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Transcrição:

ESTUDO DA VARIAÇÃO NA EXPRESSÃO DO PASSADO EM CURSO: UMA PERSPECTIVA SOCIOFUNCIONAL Josilene de Jesus Mendonça (UFS) Josilene-mendonca@hotmail.com 1. INTRODUÇÃO A língua é utilizada para manifestar experiências dos seus usuários; fenômenos linguísticos devem ser estudados levando em consideração os contextos de uso, já que, segundo Givón, a evolução do sistema comunicativo está estreitamente conectada a, e motivada por, propriedades interacionais do universo sociocultural (GIVÓN, 2011, p. 409). Nessa perspectiva, o uso da língua modela seu aparato constitutivo, fazendo surgir contextos de variação e mudança. Verbos são recursos linguísticos mais otimizados para codificar experiências, as quais podem ser ordenadas a partir da relação de simultaneidade, anterioridade e posterioridade ao momento da enunciação. Tais relações são estratégias do tempo verbal para codificar o tempo cronológico. No entanto, as relações verbais não se restringem a isso, pois em um enunciado que descreva mais de um estado de coisas a ordenação temporal é mais complexa, já que a ordenação desses acontecimentos ocorre tanto em relação ao momento de fala, quanto uns em relação aos outros. Dessa forma, a interpretação das relações temporais deve ser mais complexa, envolvendo um ponto de referência: os tempos verbais são determinados pela ordenação do momento da situação em relação ao momento de referência e ao momento do ato de fala. Além do tempo, os verbos também codificam a categoria aspecto, que envolve a noção de tempo interno, ou seja, a ideia de eventos em estado inicial, medial, final, perfectivo/fechado ou imperfectivo/aberto. Segundo Domingos (2004, p. 7), o Aspecto é uma categoria que codifica diferentes graus de duratividade de um processo verbal. Geralmente, fala-se em aspecto perfectivo, que envolve delimitação no tempo e curta duração, e imperfectivo, que caracteriza ações habituais e durativas. A presente investigação tem seu foco voltado para o tempo verbal passado, especificamente para aquele que apresenta uma situação passada em curso, no âmbito do aspecto imperfectivo, relacionado ao desenvolvimento dos eventos, sem fazer referência aos pontos inicial e final, atribuindo extensão às situações. Partimos da função semânticocognitiva de expressão do passado em curso para analisarmos os contextos em que as formas de pretérito imperfeito do indicativo e perífrase de gerúndio (estarimp mais verbo principal no gerúndio) atuam como variantes, isto é, como formas concorrentes, exercendo essa função (cf. ARAUJO; FREITAG, 2012; FREITAG, 2007). Veja-se o exemplo: (1) por volta das 20:30h estava eu e minha amiga batendo papo na praça. (fnp42) 1 1 Os dados foram retirados do Banco de dados de Textos Narrativos e Opinativos (ARAUJO; PEIXOTO; FREITAG, 2012). A sigla diz respeito à identificação do informante. A primeira letra refere-se ao sexo m para masculino e f para feminino. A segunda está codificando o tipo de texto o para opinativo e n para narrativo. A última letra diz respeito ao nível de escolarização p para primeiro ano do Ensino Médio, d para o segundo ano, t para o terceiro e s para o Ensino superior. O número é apenas uma questão de organização dos textos.

Nesse trecho, a perífrase de gerúndio estava batendo está exercendo a função semântico-cognitiva de expressar o passado em curso, ou seja, está codificando uma ação que se apresenta em andamento em relação ao momento de referência. Podemos notar que, nesse contexto de uso, tal perífrase poderia ser substituída pela forma batia (pretérito imperfeito) sem alteração da função, isto é, expressão do passado em curso, constituindo, assim, um contexto de variação linguística. No mesmo sentido temos o seguinte exemplo: (2) Meu tio já tinha almoçado, e tirava uma soneca no sofá. (mnp48) Observe-se que em (2), a forma verbal de pretérito imperfeito do indicativo tirava também exerce a função de passado em curso, podendo também ser substituída, sem alteração de função, pela perífrase estava tirando. Para guiar nossa pesquisa, adotamos a perspectiva sociofuncional, porque acreditamos que o estudo da língua deve levar em consideração seu caráter social e funcional. Em outras palavras, a língua deve ser estudada observando suas funções em contextos comunicativos. Na análise dos dados, seguimos a metodologia da Sociolinguística Variacionista (LABOV, 2008), codificando e quantificando-os para depois submetê-los a tratamento estatístico para, a partir disso, fazer uma análise quantitativa. Para procedermos a tal análise, utilizamos o corpus do Banco de dados de escrita: textos narrativos e opinativos, organizado por Araujo, Peixoto e Freitag (2012) e vinculado ao Grupo de Estudos Linguagem, Interação e Sociedade (GELINS), composto por oitenta textos, sendo quarenta narrativos e quarenta opinativos. Na seção seguinte, fazemos uma breve abordagem sobre a perspectiva sociofuncional, apresentando aspectos relacionados à Sociolinguística Variacionista (LABOV, 2008) e ao funcionalismo norte-americano. (GIVÓN, 2011). Na terceira seção, abordamos questões relativas ao passado em curso, discorrendo sobre o uso das formas de pretérito imperfeito e perífrase, bem como sobre os fatores estruturais que podem influenciar a produtividade das formas em estudo. Na sequência, tratamos dos procedimentos metodológicos adotados na pesquisa. A quinta seção é dedicada à análise dos resultados obtidos nessa investigação. Por fim, apresentamos as considerações finais. 2. A PERSPECTIVA SOCIOFUNCIONAL A Sociolinguística Variacionista considera a língua como uma forma de comportamento social, usada por seres humanos num contexto social, comunicando suas necessidades, ideias e emoções uns aos outros. (LABOV, 2008, p. 215). Nessa perspectiva, a língua apresenta-se como um sistema dinâmico, heterogêneo e diversificado, sendo por isso possível a existência da variação, como, por exemplo, a existência de mais de uma forma para codificar uma função como, por exemplo, a variação existente entre o pretérito imperfeito do indicativo e a perífrase de gerúndio para expressar a função de passado em curso. O objeto de estudo da Sociolinguística é a língua em seu uso real, buscando identificar padrões sistemáticos de variação. Apesar da língua ser aparentemente heterogênea, sua diversidade não é desordenada, por isso, a metodologia variacionista busca fazer uma análise quantitativa a partir de fatores internos (linguísticos) e externos (sociais), a fim de observar regularidade nas variações e mudanças linguísticas. Assim como a Sociolinguística, o Funcionalismo também propõe que haja uma relação direta entre língua e sociedade, pois um dos pressupostos do funcionalismo é que a estrutura da língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência, isto é, a estrutura do mundo, incluindo a perspectiva imposta ao mundo pelo falante. (FREITAG, 2007, p. 7). Daí

a possibilidade de existir uma interface entre essas duas vertentes teóricas, doravante chamada de perspectiva sociofuncional. Na perspectiva sociofuncional, A gramática é emergente, sujeita a constantes mudanças decorrentes do uso dos falantes. O enfoque da abordagem está nas relações entre funções e formas, resultantes de pressões linguísticas e sociais, com destaque para a história e a coexistência de diferentes formas, situação de estratificação/variação. (FREITAG, 2007, p. 40). Em outras palavras, no viés sociofuncional os significados e funções são articulados ao contexto em que a forma se encontra, sendo que a heterogeneidade e a variabilidade da língua ocorrem por meio de regras variáveis. O presente trabalho se encaixa em tal vertente por buscar analisar quantitativamente o fenômeno da variação linguística (IMP versus perífrase), partindo de uma função comunicativa (expressão do passado em curso). Na seção seguinte fazemos uma explanação sobre conceitos relativos ao âmbito do passado em curso. 3. FUNÇÃO SEMÂNTICO-DISCURSIVA DE EXPRESSÃO DO PASSADO EM CURSO O passado em curso é anterior ao momento da enunciação e simultâneo ao ponto de referência, apresentando-se em andamento em relação a este. Por isso, ele encaixa-se no aspecto imperfectivo, pois apresenta uma situação aberta, com foco no desenvolvimento do evento. Segundo Freitag, o passado imperfectivo é uma função caracterizada temporalmente pela relação de ordenação e sobreposição e aspectualmente, pela relação de inclusão. (FREITAG, 2011, p. 2). Em outras palavras, o imperfectivo estabelece uma ordenação dos acontecimentos, opondo o momento do evento ao momento de fala, em que aquele é anterior a este, e uma sobreposição com relação ao ponto de referência, já que o evento ocorre simultaneamente a este. Além disso, o intervalo do acontecimento do passado em curso inclui o ponto de referência, daí a noção aspectual de inclusão. As formas de pretérito imperfeito do indicativo e perífrase de gerúndio (estar acompanhado do morfema de pretérito imperfeito mais verbo principal no gerúndio) são variantes na expressão da função semântico-cognitiva de passado em curso. Como visto nos exemplos (1) e (2), anteriormente, elas podem ser intercambiáveis, preservando a mesma função comunicativa, no caso, expressar uma situação que se encontra em andamento em relação ao momento da referência. O aspecto imperfectivo caracteriza-se por dar ênfase ao desenvolvimento da situação, não sendo possível determinar os pontos inicial e final do evento. Apresenta-se, pois, em andamento em relação ao momento da referência. Esse valor durativo do passado em curso pode adquirir valores aspectuais específicos em determinados contextos comunicativos. Tais valores podem ser iterativo, contínuo, habitual, progressivo ou ambíguo, dependendo da referência. O aspecto iterativo configura-se como uma situação que é repetida sistematicamente sempre em uma ocasião específica. Veja-se o exemplo: (3) e além do mais muitos ao meu redor me questionavam se essa seria uma escolha correta. (mns80) Em (3), a forma verbal de pretérito imperfeito do indicativo questionavam está codificando a função semântico-cognitiva de passado em curso, dado que a situação apresentada encontra-se em andamento em relação à referência que, no caso, consiste numa

referência discursiva, ou seja, o ponto de referência não é recuperado em palavras específicas e sim pelo contexto. O informante está se referindo à escolha do curso superior no período pré-vestibular. Além disso, nesse contexto, a função adquire o valor específico de iteratividade, pois a ação de questionar ocorria sempre que o tópico discursivo da escolha do curso superior era retomado. O aspecto contínuo representa situações em andamento em relação ao ponto de referência, podendo ser uma situação dinâmica ou estática. Vejamos o excerto abaixo, em que a ação de jogar bola, nesse contexto, apresenta-se como contínua, ou seja, em andamento e sem interrupções durante a sua durabilidade. (4) eu e minha prima tava jogando de bola. (mnp47) O valor habitual não foi encontrado no banco de dados em análise, dada a sua natureza textual (somente textos narrativos e opinativos, que favorecem o progressivo e contínuo). 2 Mas registre-se que o valor habitual diz respeito a situações repetidas em diferentes ocasiões, presente, passada ou ambas. Já o ambíguo, ocorre quando o valor aspectual não é importante nem para o falante, nem para o ouvinte, não sendo possível recuperá-lo. O aspecto progressivo caracteriza-se por codificar situações em andamento em relação ao ponto de referência em predicados dinâmicos. Vejamos: (5) Contando essa história a meu primo Felipe ele fica parado e pergunta como é que eu tenho coragem de mentir para a minha avó e ainda coloca ele no meio? (fnp42) Em (5), houve a elipse do verbo estava. Mesmo assim, apresenta o valor aspectual progressivo. Isso porque a ação de contar uma história, nesse contexto, consiste em uma progressão, já que tem um início, meio e fim da história. O controle de tais subfunções tem se mostrado significativo para a análise da variação entre o imperfeito e a perífrase na expressão do passado em curso, como demonstra os estudos de Freitag (2007) e Araujo (2010). Tais estudos também demonstram que a observação do ponto de referência é relevante para o estudo da variação aqui analisada, pois, segundo Freitag (2009, p. 2), A necessidade de um ponto de referência anterior ao momento de fala e que estabeleça relação de sobreposição com a situação é uma das características definidoras do passado imperfectivo no português, que, temporalmente, está associado à simultaneidade entre o intervalo da situação e ponto de referência. Na seção a seguir, descrevemos os procedimentos metodológicos adotados na investigação. 4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O presente trabalho segue a metodologia da Sociolinguística Variacionista, em sua perspectiva quantitativa. No entanto, não nos furtamos de fazer também uma análise qualitativa, à medida que damos exemplos e discutimos sobre o fenômeno estudado. 2 Freitag et alii (2009) discutem a correlação entre tipos textuais/sequência discursivas na entrevista sociolinguística, apontado a tendência de correlação entre determinadas formas/funções em determinados tipos de texto/sequências.

Para observarmos a frequência de uso das formas de pretérito imperfeito do indicativo e perífrase de gerúndio na expressão do passado em curso, bem como analisarmos fatores estruturais e sociais que podem ser significantes para a investigação, utilizamos o corpus do Banco de dados de escrita: textos narrativos e opinativos, vinculado ao Grupo de Estudos Linguagem, Interação e Sociedade (GELINS), composto por oitenta textos, sendo quarenta narrativos e quarenta opinativos. O banco de dados de escrita: textos narrativos e opinativos foi construído a partir de textos escritos por falantes estratificados por tempo de escolarização e sexo, sendo que a faixa etária é entre 15 e 24 anos. O corpus é composto por oitenta textos, sendo que são vinte textos de cada nível de escolaridade, quais sejam 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio e Ensino Superior. Dos vinte textos, dez são narrativos e dez opinativos, divididos entre o sexo masculino e feminino, ou seja, cinco textos do sexo masculino e cinco do feminino. Inicialmente, fizemos leituras sobre o estudo das categorias verbais, como também sobre a variação na expressão do passado em curso. Em um segundo momento, nos detemos nos textos do corpus, a fim de identificarmos as formas de pretérito imperfeito e perífrase exercendo a função de passado cursivo. Depois, definimos os fatores internos e externos que iriam fazer parte do estudo. Resolvemos que o valor específico da função (iterativo, contínuo e progressivo), a forma de realização da referência (adjunto adverbial, oração adverbial, cadeia referencial oracional coordenada, cadeia referencial oracional subordinada e ponto de referência discursivo) e o tipo de texto (opinativo e narrativo) seriam os fatores linguísticos levados em consideração no momento da codificação e quantificação dos dados, enquanto a escolaridade e sexo seriam os fatores externos. Na próxima seção, apresentamos os resultados obtidos a partir do tratamento estatístico dos dados e as discussões sobre a investigação. 5. RESULTADOS E DISCUSSÃO A função semântico-cognitiva de expressar o passado em curso, isto é, uma situação que se encontra em andamento em relação a um ponto de referência, é codificada em português por pelo menos duas formas: o pretérito imperfeito de indicativo e a forma perifrástica de gerúndio (estarimp mais verbo principal no gerúndio). Este trabalho volta-se para o estudo da variação entre essas formas para expressar um evento anterior ao momento de fala, e simultâneo a um ponto de referência, encontrando-se em desenvolvimento em relação a este. Para realização desse estudo foram considerados três fatores linguísticos e dois sociais. Os primeiros foram valor específico da função, tipo de texto e tipo de realização da referência. Enquanto os sociais foram escolaridade e sexo. No entanto, os fatores sociais não se mostraram relevantes na escolha das formas para expressar passado em curso. Após análise dos dados, constatamos que a forma de pretérito imperfeito do indicativo é mais produtiva na codificação de passado em curso, como podemos observar no gráfico 1.

IMPERFEITO PERÍFRASE 30% 70% Gráfico 1: Distribuição geral das formas de imperfeito e perífrase na expressão de passado cursivo. No corpus foram encontrados 122 dados na codificação da função semânticocognitiva de passado em curso, sendo 85 relativos à forma de pretérito imperfeito do indicativo e 37 a perífrase de gerúndio, o que corresponde a 70% de produtividade da forma de imperfeito. Dentre os fatores considerados na análise, observamos que a subfunção que as formas podem assumir de acordo com o contexto mostram distribuição complementar: os valores aspectuais iterativo e contínuo favorecem o uso do imperfeito, enquanto o progressivo favorece a forma perifrástica. Vejamos o gráfico 2. IMPERFEITO PERÍFRASE 100% 74,20% 76,50% 25,80% 23,50% 0% ITERATIVO CONTÍNUO PROGRESSIVO Gráfico 2: Influência do valor específico da função na escolha das formas. O gráfico 2 demonstra que a subfunção aspectual progressivo tem estreita relação com o uso da forma de perífrase de gerúndio na expressão do passado em curso; no corpus analisado, não encontramos nenhum dado de passado cursivo que expressasse ideia de progressão com a forma de pretérito imperfeito do indicativo. Tal resultado corrobora o que a literatura tem consagrado: os estudos como o de Freitag (2007) e Araujo (2010) também mostram que o iterativo motiva o uso do imperfeito, enquanto o progressivo motiva o uso da perífrase. Quanto ao tipo de texto, observamos que o tipo narrativo apresentou um percentual mais elevado de dados na expressão do passado em curso, sendo que dos 122 dados, 106 foram encontrados nos textos narrativos. A análise desse fator também nos revelou outro fato

interessante, pois foram encontrados 16 dados de passado cursivo nos textos opinativos, sendo que todos estavam codificados pela forma de imperfeito. Veja-se o gráfico 3. OPINATIVO NARRATIVO 100% 65,10% 34,90% 0% IMPERFEITO PERÍFRASE Gráfico 3: Influência do tipo de texto na escolha das formas. O fato de os textos narrativos favorecerem o uso da função semântico-cognitiva de expressão do passado em curso já era previsível. Isso porque As sequências narrativas referem-se a trechos constituídos por relatos verbais (predominantemente) de fatos, acontecimentos ocorridos no passado e que podem se prolongar por um determinado tempo, em que aparecem ambientes, pessoas e uma sucessão temporal, ou seja, ocorre uma evolução no tempo, não há estaticidade. As sequências argumentativas costumam ocorrer no tempo presente e com frequente uso de modalizadores, como eu acho, pra mim, etc. São aquelas em que o falante expõe o motivo ou a razão, ou, ainda, o seu ponto de vista sobre determinado assunto. (ARAUJO et al, p. 3). Quanto à realização da referência, estudos como o de Domingos (2004), Freitag (2009) e Araujo (2010) mostram que o ponto de referência é um fator importante para o estudo da variação entre formas verbais: segundo Domingos, é a partir do ponto de referência que as formas verbais podem ter seu valor temporal interpretado. (DOMINGOS, 2004, p. 7). O ponto de referência pode ser de dois tipos, textual e discursivo. O textual é estabelecido no nível do evento, buscando um adjunto adverbial temporal, uma oração subordinada adverbial temporal ou a primeira forma verbal acessível no nível do evento, podendo esta estar em uma cadeia oracional coordenada ou subordinada. Já o ponto de referência discursivo é aquele que não é recuperável por nenhuma palavra, pois possui natureza pragmática, sendo recuperado a partir de um conhecimento compartilhado ou inferido pelo contexto. Com relação ao ponto de referência os dados demonstram que a cadeia referencial oracional subordinada, a cadeia referencial oracional coordenada e a referência discursiva favorecem o uso da forma de pretérito imperfeito do indicativo, enquanto o tipo de referência formado por uma oração adverbial apresentou uma leve vantagem para a forma perifrástica. Já a referência feita por meio de um adjunto adverbial se mostrou irrelevante para a escolha das formas, como podemos observar no gráfico 4.

IMPERFEITO PERÍFRASE 81% 77,10% 78,10% 50% 50% 41,70% 58,30% 19% 22,90% 21,90% ADJUNTO ADVERBIAL CADEIA SUBORDINADA CADEIA COORDENADA REFERÊNCIA DISCURSIVA ORAÇÃO ADVERBIAL Gráfico 4: Influência do tipo de realização da referência para a escolha das formas. Os resultados dessa investigação mostram que a variação entre as formas de pretérito imperfeito do indicativo e a perífrase de gerúndio são estáveis e ocorrem em contextos específicos, com fatores linguísticos influenciando tal variação. 6. CONSIDERÇÕES FINAIS Com os resultados obtidos na pesquisa, ratificamos os estudos que têm evidenciado que as formas de pretérito imperfeito do indicativo e perífrase de gerúndio (verbo estar acompanhado do morfema de pretérito imperfeito mais verbo principal no gerúndio) atuam como variantes na expressão do passado em curso, sendo que determinados fatores favorecem o uso de uma ou outra forma em contextos específicos. Nesse sentido, o presente trabalho contribui para os estudos linguísticos relacionados às categorias verbais, visto que descreve o comportamento das formas de pretérito imperfeito do indicativo e perífrase de gerúndio na expressão do passado em curso em uma amostra de textos narrativos e opinativos da comunidade de fala de Itabaiana/SE. Além disso, esse estudo também pode contribuir, em certa medida, para a melhoria do ensino de língua portuguesa, pois descreve o uso de uma forma emergente (perífrase de gerúndio na expressão do passado em curso) que ainda não se encontra na maioria das gramáticas normativas e livros didáticos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, A. S. & FREITAG, R. M. KO. Variação na expressão do tempo verbal passado na fala e escrita de Itabaiana/SE: formas de pretérito imperfeito e perífrase na expressão do passado em curso. scientia plena vol. 6, num. 12. 2010. ARAUJO, A. S.; PEIXOTO, J. de C. & FREITAG, R. M. K. Banco de dados de escrita textos narrativos e opinativos. Anais da II Jornada GEMPS. São Cristóvão, 2012. 12 p. DOMINGOS, Rosemary de Fátima de Assis. A influência do contexto (ir)realis na variação do pretérito imperfeito dos modos indicativo e subjuntivo. Working papers em lingüística, UFSC, nº 8, 2004.

FREITAG, R. M. K. A expressão do passado imperfectivo no português: variação/gramaticalização e mudança. 2007. Tese (Doutorado em Linguística). Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. FREITAG, R. M. K. Atuação da marcação na gramaticalização das formas de passado imperfectivo no português: o ponto de referência. ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 38 (1): 155-166 jan.-abr. 2009. FREITAG, Raquel Meister Ko. Aspecto inerente e passado imperfectivo no português: atuação dos princípios da persistência e da marcação. Alfa, São Paulo, 55 (2): 477-500, 2011. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s1981-57942011000200006 FREITAG, Raquel; REIS, Mariléia; BACK, Ângela; ROST SNICHELOTTO, Cláudia; DAL MAGO, Diane. O controle do gênero textual/sequências discursivas na motivação da variação sociolinguística: apontamentos metodológicos. In: Odisseia, n.3, nov/2009. Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/ojs/index.php/odisseia/article/view/2051/1485 GIVÓN, Talmy. Compreendendo a gramática. EDUFRN: editora da UFRN. Natal, 2011. LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.