológicas na Bacia Amazônica. Criado por Clifford Evans, Betty Meggers e Mário Simões, o programa concentrou suas atividades ao longo dos principais rios e tributários da bacia Amazônica, visando a determinação de fases e tradições cerâmicas. A metodologia da época baseava-se na construção de cronologias relativas, por meio da seriação, pelo emprego do método Ford (Gomes 2000). Figura 3 Escavação no sítio Lago do Jacaré, com equipe formada por estudantes e trabalhadores locais. De modo geral, o registro arqueológico da Amazônia era visto como o produto de sociedades ceramistas de pequena escala, que, impactadas pelas restrições impostas pelo meio-ambiente eram obrigadas a uma mudança constante do local de assentamento, o que resultava em sucessivas ocupações de curta duração,

num padrão bastante semelhante às sociedades conhecidas etnograficamente (Meggers 1954, 1971, 1990). Evidências de complexidade sócio-política, especialmente no caso da Ilha de Marajó, foram interpretadas como sociedades originárias dos Andes, com uma organização social do tipo cacicados, que, em contato com o meio-ambiente de floresta tropical decaíram (Meggers & Evans 1957). Nos anos 1980, com o início dos trabalhos de Anna Roosevelt, no Baixo Amazonas, assistimos a uma mudança nos parâmetros da Arqueologia Amazônia, em termos de teoria, prática e escolha dos temas de pesquisa. Além da investigação em antigos sítios cerâmicos e Paleoíndios (Roosevelt 1995; Roosevelt et alii 1991; 1996), Roosevelt têm se dedicado ao estudo das sociedades complexas na Amazônia (Roosevelt 1989; 1991), e Santarém (1000-1500 A.D.) é uma destas sociedades. Embora os dados que poderiam comprovar o desenvolvimento de um cacicado local ainda não tenham sido publicados pela autora, seu modelo preditivo, baseado em antigos relatos etno-históricos e em trabalhos arqueológicos anteriores, destaca a existência de hierarquia social e política, concentração territorial, expansão da guerra, agricultura intensiva, trabalhos de larga escala e presença de especialistas, esta última exemplificada pelo desenvolvimento de uma indústria cerâmica elaborada (Roosevelt 1992). De fato, a cerâmica Santarém pode ser considerada como exemplo de uma das indústrias pré-coloniais mais elaboradas da Amazônia. Sua iconografia é caracterizada por um repertório básico de animais de floresta tropical, estruturados de maneira coerente e recursiva, a fim comunicar princípios de significado mitológico. Por outro lado, grandes representações de homens, algumas delas bastante naturalistas, exibem indivíduos sentados em bancos, segurando chocalhos, que demonstram a importância dos xamãs, como líderes de rituais e guardiões do conhecimento cosmológico desta sociedade (Gomes 2001). Figura 4 Representação naturalista de xamã, sentado num banco. Cerâmica Santarém,. Acervo MAE-USP.

Afora a extrema padronização da cerâmica, que parece indicar a presença de artesãos especializados, a cerâmica Santarém não possibilita uma leitura de sua iconografia como um reflexo direto e cristalino de uma sociedade complexa, do tipo cacicado. Seu inventário remete a elementos constitutivos de formas cosmológicas animistas, com distribuição pan-amazônica, o que sugere a necessidade de construir interpretações baseadas em relações dialéticas entre cosmologia e organização social (Viveiros de Castro 1986). Por outro lado, estudos recentes de coleções museológicas apontaram as variações estilísticas da cerâmica, tanto em termos de decoração como de tecnologia, como evidência da existência de um estilo regional, possivelmente partilhado por outras comunidades ao redor de Santarém (Gomes 2002). Para o desenvolvimento da pesquisa de doutorado foi escolhida a comunidade do Parauá, localizada na margem esquerda do rio Tapajós, 120 km ao sul de Santarém, a fim de testar proposições relacionadas à determinação dos limites da sociedade Santarém, distribuição de um estilo regional e inserção de áreas ecologicamente periféricas num mesmo sistema político. Informações de trabalhos precursores na área, realizados na década de 1920 (Nimuendajú 1949), indicam que a margem direita do rio Tapajós teria sido ocupada por comunidades pertencentes a esta mesma cultura. A expectativa, portanto, era encontrar nesta área, localizada na margem oposta, uma ocupação Santarém. Entretanto, não foi o que se apresentou, mas sim uma ocupação anterior à emergência da complexidade social. Os sítios pré-coloniais desta área apresentam cerâmica relacionada à tradição Borda Incisa/Barrancóide. Roosevelt (1992:65) caracteriza a cerâmica dos estilos Barrancóide, de ampla distribuição no norte da América do Sul, como desenvolvimentos que se entrecruzam com outras tradições locais, denunciando intensa interação social. Outros estudiosos, que partilham de uma clara orientação histórico-cultural, ao testarem modelos arqueológicos baseados em dados lingüísticos (Lathrap 1970), associam a ocorrência desta tradição na Amazônia à expansão de grupos indígenas de fala Arawak, numa correlação explícita entre língua, cultura material e etnicidade (Heckenberger, comunicação oral). Figura 5 Cerâmica pertencente à tradição Borda Incisa, encontrada nos sítios arqueológicos da Comunidade do Parauá.

Reflexões recentes têm demonstrado as dificuldades de se correlacionar cultura material e etnicidade em Arqueologia (Jones 1997; Roosevelt 1992). Desse modo, no que diz respeito ao projeto de pesquisa, nossa postura tem sido evitar o estabelecimento, a priori, de uma identificação étnica da cerâmica. A falta de dados arqueológicos e lingüísticos mais robustos, disponíveis para a área do Baixo Tapajós, inviabiliza interpretações neste sentido, expondo os limites impostos pela própria natureza das reconstruções arqueológicas. Resultados Preliminares: Um levantamento sistemático detectou 10 sítios arqueológicos, num raio de 40 km 2, o que corresponde á área atual da comunidade do Parauá. Nove dos sítios estão relacionados a ocupações pré-coloniais, de sociedades formativas, cuja cerâmica pôde ser associada à tradição Borda Incisa/Barrancóide da Amazônia, com datações radiocarbônicas preliminares em torno de 1.300 e 1.000 B.P., portanto, conforme mencionado, anteriores à emergência da complexidade social em Santarém. Apenas um dos sítios apresentou evidências de possíveis trocas com a sociedade Santarém. Este ainda não foi datado. Os sítios Lago do Jacaré, Zenóbio e Terra Preta foram escolhidos para realização de escavações sistemáticas. Inicialmente foram delimitados e tiveram sua morfologia definida. Em seguida, estudos sobre a variabilidade da densidade cerâmica forneceram hipóteses sobre a ocupação do espaço intra-sítio. Em função dos dados obtidos, várias unidades de escavação foram abertas. Os resultados preliminares das escavações apontam a existência de nítidos padrões de organização do espaço interno dos sítios, com feições correspondentes a solos de habitação com marcas de estacas, áreas com lixeiras comunitárias, refugo in situ, enterramento secundário em urna com reaproveitamento de vasilha utilitária. Figura 6 Piso de habitação com marcas de estadas, em pedestal. Unidade 1, Sítio Lago do Jacaré, Parauá, Santarém. A análise cerâmica, ainda em desenvolvimento, revelou a presença de uma indústria com nítidos marcadores comunitários. A metodologia de análise privilegia o estudo do artefato e sua funcionalidade no contexto residencial. Com isto, é possível reconhecer os padrões de uso cotidiano (Rice 1987; Sinopoli 1999), as

práticas de subsistência, algumas delas possivelmente relacionadas a atividades coletivas e as evidências de conteúdo simbólico, além de indicadores de interação local e regional (Stark et al. 2000), particularmente úteis para o entendimento histórico desta área com relação à cultura Santarém (Gomes 2002; Roosevelt 1987, 1992). Figura 7 Área de refugo secundário, com grande variabilidade de artefatos. Unidade 8, Sítio Lago do Jacaré, Parauá, Santarém. Figura 8 Afloramento em superfície que exibe área de refugo in situ. Sítio Terra Preta, Parauá, Santarém. Neste sentido, a abordagem teórica proposta coloca-se como uma alternativa para a compreensão de padrões de comportamento de longa duração especialmente os relacionados à confecção e uso da cerâmica que, normalmente, têm sido interpretados na Amazônia, por meio das tão criticadas unidades conceituais histórico-culturais fases e tradições (Gomes 2000). Tais padrões representam processos de formação de identidades, que vistos numa escala regional mais ampla permitirão avaliar o grau de autonomia da comunidade local com relação à Santarém, o que em última instância possibilita pensar em implicações de caráter

sócio-político. Portanto, a arqueologia de comunidades consiste numa forma de focalizar a evolução social de maneira contextualizada. Figura 9 Vasilha cerâmica utilitária, encontrada em contexto funerário. Sítio Terra Preta, Parauá, Santarém. Referências Bibliográficas: Acuña, C. de 1941 Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas. In: Leitão, C. de M. (trad.); Rojas, Carvajal & Acuña. Descobrimentos do Rio das Amazonas, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, pp. 12-294. Bettendorf. J. F. 1910 Chronica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 72(1):1-679. Brochado, J. & Lathrap, D. 1999 Chronologies in the New World: Amazonia (unpublished ms). In: Oliver, José (ed.), On "Amazonian Archaeology", ms. Carvajal, G. de 1941 Relação do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande que Descobriu por Grande Ventura o Capitão Francisco de Orellana. In: Leitão, C. de M. (trad.); Rojas, Carvajal & Acuña. Descobrimentos do Rio das Amazonas, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, pp. 11-79. Denevan, W. M.

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