UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Júlio de Mesquita Filho Faculdade de História, Direito e Serviço Social Campus de Franca



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Transcrição:

UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Júlio de Mesquita Filho Faculdade de História, Direito e Serviço Social Campus de Franca O Desrespeito À Dignidade Humana Nas Relações Sociais Construídas No Campo Brasileiro: Um Estudo Enfocado Na Jurisprudência De Nosso País Sobre Formas Contemporâneas de Trabalho Escravo Projeto de Pesquisa CNPQ/PIBIC Orientadora: Profª Drª Elisabete Maníglia Orientando: Luis Henrique Salina FRANCA 2004

RESUMO A violência contra o trabalhador rural é característica da estrutura agrária brasileira, marcada por um conjunto de relações econômicas, políticas e culturais construídas no campo em função de como a terra foi apropriada e a mão-de-obra explorada. Uma das formas de violência mais cruéis contra os trabalhadores rurais se manifesta na existência de trabalho escravo em toda a nossa história. Depois da abolição da escravidão no ano de 1888, foram desenvolvidas diferentes maneiras de explorar o trabalho escravo no campo brasileiro de forma clandestina, como acontece até os nossos dias com cerca de 25.000 pessoas, segundo dados da CPT. A pesquisa aplicou a concepção materialista dialética para entender a realidade a partir de seu movimento histórico e contraditório de construção. Para a análise das jurisprudências foi aplicado o método indutivo e para a interpretação de textos legais, o método dedutivo. Os resultados indicam a distância entre as estruturas formais do direito e a realidade a que elas se referem. Embora a escravidão seja um crime contra a humanidade, a mentalidade de propriedade rural absoluta e de poder de dominação dos fazendeiros, construída durante a era colonial, perpassa cristalizada em toda a nossa sociedade, influenciando opiniões e sentenças e realizando a impunidade. As mudanças legislativas visando a proteção da dignidade do trabalhador rural somadas à construção do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, embora constituam importantes avanços na luta pela verdadeira abolição desse crime, não foram e não são suficientes para a mudança da concreticidade das relações sociais estabelecidas no campo brasileiro. A erradicação do trabalho escravo contemporâneo depende da desconstrução da estrutura agrária e do projeto de exploração da terra e do homem desenvolvido pela elite agrária brasileira. Dito com outras palavras, depende necessariamente da destruição das relações sociais de dominação e da mentalidade do latifúndio e da efetivação de uma Reforma Agrária que consolide a democracia no campo, repartindo terras e garantindo direitos. PALAVRAS-CHAVE: Questão Agrária, Conflito Social, Trabalho Escravo, Direito Agrário, Direitos Humanos 2

SUMÁRIO I. INTRODUÇÃO...04 II. OBJETIVOS...07 III. METODOLOGIA... 10 IV. RESULTADOS...13 4.1 A aplicação do art. 149 do Código Penal em casos concretos: uma análise de jurisprudências...13 4.2 Denúncias da Comissão Pastoral da Terra,CPT, sobre trabalho escravo no Brasil...20 4.3 A importância da mudança introduzida no art. 149 do CPB pela Lei nº 10.803 de 11 de dezembro de 2003...22 4.4 Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo...24 4.4.1 A Proposta de Emenda Constitucional para a expropriação de terras onde exista trabalho escravo...27 V. DISCUSSÃO...28 5.1 A origem da apropriação da terra e da criação da mentalidade do latifúndio pela elite brasileira...28 5.2 A construção histórica de relações sociais violentas no campo brasileiro...31 5.3 As formas contemporâneas de trabalho escravo como elemento da atual estrutura agrária brasileira...35 VI. CONCLUSÃO...37 VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...40 3

I. INTRODUÇÃO Na história humana não há exemplo de que a generosidade dos fortes seja fator de libertação das grandes massas oprimidas. Os carcereiros não rompem cadeias, não destroem muralhas, não derrubam bastilhas. Só os oprimidos ganham a sua libertação, através de uma luta em que não escolhem entre a vida e a liberdade. (Leonel Brizola, em sua histórica conferência no Caco) 1 A extrema concentração fundiária realizada durante toda a nossa história estabeleceu uma forte relação entre propriedade da terra e poder. A partir de um resgate histórico da forma de apropriação da terra e exploração do trabalho dos despossuídos durante a colonização, percebemos a formação de uma mentalidade que fundamenta a concentração de terra como se fosse natural e confere aos proprietários poderes sobre a sociedade e sobre as pessoas. Essa mentalidade e essa herança histórica explicam o atual desrespeito à função social da terra ( CF 186) e a existência das formas contemporâneas de trabalho escravo. A exploração do trabalho escravo é um crime contra a humanidade, que é punido pelo art. 149 do Código Penal Brasileiro e por declarações internacionais 2, mas que infelizmente, segundo dados de pesquisadores da Antislavery Internacional, atinge 200 milhões de pessoas no mundo e, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, CPT, atinge atualmente 25 mil pessoas em nosso país. (Cf. REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS, 2004) As formas contemporâneas de trabalho escravo constituem ofensa grave aos direitos humanos em nosso atual contexto econômico, político e social. No Brasil, foram 1 Esse trecho do discurso do saudoso Leonel Brizola foi citado por Paulo Schilling em seu artigo Do Caminho Brasileiro de Reforma Agrária publicado na Obra A Questão Agrária, Textos dos Anos Sessenta da editora Brasil Debates, em 1980. 2 Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho, Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e Convenção Suplementar sobre abolição da escravatura de 1956. 4

construídas relações sociais fortemente marcadas por diversas formas de violência contra os trabalhadores rurais, que se manifestam na existência de trabalho escravo em toda a nossa história. Depois da abolição da escravidão no ano de 1888, foram desenvolvidas diferentes maneiras de explorar o trabalho escravo no campo brasileiro de forma clandestina, como acontece até os nossos dias. Imigrantes europeus, por exemplo, acabaram cativos em fazendas de café em São Paulo, em seringais da Amazônia e engenhos de açúcar no Nordeste. Atualmente, devido às gritantes diferenças regionais construídas historicamente em nosso país, os trabalhadores são transportados de um Estado para outro em busca de promessas de prosperidade. Entretanto, esses homens e mulheres que saem de pensões de regiões pobres são levados em péssimas condições, geralmente, em caminhões que transportam gado até a fazenda, onde terão que pagar o custo do transporte, da alimentação, dos instrumentos de trabalho, da moradia. Por conseguinte, serão vítimas do trabalho escravo por dívida 3 e não poderão deixar o local de trabalho. A violência contra o trabalhador rural é característica da estrutura agrária brasileira, marcada por um conjunto de relações econômicas, políticas e culturais construídas no campo em função de como a terra foi apropriada e a mão-de-obra, explorada. Tal violência se manifesta não só no aprofundamento do processo de expropriação do camponês, forçado a deixar o campo em busca de refúgio na periferia de grandes cidades, como também na repressão aos movimentos sociais de luta pela terra.(cf.martins, 1980). Desse modo, o trabalho escravo no Brasil deve ser entendido como um elemento da estrutura agrária, marcada por relações sociais violentas e opressoras construídas em nossa história. Não se trata de um crime perdido no tempo, mas que ocorre estruturalmente e com características próprias de nosso atual contexto político, econômico e social. 5

Entretanto, percebemos que o judiciário tem uma grande dificuldade de conceber o trabalho escravo como um fenômeno atual e distinto do ocorrido no século XIX. A análise de jurisprudências, publicadas pela Revista dos Tribunais, indica que há um grande descompasso entre a necessidade de erradicarmos esse crime contra a humanidade e a persecução penal, pois menos de uma dezena de casos foram processados pelos Tribunais Brasileiros. Além disso, os Acórdãos demonstram uma resistência dos juízes em identificarem as características contemporâneas de trabalho escravo como realmente tipificadoras de um crime. Diante desse quadro, a sociedade brasileira se organiza em diversas entidades como a Comissão Pastoral da Terra, CPT, e diversos Movimentos por Direitos Humanos para denunciar a verdadeira situação do trabalhador escravizado no Brasil. A pressão social já possibilitou importantes mudanças como o aumento do número de trabalhadores libertados no último ano e alterações legislativas como a nova redação do art. 149 do Código Penal Brasileiro, que prevê o crime de Redução à condição análoga à de escravo, que foi desdobrado e, agora, descreve as formas contemporâneas de trabalho escravo. Além disso, desde o ano de 2003 está sendo construído o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que articula Governo Federal, Judiciário, Polícias e Sociedade Civil na realização de atividades emergenciais para o combate a esse crime. As estruturas administrativas do Grupo de Fiscalização Móvel, da Ação Policial, do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho estão sendo melhoradas. O combate à impunidade e à conscientização da sociedade são seus objetivos centrais. 3 termo utilizado para caracterizar as formas contemporâneas de trabalho escravo, presentes no Brasil, em que dívidas são manipuladas para criar formas de coação física e moral de manter o trabalhador sob escravidão. 6

Sabemos, entretanto, que o trabalho escravo é um problema estrutural da sociedade brasileira e, por esse motivo, não pode ser erradicado sem mudanças profundas na concreticidade de nossas relações sociais e em nossa própria mentalidade. É necessário elaborarmos um projeto de reconstrução nacional que vise à dignidade de 180 milhões de pessoas, fazendo-se necessária uma Reforma Agrária, que possibilite terra e democracia para o trabalhador rural brasileiro. II. OBJETIVOS A eliminação do trabalho escravo nas fazendas brasileiras depende necessariamente da superação da estrutura agrária violenta e desigual, caracterizada historicamente por relações sociais de dominação e poder. Por conseguinte, a escravidão não pode ser enfrentada como um problema isolado ou um crime praticado factualmente. A presente pesquisa buscou apresentar a existência de uma prática contemporânea e estrutural de trabalho escravo no campo brasileiro, que apresenta características distintas da realizada no século XIX. Os fazendeiros, atualmente, usam de instrumentos como a manipulação de dívidas com transporte, alojamento, vendas de comida, roupas e ferramentas de trabalho e da coação física e moral, para cercear o direito de ir e vir de trabalhadores avulsos 4 ou sazonais, que são trazidos por gatos 5 de regiões miseráveis em que moravam, ludibriados pela propaganda de emprego e prosperidade. No presente momento, embora a agricultura brasileira tenha passado por uma intensa modernização de seu processo de produção, com a implementação das novas 4 São os trabalhadores explorados para serviços temporários como colheita ou limpeza de pastos. Há um aumento significativo dessa categoria no Brasil, que muitas vezes acaba escravizada. 5 Pessoa contratada pelos fazendeiros para aliciar mão-de-obra escrava e realizar o seu transporte até a propriedade rural. O ordenamento jurídico nacional tipifica como crime a ação dos gatos (art. 207 e 149 do Código Penal Brasileiro). 7

tecnologias da agroindustrialização, o processo de expropriação dos trabalhadores foi acelerado com a expulsão de massas de trabalhadores para a periferia das grandes cidades, com a diminuição dos empregos permanentes e o aumento do número de trabalhadores temporários. Desse modo, a pesquisa procurou indicar que o processo de modernização da agricultura brasileira apenas reordenou as relações sociais de dominação e não contribuiu para o reconhecimento dos trabalhadores rurais como portadores de voz e de direitos. (Cf. MARTINS, 1980). Prova disso, são os escândalos noticiados pela imprensa escrita e falada de nosso país de casos de trabalho escravo em grandes fazendas exportadoras do agronegócio. A Folha de São Paulo noticiou com base em 237 relatórios de fiscalizações do Ministério do Trabalho (realizadas entre janeiro de 2000 e dezembro de 2003) que o trabalho escravo acompanha no Brasil o avanço das fronteiras agrícolas e pecuárias, estando presente nas mesmas fazendas em que são utilizadas tecnologias de vanguarda na criação do gado. Alguns casos, segundo dados da CPT, tornaram-se notórios como a maior operação de libertação de trabalhadores em condição análoga à escravidão, que aconteceu quando, no ano de 2003, 745 pessoas foram retiradas da Fazenda Roda Velha, no município de São Desidério, na Bahia, importante produtor de soja e algodão. Outro exemplo, é o caso da Fazenda Tabuleiro, propriedade do pai do fundador da empresa aérea Gol, onde foi encontrado trabalho escravo no mesmo ano de 2003. Entretanto, a pesquisa procurou demonstrar que a escravidão contemporânea não se resume a casos isolados, mas trata-se de uma prática estrutural de nossa realidade agrária. Estimativas recentes da Comissão Pastoral da Terra, CPT, indicam a existência de 25.000 pessoas reduzidas à condição de escravo. E, além disso: Tudo indica que o icebergue completo do trabalho escravo fica ainda bem longe das vistas da sociedade pois somente escapam da ocultação criminosa 8

os casos em que alguns trabalhadores fugitivos, enfrentando riscos dos mais variados, conseguem levar ao nosso conhecimento (O Liberal, 08.03.03). Realizada a análise da conjuntura agrária brasileira, a pesquisa buscou analisar a jurisprudência brasileira sobre o tema, especificamente o julgamento de casos em que era imputado ao réu o crime descrito no art. 149 do Código Penal Brasileiro, ou seja, Redução à Condição Análoga à de Escravo. Procurou-se ainda nesse ponto, analisar como os operadores do direito interpretam o caso concreto de trabalho escravo, questionando o restrito número de condenações pelo crime do art. 149 do CP, enquanto dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e da OIT (Organização Internacional do Trabalho) apontam a existência de milhares de pessoas vítimas de trabalho escravo. Nesse sentido, foram relatadas denúncias de formas contemporâneas de trabalho escravo no Brasil realizadas recentemente por essas entidades. Além disso, buscou-se apresentar as atuais propostas de alterações legislativas que estão sendo discutidas como a importante Proposta de Emenda Constitucional, PEC nº 232, que altera o artigo 243 da Constituição Federal, incluindo como motivo de expropriação de terra o crime previsto no art. 149 do Código Penal e que apensada a PEC 438/2001, foi aprovada pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. Ademais, a presente pesquisa procurou analisar o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que começou a ser construído no ano de 2003 e já está em andamento articulando a ação do Governo Federal, do Judiciário, das polícias e da sociedade civil em ações objetivas de combate à impunidade e conscientização da sociedade. A pesquisa, por fim, buscou analisar a conjuntura agrária brasileira a partir de uma visão interdisciplinar e crítica para, dessa forma, desvendar os mecanismos que geram e reforçam o desrespeito aos direitos sociais dos trabalhadores rurais e contribuir, também, 9

com a reflexão sobre os instrumentos de instituição da violência no campo e da necessidade da elaboração de um projeto de reconstrução nacional. Desse modo, procurou-se demonstrar o equívoco de analisar a escravidão no Brasil de maneira isolada, como se fosse um crime perdido no tempo e descolado da concreticidade de nossas relações sociais. Em outras palavras, é necessário realizar uma coerente análise histórica da estrutura agrária brasileira para entendermos as formas contemporâneas de trabalho escravo e construirmos uma nova estrutura que garanta direitos e dignidade a todos os brasileiros. III. METODOLOGIA O trabalho escravo é uma forma de exploração humana que perpassa toda a história do Brasil. Para compreendermos a sua manifestação contemporânea é fundamental entendermos a própria formação do capitalismo no campo brasileiro e o movimento histórico de construção de relações sociais violentas e opressoras. A pesquisa, desse modo, aplicou a concepção materialista dialética para entender a realidade a partir de seu movimento histórico e contraditório de construção. As relações sociais estabelecidas no campo brasileiro, nesse sentido, foram construídas dentro do projeto nacional desenvolvido pela elite latifundiária brasileira e, em nenhuma hipótese, são relações naturais ou problemas simplesmente conjunturais. Por conseguinte, o atual estado de coisas só pode ser desconstruído e superado através do desenvolvimento de outro projeto nacional que vise à dignidade de todos os 180 milhões de brasileiros. Por isso, a pesquisa não se limitou a estudar as leis que se aplicam aos casos de trabalho escravo, mas avançou na reflexão do porque da ineficácia jurídica diante do caso concreto desse desrespeito aos direitos humanos. Foi enfocado o processo de construção da 10

estrutura e mentalidade agrária brasileira, através das formas de apropriação da terra e do trabalho e da criação dos mecanismos de desrespeito à dignidade humana e de violência no campo. A pesquisa, por conseguinte, utilizou textos científicos de diversas áreas do conhecimento humano, além de escritos jurídicos, para organizar os elementos necessários para a reflexão do desrespeito à dignidade humana concretizada nas formas contemporâneas de trabalho escravo. Utilizou revistas e jornais, documentos da Comissão Pastoral da Terra, CPT, da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e do Governo Federal e, por fim, publicações de jurisprudências de nossos tribunais sobre casos em que era imputado ao réu o crime de redução à condição análoga à de escravo. Para a análise dos textos legais foi aplicado o método dedutivo de abordagem para entendermos o alcance das normas que protegem o trabalhador rural na concreticidade da realidade. Quanto à análise dos textos científicos e jurisprudenciais foi aplicado o método indutivo para compreendermos o atual contexto em que se insere a presente reflexão. O levantamento de jurisprudência foi fundamental para o desenvolvimento da presente pesquisa. A impunidade ao crime de redução à condição análoga à de escravo, art. 149 do CPB, demonstra a distância entre as estruturas formais do direito e a realidade material a que elas se referem, questionando, a partir da concepção dialética adotada, o que realmente é o direito, ou seja, o que se apresenta na concreticidade das relações sociais ou o que deveria ser conforme estabelece o ordenamento jurídico. Nesse contexto, não basta que a nossa Constituição Federal garanta a função social da propriedade (CF, art.186), a desapropriação para fins de reforma agrária das propriedades que não a cumprem (CF, art. 184), a dignidade humana e a liberdade individual, para que esses direitos sejam realmente concretizados. Não bastam, dito de outra forma, os 11

direitos serem positivados para serem conquistados porque, muitas vezes, as normas que nascem na luta ( direito achado na luta ), as quais representam conquistas sociais, nem sempre desenvolvem força jurídica suficiente, diante dos fatores econômicos, políticos e sociais que os negam, parecendo como que uma concessão retórica das classes dominantes. Sendo assim, o direito deve ser entendido como um fenômeno cultural complexo e dinâmico em que as grandes contradições sociais não podem ser reduzidas a conflitos individuais. A norma é apenas uma de suas dimensões e não a sua própria essência. Os movimentos sociais, sindicatos, associações de bairro criam, no confronto de agentes históricos da transformação social, a subjetivação coletiva e um direito. Nas palavras de Roberto Lyra Filho, o direito é um processo dentro do processo histórico. (LYRA FILHO.1982) O Direito é um fenômeno complexo porque não se restringe somente a sua dimensão formal, mas também se manifesta em outras dimensões, nas materiais (social, econômico, cultural, político, psicológico) e na ética. É, também, dinâmico porque é histórico, dá-se no concreto; muda dentro do processo histórico, por força das lutas sociais, do conflito; é produto da luta. Em outras palavras, como o Direito está dentro do processo histórico, para conhecermos o direito, devemos conhecer o processo histórico no qual ele se insere, compreender o contexto sócio-histórico. 6 A forma legalista de conceber o direito é produto de uma concepção equivocada de ciência, criticada por Ovídio A. Baptista da Silva, que só admite como verdadeiro o conhecimento neutro e objetivo obtido através de método rigoroso, que se afasta da realidade e que pode ser exatamente comprovado. O legalismo encontra eco na atual prática judiciária e evidencia, por meio do estranhamento com a realidade, a crise de legitimidade do direito: 6 Informações orais obtidas na palestra Hermenêutica Constitucional e Direito Alternativo, proferida pelo Profº Drº Antônio Alberto Machado, no dia 21 de maio, no Congresso Nacional de Direito Alternativo, realizado na Unesp-Franca. 12

A redução do conceito de ciência, peculiar ao pensamento moderno, que somente concebe como científicos os ramos do conhecimento humano destinados a pesar, medir e contar, transformou o direito num sistema de conceitos, com pretensão à eternidade, desvinculando-o da história (BAPTISTA DA SILVA, 2003). Desse modo, temos que partir de uma análise da realidade brasileira para podermos entender a existência de trabalho escravo nas fazendas mesmo após mais de uma centena de anos da abolição formal da escravidão e depois, também, da conquista de uma carta magna que consagra a dignidade humana como princípio fundamental de nosso Estado de Direito Democrático (CF art. 3º). Devemos entender que o direito deve ser construído na concreticidade das relações sociais e não somente na abstração dos papéis. Dito de outra forma, são os homens e mulheres oprimidos que com sua resistência e luta devem construir o direito de serem livres em suas relações sociais. IV. RESULTADOS 4.1 - A aplicação do art. 149 do Código Penal em casos concretos: uma análise de jurisprudências. Foram destacadas decisões sobre processos penais em que ao réu era imputado o crime de redução à condição análoga à de escravo, art. 149 do Código Penal Brasileiro, de diferentes épocas, para se analisar a interpretação que os aplicadores do direito fizeram e fazem sobre esse crime. A primeira constatação, frente à pesquisa nas publicações da Revista dos Tribunais, foi o número reduzido desses processos frente à grande quantidade de pessoas vítimas de formas contemporâneas de escravidão no Brasil, indicadas por entidades como a CPT. 13

A publicação da obra Direitos Humanos no Brasil 2003, Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos em colaboração com Global Exchange aponta, de um lado, dados da CPT sobre a existência sistemática de formas contemporâneas de trabalho escravo no campo brasileiro, que atinge cerca de 25.000 pessoas, e, de outro lado, a impunidade dos fazendeiros. Isso, de fato, comprovou-se na presente pesquisa através do levantamento dos casos julgados por Tribunais Brasileiros de redução à condição análoga à de escravos nas publicações da Revista dos Tribunais, RT, que não atingem uma dezena de processos. O primeiro Acórdão analisado é do ano de 1958, do Tribunal de Justiça de São Paulo: CRIME CONTRA A LIBERDADE PESSOAL Redução à condição análoga à de escravo Fazendeiro que impede a mudança de colonos de sua propriedade, por estarem em débito com a mesma Procedimento censurável, mas que não constitui o delito do art. 149 do Código Penal Sentença absolutória confirmada.(in RT 282/150) O relatório desse Acórdão revela claramente quais eram as circunstâncias em que os trabalhadores eram submetidos numa fazenda de café, no município de Lutécia, ano de 1956. Diversos empregados (...) pretenderam rescindir, unilateralmente, o contrato de trabalho, e sair da fazenda, mas o proprietário não permitiu que isso acontecesse, pois os trabalhadores lhe deviam o preço do carreto da mudança. Como será adiante melhor trabalhado, o tipo penal do art. 149 do Código Penal Brasileiro só foi desdobrado no ano de 2003, através da Lei nº 10.803, de 11 de Dezembro. Antes o tipo era somente: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo. Desse modo, os julgadores do Tribunal de Justiça, no ano de 1956, não entendiam que restringir a locomoção dos trabalhadores em razão de dívida contraída com o empregador, 14

agora explícito no tipo penal, caracterizava redução à condição análoga a escravo. Segundo o Tribunal: Isso só teria ocorrido se o réu tivesse sujeitado, completamente, os seus empregados, ao seu poder, suprimindo-lhes o status libertatis. O objeto jurídico ou o bem jurídico essencial tutelado pelo art. 149 do Código Penal Brasileiro é, sem dúvida, o status libertatis, suprimido de fato pelas relações sociais estabelecidas no caso concreto de redução à condição análoga à de escravo. Trata-se de um interesse jurídico não apenas de caráter público interno, mas por proteger a liberdade humana, também, de defesa internacional. Esse bem jurídico é suprimido pelas formas contemporâneas de trabalho escravo, quando o ser humano é submetido a trabalhos forçados, submetido a condições degradantes de trabalho ou pela restrição de sua locomoção devido a dívidas contraídas com o empregador.(cf. NORONHA, 2001, Pg. 173). Quanto à dívida referente ao transporte da mudança dos trabalhadores para a Fazenda, que agora era usada para impedi-los de se mudarem de lá, o Tribunal de Justiça declara: O réu procurou, no caso, assegurar o seu direito de receber, dos empregados, aquilo que eles lhe deviam, quer pelo transporte de mudança, quer por fornecimentos feitos. A intenção do réu não era evidentemente, a de reduzir os empregados à condição análoga à de escravos, mas, apenas, a de impedir que os trabalhadores retirassem os seus bens sem o pagamento das dívidas. Fatos semelhantes observam-se, constantemente, na zona rural. Indivíduos, que não tem senso de responsabilidade e que são pouco amantes do trabalho, fazem contratos de locação de serviços, contraem dívidas, e, depois, saem das fazendas sem dar a menor importância ao cumprimento de suas obrigações (grifo nosso) (In RT 282/150). O caso concreto mostra as características contemporâneas de trabalho escravo, que á a coação moral através de dívidas manipuladas para impedir o trabalhador de exercer seu direito fundamental de ir e vir e mantê-lo sob os grilhões da exploração. Entretanto, o julgador privilegia, diante do desrespeito há um direito humano, o direito do empregador de receber o custo do transporte e outros fornecimentos. Justifica a decisão com 15

seus próprios preconceitos sobre os trabalhadores do campo: pouco amantes do trabalho, não tem senso de responsabilidade, contraem dívidas, e depois, saem das fazendas. O segundo Acórdão analisado é o classicamente citado pelas doutrinas brasileiras para exemplificarem a aplicação do art. 149 do Código Penal. É uma decisão do ano de 1976 do Tribunal de Justiça de São Paulo: REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO Delito caracterizado Acusados que forçavam os seus trabalhadores a serviços pesados e extraordinários na zona rural Proibição de deixarem a propriedade agrícola sem antes liquidarem o débito Condenação mantida Voto vencido pena, porém reduzida inteligência do art. 149 do Código Penal. (In RT 484/280). Novamente estão presentes no caso os elementos característicos da escravidão contemporânea, quais sejam, manipulação de dívidas para manter forçosamente trabalhadores em serviços pesados e impedir sua locomoção. O próprio juiz afirma que o fato definido no art. 149 do CP nada tem de anacrônico, nada tem de fora do tempo, da moda ou do uso.nesse caso, cerca de 100 trabalhadores submetidos a escravidão foram soltos numa ação da Polícia Militar na Fazenda Rebeca, em Jacupiranga: os trabalhadores eram aliciados, com falsas promessas de bom ganho, de bom tratamento etc., nos mais diversos pontos do Estado, como, por exemplo, Ourinhos e cidades próximas, como também em Minas gerais e Paraná. Transportados para a Fazenda Rebeca, geralmente, em uma "Kombi", passaram a ver que a realidade era completamente outra. Os trabalhadores ficavam amontoados em sujos barracões, eram obrigados, de um modo geral, a fazer compras de pinga, roupas, botas, etc. em um boteco da fazenda, onde eram explorados, pois lhe cobravam um valor superior `a mercadoria vendida. E,com isso, e sob a diuturna vigilância de fiscais (...) sempre armados (...)aquele que fosse trabalhar na fazenda, não mais dela poderia sair. Entretanto, um dos juizes discorda dos demais quanto à caracterização do crime de redução à condição análoga a escravo. Ele afirma que escravo é o cativo, que 16

vive em estado de completa sujeição. Na ausência de tal situação, não há de falar-se do delito do art. 149 do CP.. Desenvolve toda a argumentação defendendo que a única possibilidade de se caracterizar o trabalho escravo são as circunstâncias idênticas à escravidão do séc. 19, ignorando as suas formas contemporâneas. Justifica o fato da vigilância realizada por jagunços armados porque é comum, em fazendas, o furto entre os colonos e conclui que a distância que medeia entre a situação daqueles obreiros do campo, e os escravos, é quilométrica. O Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de 1995 é, na seqüência, o analisado: CRIME CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL Condição Análoga à escravidão Retenção de carteiras profissionais Contraprestação laboral através de gêneros alimentícios Débitos, a fim de cada mês, que impediam trabalhadores de escolherem outros serviços Inexistência, todavia, de total sujeição ao empregador que suprima o estado de liberdade Crime não caracterizado Apelação provida Inteligência do art. 149 do CP. (In RT 722/514) Novamente é demonstrada a tendência jurisprudencial anterior à Lei 10.803, de 11 de Dezembro de 2003, de não caracterizar o crime de redução à condição análoga à escravidão quando entendido que não houvesse total supressão do estado de liberdade, mesmo presentes o trabalho forçado e degradante e a restrição da locomoção. No caso em tela, acontecido na Fazenda T. P., de propriedade da empresa T./S.A., uma equipe composta, entre outras pessoas, de policiais e fiscais do Trabalho, constataram que homens e mulheres trabalhavam somente pela comida e que eram freqüentes os acidentes de trabalho ocasionados pela falta de equipamentos de proteção individual, como capacetes de segurança e também calçados de segurança e, além disso, que existiam recibos de pagamento com saldos negativos. 17

Em outras palavras, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul demonstrou a tendência jurisprudencial de analisar os processos em que é imputado ao réu o crime de escravidão de fato (art. 149 CP.) a partir de uma concepção de trabalho escravo perdida no tempo e incoerente com a nossa realidade contemporânea. A escravidão, agora de fato, não se apresenta mais como a escravidão legal do séc. 19, o homem não é mais reduzido à propriedade legal do empregador, mas coagido física e moralmente a trabalhar nas fazendas como um ser descartável, capturado em qualquer pensão através de promessas mentirosas e ciladas maquiavélicas. Diante das desigualdades regionais do Brasil, pessoas conhecidas como gatos agenciam trabalhadores em Estados pobres mediante promessas de trabalharem em regiões mais prósperas. Existem pensões nessas regiões próprias para reunirem trabalhadores, que são levados pelos gatos até as fazendas, aonde chegam devendo o valor referente a viajem, que logo somado a estadia e ao custo dos instrumentos de trabalho e da alimentação, caracterizam o fenômeno da escravidão por dívida, ou seja, não recebem salários e são impedidos de saírem da fazenda até pagarem a dívida. Conforme pesquisa da OIT, os estados de onde saíram maior número de pessoas como mão-de-obra escrava para todo o país são Piauí, com 22% dos casos, seguido por Tocantins (15,5), Maranhão (9,2%), Pará (8,5%), Goiás (4,2%) e Ceará (3,8%). (Cf. O Globo, 27.10.2003:17). Desse modo, a Lei nº 10.803/2003, que acrescenta ao art. 149 do CP a exemplificação de práticas contemporâneas de trabalho escravo quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto - indica um grande avanço da legislação brasileira no sentido de superar esse equivoco da aplicação do direito ao caso concreto. ano de 2003: Foi, por fim, analisado um Acórdão do Tribunal de Alçada do Paraná do 18

CRIME CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL Redução à condição análoga à de escravo Caracterização Agente que submete a vítima ao seu poder de disposição Uso de violência e ameaça, retenção de salários, restrição de comida e roupas e submissão da vítima a tratamento degradante Inteligência do art. 149 do CP. (In RT 817/672) A descrição do crime no relatório do Acórdão demonstra um dos extremos de violação de direitos humanos e crueldade que pode atingir as relações de opressão e dominação construídas no campo brasileiro e a, urgente, necessidade de garantirmos democracia para os trabalhadores rurais como condição para sustentarmos nosso Estado de Direito Democrático. Os quatro menores, que eram escravizados, dormiam no mesmo paiol em que se se encontravam ratos, nenhum estudava, lavavam o chiqueirão dos porcos no inverno, passavam frio, porque as cobertas não eram boas, não recebiam em dinheiro, tocavam o gado de pés descalços na geada e apanhavam nas tardes de sábado aos berros do fazendeiro de pretinhos!,pretinhos!... Quando tentaram fugir, tiveram os pés amarrados e suas cabeças mergulhadas no açude por cerca de quarenta segundos. No entanto, não é só num caso flagrante como esse que ocorre a supressão do status libertatis do ser humano, mas também nas formas hipócritas de escravidão por dívidas, que se multiplicam no campo brasileiro. Como já citado, estipula-se um número de 25.000 mil pessoas reduzidas à condição análoga à de escravo, mas o judiciário brasileiro, ainda, tem reservas em conceber as formas contemporâneas de escravidão, como realmente agressão à dignidade humana tão grave quanto a realizada durante a escravidão do século XIX. A pesquisa de jurisprudência realizada nas publicações da Revista dos Tribunais, RT, indica, de um modo geral, o pequeno número de processos diante da quantidade de pessoas vítimas do crime de redução à condição análoga à de escravo e a 19

dificuldade do judiciário em conceber o fenômeno das formas contemporâneas de trabalho escravo, como realmente agressão ao status libertatis e a própria dignidade humana e, portanto, caracterizadoras do tipo penal do art. 149 do Código Penal Brasileiro. 4.2 Denúncias da Comissão Pastoral da Terra,CPT, sobre trabalho escravo no Brasil. A Comissão Pastoral da Terra, CPT, é um organismo de 25 anos ligado à Comissão para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz, Pastorais Sociais da CNBB; membro da Pax Christi Internacional, que historicamente denuncia a prática de trabalho escravo no campo brasileiro e colabora com a construção de relações sociais que respeitem verdadeiramente o ser humano. Neste ano de 2004, a CPT publicou o livro Conflitos no Campo, Brasil 2003, que desvenda o quadro de violência do campo brasileiro. No ano de 2003, setenta e três trabalhadores foram assassinados em conflitos no campo através de ações do poder privado de latifundiários, um aumento de 69,8% em relação a 2002 e número mais elevado desde 1990. Com relação ao trabalho escravo, ocorrem 240 denúncias, tendo sido fiscalizadas pelo Ministério do Trabalho 154 casos e libertados um total de 5.010 trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravidão. A CPT classifica as denúncias de desrespeito ao trabalhador em duas categorias, quais sejam, trabalho escravo e conflitos trabalhistas. Esta se subdivide em superexploração e desrespeito trabalhista. Aquela somente se configura quando na denúncia há elementos que caracterizem o cerceamento de liberdade, seja através de mecanismo de endividamento, seja pelo uso de força, como por exemplo, proprietários ou funcionários armados, ocorrência de assassinatos, espancamentos e práticas de intimidação. 20

No ano de 2003 houve um grande aumento no número de trabalhadores libertados pelas equipes do Grupo Móvel do Ministério do Trabalho, foram no total 5.010 pessoas que estavam reduzidas à condição análoga à de escravo. Um aumento expressivo de mais do dobro do realizado no ano anterior e o correspondente a 52,4% dos 9.515 resgatados desde 1995. Entretanto, existe ainda uma diferença significativa entre os casos denunciados e os efetivamente resolvidos, os 5.010 trabalhadores libertados em 2003 correspondem a somente 59% dos casos denunciados. Além disso, como o trabalho escravo é uma prática ilegal e clandestina, a denúncia é muito difícil e, na maioria das vezes, só acontece quando um trabalhador consegue sair da fazenda. Houve também um aumento no número de Estados e regiões onde foram encontrados trabalhadores em condições análogas à de escravos. Observou-se crescimento substantivo desse número nos Estados de Rondônia, Tocantins e Maranhão e os Estados Rio de Janeiro e Bahia entram novamente nessas estatísticas. No entanto, a maioria dos casos ainda se concentra nas Regiões Norte e Centro-Oeste: A grande predominância das denúncias recai sobre as fazendas ligadas à pecuária, principalmente nos serviços de roço de pastagens e ainda nos de desmatamento, feitura de cercas e pulverização de herbicidas. Estas atividades ocorrem principalmente nas regiões Norte e Centro- Oeste, que continuam liderando o número de casos de trabalho escravo. (Conflitos no Campo Brasil. 2003). O Estado do Pará foi o responsável por 62,5% das denúncias e por 55,2% das fiscalizações realizadas em todo o país. Ainda segundo dados da CPT, foram denunciadas, no ano de 2003, formas contemporâneas de trabalho escravo em 238 imóveis rurais, sendo 5 na Bahia, 30 no Maranhão, 23 no Mato Grosso, 149 no Pará, 4 no Rio de Janeiro, 4 em Rondônia, 1 em São Paulo e 22 em Tocantins, num total de 8385 trabalhadores reduzidos à condição análoga à de 21

escravos nas denúncias e somente 5010, realmente, libertados. Por fim, calcula-se que existam no Brasil cerca de 25.000 trabalhadores vítimas de formas contemporâneas de escravidão. 4.3 A importância da mudança introduzida no art. 149 do CP pela Lei nº 10.803 de 11 de dezembro de 2003. Formas diferentes de trabalho escravo sempre estiveram presentes na história do Brasil depois da abolição da escravidão em 1888. Muitos migrantes que chegaram de países europeus trazidos pelas propagandas de trabalho no novo mundo, acabaram escravizados por dívidas nas fazendas de café de São Paulo. Nos seringais da Amazônia, a manipulação de dívidas, o isolamento geográfico e as armas dos fazendeiros, também, prenderam grande parte das primeiras levas de migrantes. Nos engenhos de Açúcar do Nordeste, famílias inteiras de trabalhadores foram escravizadas por gerações através da coação física e pela manipulação de dívidas. Durante o regime militar, no auge do desmatamento no sul do Estado do Pará e nordeste de Mato Grosso, nos anos 70 e 80, o número de trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravos era assustadora, mas não havia espaço político para fazer repercutir as pesquisas e as denúncias que eram feitas por entidades de representação dos trabalhadores. Os trabalhadores sempre lutaram contra a violência sofrida sendo importante as suas revoltas e denúncias em todas as épocas de nossa história para forçar a sociedade civil a perceber o problema e ajudá-los a erradicá-lo. Da resistência dos quilombos na época da escravidão negra às atuais formas de pressão social dos trabalhadores rurais, 22

como as revoltas, os trabalhadores lutam para construírem um espaço democrático no campo em que possam ter direitos e voz. Entretanto, há uma grande dificuldade do judiciário brasileiro, constatada na pesquisa sobre a jurisprudência referente ao crime de redução à condição análoga à de escravo realizada nas publicações da Revista dos Tribunais, RT; em criminalizar as práticas contemporâneas de trabalho escravo. Muitas vezes o juiz não condenou o fazendeiro que pratica formas contemporâneas de trabalho escravo à pena do crime do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, por entender que esse tipo penal se referia somente à escravidão idêntica à do séc. 19 e não identificou as características marcantes do trabalho escravo que ocorre atualmente no Brasil, ou seja, a sujeição do ser humano ao trabalho forçado e degradante, a restrição de sua locomoção, por coação física e moral, em razão de dívidas. Desse modo, houve uma forte pressão social realizada historicamente por entidades representativas dos trabalhadores, por intelectuais e militantes pelo reconhecimento como crime das práticas contemporâneas de trabalho escravo, o que culminou, por exemplo, com o uso do termo trabalho escravo no âmbito dos documentos do governo a partir da democratização ao invés de trabalhos forçados e na mudança da redação do art. 149 do CPB através da Lei 10.803 de 11 de dezembro de 2003, que desdobrou a redação do crime, explicitando as formas como se apresenta a escravidão em nosso tempo. O artigo 149 do Código Penal Brasileiro era redigido da seguinte maneira: Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo: Pena reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. A nova redação a partir da Lei 10.803 de 2003: 23

Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. 1º Nas mesmas penas incorre quem: I cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. 2º A pena é aumentada da metade, se o crime é cometido: I contra criança ou adolescente; II por motivo de preconceito de raça, cor, etnia ou religião ou origem. Desse modo, a alteração legislativa conquistada pela pressão social busca o definitivo reconhecimento da prática de trabalho escravo como crime. As condutas que caracterizam crime de redução à condição análoga à de escravo agora estão explícitas na redação do tipo penal e são alternativas, ou seja, basta uma delas para a caracterização do ilícito. Dito de outra forma, a Lei 10.803 de 2003 é um importante instrumento para contribuir para a efetiva criminalização da prática de trabalho escravo atualmente em nosso país e, desse modo, dos tribunais brasileiros ajudarem a construir o Estado Democrático de Direito, alicerçado na dignidade humana, previsto em nossa Constituição Federal de 1988. 4.4 O Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo O Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo foi elaborado no ano de 2003 pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que reúne entidades e autoridades ligadas ao tema, como por exemplo, a Comissão 24

Pastoral da Terra, CPT; a Organização Internacional do Trabalho, OIT; a Associação dos Advogados do Brasil, OAB; e a Associação dos Juízes Federais, AJUFE. O principal objetivo do Plano é articular e planejar através de metas objetivas a ação do Estado e da sociedade civil para a verdadeira erradicação do trabalho escravo em nosso país. Sendo assim, todas entidades participantes do acordo assumiram tarefas para a melhoria da estrutura administrativa do Grupo de Fiscalização Móvel, da Ação Policial, do Ministério Público Federal, MPF, e do Ministério Público do Trabalho, MPT; elencados pelo plano como pontos essenciais para a efetiva ação contra as formas contemporâneas de trabalho escravo. Realmente, apesar da importante ação desses órgãos governamentais no combate ao trabalho escravo, a melhoria na estrutura administrativa através de aquisição de automóveis, de matérias de informática e de comunicação, de recursos orçamentários e financeiros suficientes para as diligências de inspeção e contratação e capacitação de pessoal são urgentes para a agilidade das investigações e para a eficiência do combate ao trabalho escravo. Além disso, o Plano prevê Ações Gerais e Ações Específicas para a Promoção da Cidadania, Combate à Impunidade, Conscientização, Capacitação e Sensibilização. E, nesse sentido, indica que a erradicação do trabalho escravo deve ser enfrentada por toda a sociedade brasileira, por se tratar de um problema que ocorre sistematicamente em nosso atual contexto econômico, político e social e atinge milhares de pessoas em nosso país. O principal avanço proposto pelo Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo na luta pela dignidade humana no campo brasileiro é a articulação entre os órgãos governamentais e as entidades da sociedade civil que historicamente trabalham por esse objetivo. Além disso, a criação de um espaço político de debates e construção de ações 25

com a reunião de entidades de verdadeira representatividade em nossa coletividade, ou seja, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). Pouco tempo depois de seu lançamento percebemos avanços e dificuldades em sua implementação. A declaração do Governo Brasileiro de que a erradicação e a repressão ao trabalho escravo contemporâneo são prioridades do Estado e o resgate de 5.010 trabalhadores que estavam em situação de trabalho escravo pelo Grupo de Fiscalização Móvel no ano de 2003, ou seja, 52, 4% do total resgatado desde 1995, demonstram uma ação mais efetiva do poder público no ano de 2003 para a erradicação do trabalho escravo. Entretanto, a não implementação das alterações legislativas urgentes propostas pelo Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo demonstra a força da ação conservadora no poder executivo, legislativo e judiciário, que ainda defende a permanência da atual estrutura agrária. Uma das propostas é dar nova redação aos arts. 1º e 8º da Lei nº 8.072 de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, para acrescentar no rol desses crimes a redução à condição análoga à de escravo (art. 149, CPB) e aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional (art. 207, 1º e 2º). Outra importante proposta é dar nova redação à lei nº 5.889 de 1973, que dispõe sobre as normas reguladoras do trabalhador rural, acrescentando um 4º ao seu art. 18, estipulando a punição com multa de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) por trabalhador reduzido à condição análoga à de escravo, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. Além disso, é considerada prioridade para a Ação Geral de toda a sociedade brasileira pelo Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional, PEC, nº 438 de 2001, de autoria do senador Ademir Andrade, com redação da PEC 232/1995, de autoria do deputado Paulo Rocha, apensada à primeira, que 26

altera o art. 243 da Constituição Federal e dispõe sobre a expropriação de terras onde forem encontrados trabalhadores escravos. No entanto, ainda não foi implementada. 4.4.1 A Proposta de Emenda Constitucional para a expropriação de terras onde exista trabalho escravo. A Proposta de Emenda Constitucional, PEC, nº 438 de 2001, que já foi aprovada em 11 de fevereiro de 2004 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, propõe a alteração do art. 243 da Constituição Federal para acrescentar explicitamente o caso de trabalho escravo na caracterização do motivo de expropriação de terras pelo Governo Federal. A regra, no ordenamento jurídico brasileiro, é que toda terra é privada, exceto as públicas de destinação específica. O Estado, como garantidor da propriedade privada, pode desapropriá-la, ou seja, realizar uma compra e venda compulsória, que não é, segundo Carlos Frederico Marés, nada mais que a própria garantia da propriedade privada. O instituto da desapropriação não é pena ou exceção, pois ocorre a troca entre o ativo terra e o ativo dinheiro, o proprietário não perde. A expropriação, por sua vez, é um instituto marcado pela pena ou exceção. Consiste na aquisição da propriedade da terra pelo Estado sem ônus, sem a troca que acontece na desapropriação. Trata-se de uma punição expressamente prevista no art. 243 da Constituição Federal aos proprietários que cultivam plantas psicotrópicas ilegais. A PEC nº 438 de 2001, propõe, como já mencionado, o acréscimo do trabalho escravo como motivo de expropriação. Desse modo, apresenta um significativo avanço na política de combate ao trabalho escravo e indica a maior proteção do Estado Brasileiro ao bem jurídico liberdade 27

individual e dignidade humana dos trabalhadores rurais, contribuindo, sem sombra de dúvidas, para a mudança da estrutura agrária brasileira, se realmente for implementada, pois já foi proposta sem sucesso em outros momentos históricos, como na constituinte de nossa carta magna de 1988. Entretanto, devemos questionar, além disso, se somente as duas exceções acima mencionadas acerca da proteção jurídica da propriedade privada da terra pelo Estado Brasileiro são suficientes para uma mudança significativa na estrutura agrária e para o uso adequado da terra, bem natural intrinsecamente ligado à sobrevivência humana. Não seria significativo para a proteção do bem jurídico dignidade humana punir o desrespeito à função social da propriedade, prevista no art. 186 de nossa Constituição Federal, com o instituto da expropriação ao invés da desapropriação por interesse social? V. DISCUSSÃO 5.1 A origem da apropriação da terra e da criação da mentalidade do latifúndio pela elite brasileira. Atualmente o Brasil apresenta uma estrutura agrária extremamente concentradora da propriedade da terra e violenta contra o trabalhador rural. Segundo apontamentos de Ariovaldo Umbelino de Oliveira 7, cerca de 23.000 fazendeiros são proprietários de todos os latifúndios brasileiros, que são as maiores propriedades privadas de terras de toda a história da humanidade. As estimativas históricas indicam que no máximo 7 Informação oral obtida em debate sobre a questão agrária no dia 08 de Agosto de 2004, realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP - São Paulo. 28