Tempestades severas, tornados e mortes em Buenos Aires. Um evento meteorológico sem precedentes? O dia 4 de abril de 2012 já está marcado na história dos portenhos, quando tormentas severas atingiram o nordeste da Argentina e a capital Buenos Aires, provocando muita destruição e 17 mortes (cinco na capital, 11 na grande Buenos Aires e um em Santa Fé). Houve alagamentos em vários pontos da região metropolitana de Buenos Aires, queda de granizo e rajadas de vento que superaram os 100 km/h (Figura 2), derrubando mais de 500 árvores apenas na capital e causando muitos danos em construções e na rede elétrica. As áreas mais atingidas foram o sul e o oeste da grande Buenos Aires, afetando principalmente os municípios de Moron, Merlo e Moreno. As imagens registradas em Moreno são impressionantes e mostram muitas casas completamente devastadas pela intensidade dos ventos, muito semelhante à destruição causada pela passagem de tornados. Este evento meteorológico extremo já pode ser considerado o pior da história de Buenos Aires, superando a violenta sudestada de 1993, quando 10 pessoas perderam a vida na capital argentina e na sua região metropolitana. As Figuras 1 mostram as destruições causadas pelas das rajadas de vento, enquanto que a Figura 2 indica o comportamento das variáveis meteorológicas no aeroporto de Ezeiza (Buenos Aires). Figura 1: Imagens da destruição causada pelos temporais na região de Buenos Aires. A força do vento arrancou árvores inteiras pela raiz, destruiu casas e arremessou uma aeronave.
Figura 2: Dados de (a) METAR e (b) sondagem de Ezeiza (Buenos Aires) para as 12Z do dia 4 de abril de 2012. As Figuras 3 mostram a sequência de imagens de satélite durante o evento extremo na Argentina. Nota-se que a convecção começou a se desenvolver no início da tarde, quando começaram a surgir algumas células convectivas de forma isolada sobre o interior da província de Buenos Aires. No decorrer do período, houve um rápido aprofundamento da convecção, adquirindo dimensões horizontais maiores e topos com temperaturas inferiores a -80C. Este crescimento foi acompanhado por fortes temporais, que atingiram não apenas Buenos Aires, como as Províncias de Entre Rios e Santa Fe. Durante a madrugada o sistema convectivo continuou avançando para norte, atingindo as demais áreas do Uruguai e sul do RS, onde provocou muita instabilidade. As Figuras 4 mostram o acumulado de descargas elétricas nos dias 4 e 5 de abril de 2012.
Figura 3: Imagens do satélite GOES-12 no canal infravermelho (realçada) para os dias 4 e 5 de abril de 2012.
Figura 4: Acumulado de descargas elétricas entre os dias 04 e 05/04/2012. De acordo com o radar meteorológico de Ezeiza (Figura 5), por volta das 20 UTC (17h local) havia intensos núcleos de convecção se deslocando com orientação nordeste, atingindo núcleos de refletividade em torno de 58 dbz. No decorrer do período, estas células convectivas produziram intensas tormentas, organizando-se em forma de arco (fenômeno conhecido como bow echo ) ao atingir a região metropolitana de Buenos Aires, por volta das 23:50 UTC. De acordo com o Serviço Meteorológico Nacional da Argentina, várias localidades registraram precipitação acima de 40-50 mm em curtos períodos de tempo.
Figura 5: Imagens do radar meteorológico de Ezeiza (Buenos Aires) para as 20:00, 22:30 e 23:50 UTC. Fonte: Serviço Meteorológico Nacional (Argentina) As cartas sinóticas revelam que a forte instabilidade ocorreu associada à presença de um cavado baroclínico na troposfera média e alta (Figura 6a-b), com forte divergência sobre o lado equatorial do ramo norte do Jato Polar. Este cavado forneceu suporte dinâmico para um sistema frontal em superfície (Figura 6d), que avançou rapidamente para norte, encontrando uma massa de ar mais quente e úmida. O deslocamento deste sistema intensificou a advecção de ar quente pelo escoamento na troposfera baixa (Figura 6c), direcionando o fluxo de umidade dos trópicos para a Região da Bacia do Prata. A combinação entre o forte contraste de massas de ar em superfície e a favorável componente dinâmica da atmosfera foi fundamental para a formação das tempestades severas na Argentina. (a) (b)
(c) (d) Figura 6: Cartas sinóticas de (a) 250 hpa, (b) 500 hpa, (c) 850 hpa e (d) superfície da 00Z do dia 05/04/12, elaboradas pelo Grupo de Previsão de Tempo do CPTEC/INPE. Depois de caracterizar o ambiente sinótico, é interessante analisar os índices termodinâmicos, a fim de determinar o grau de instabilidade atmosférica. A Figura 7a mostra sobre a Região de Buenos Aires a presença de uma massa de ar muito úmida (umidade relativa acima de 80% na camada 850-500 hpa) e altamente instável, como pode ser observado através de uma ampla área com valores de LIFTED inferiores a -6. Na Figura 7b, o tom azul mais fluorescente indica SWEAT superior a 400, valor favorável para o desenvolvimento de tormentas, como foi verificado na sondagem de Ezeiza (Figura 7b). O índice K maior do que 35 (Figura 7b) e o Total Totals maior do que 50 (Figura 4c) exprimem a instabilidade gerada pelo gradiente vertical de temperatura e pela presença de umidade na camada mais baixa. O índice elevado de CAPE e em torno de 2000-3000 J/kg (Figura 7d) permitiu o desenvolvimento das tempestades. Essa energia costuma atingir o seu pico imediatamente antes do início das tormentas, consumindose durante o resfriamento do ar pela evaporação das gotas de chuva. (a) (b)
(c) (d) Figura 7: Análise do modelo GFS da 00Z do dia 05/04/12. (a) umidade relativa média na camada 850/500 hpa (sombreado) e lifted (contorno); (b) sweat (sombreado) e K (contorno); (c) VT (sombreado), CT (contorno), TT>45 (branco), TT>50 (vermelho); CAPE (sombreado) e CINS (contorno). A análise descrita acima revelou um caso muito particular, provavelmente sem precedentes na história de Buenos Aires, devido às dimensões dos danos causados na região metropolitana da capital federal. O Serviço Meteorológico Nacional da Argentina analisou os danos causados pelas tormentas e classificou o caso como um tornado, de categoria F2 na escala Fugita, que abrange ventos entre 180 e 250 km/h. Este fenômeno teria atingido principalmente o sul da capital federal e a costa do Rio La Plata. Os danos mais severos ocorreram numa faixa de aproximadamente 70 km e com largura entre 1500 e 2000 metros. Embora esta análise apresente um caráter diagnóstico, a condição para o desenvolvimento de tempestades havia sido prevista pelo Grupo de Previsão de Tempo do CPTEC/INPE. Ferramentas operacionais utilizadas para prognosticar eventos severos (não mostrada nesta análise) indicavam com vários dias de antecedência regiões com alto risco para o desenvolvimento de tempestades. Contudo, eventos extremos como este ainda representam um grande desafio para a meteorologia operacional, podendo até o presente ser previsível realisticamente apenas através do monitoramento com radares meteorológicos, que permitem determinar com maior precisão a localização e o momento do início das tempestades. Elaborado pelo Meteorologista Henri Rossi Pinheiro Grupo de Previsão de Tempo do CPTEC/INPE