ESTUDOS ARQUEOLOGICOS DE OEIRAS

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ESTUDOS ARQUEOLOGICOS DE OEIRAS

Transcrição:

ESTUDOS ARQUEOLOGICOS DE OEIRAS Volume 6 1996 CÂMARA MUNICIPAL DE OEIRAS 1996

ESTUDOS ARQUEOLÓGICOS DE OEIRAS Volume 6. 1996 ISSN: 0872-6086 COORDENADOR E RESPONSÁVEL CIENTÍFICO - João Luís Cardoso CAPA - João Luís Cardoso FOTOGRAFIA - Autores assinalados DESENHO - Bernardo Ferreira, salvo os casos devidamente assinalados PRODUÇÃO - Luís Macedo e Sousa CORRESPONDÊNCIA - Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras - Câmara Municipal de Oeiras 2780 OEIRAS Aceita se permuta On prie f'échange Exchange wanled Tauschverkehr erwunschl ORIENTAÇÃO GRÁFICA E REVISÃO DE PROVAS - Joâo Luís Cardoso MONTAGEM, IMPRESSÃO E ACABAMENTO - Palma Artes Gráficas, Lda. - Mira de Aire DEPÓSITO LEGAL NQ 97312/ 96

Estudos Arqueológicos de Oeiras, 6, Oeiras, Câmara Municipal, 1996, p. 121 133 PEQUENOS MAMÍFEROS DO POVOADO PRÉ-HISTÓRICO DE LECEIA (OEIRAS) João Luís Cardoso (1), M. Telles Antunes 12) & P. Mein 13) 1 - INTRODUÇÃO (4) No decurso de pesquisas realizadas anualmente, desde 1983, no povoado pré histórico de Leceia, foram escavadas unidades habitacionais e espaços abertos que forneceram materiais arqueológicos e restos de grandes mamíferos. Era evidente o interesse da pesquisa de pequenos mamíferos, apenas possível mediante a recolha de apreciáveis volumes de terras em áreas potencialmente mais favoráveis. Os materiais estudados, todos do Calco lítico inicial avançado, ca. 2700-2600 AC (SOARES & CARDOSO, 1995; CARDOSO & SOARES, 1996), provêm da recolha integral dos enchimentos terrosos de estruturas de combustão existentes no interior de habitações, bem como de colheitas em depósitos acumulados a céu aberto, em períodos de abandono, ainda que episódico, do local ou de partes dele. No primeiro caso, encontram-se as seguintes estruturas (Fig. 1): - Lareira ZZ 1, no interior da Casa ZZ, escavada em 1989. Pertence ao Calcolítico inicial (Camada 3) (Fig. 1, nº. 3; Figs. 6 e 7). - Lareira HH 1, no interior da Casa HH, escavada em 1988 Calcolítico inicial, (Camada 3) (Fig. 1, nº. 2; Figs. 4 e 5). - Lareira EX 1, no interior do Bastião EX, escavado em 1992, também do Calco lítico inicial (Fig. 1, nº. 4; Figs. 8 e 9). Ao segundo caso corresponde a colheita de cerca de 1 m 3 de sedimentos no lado interno da Muralha CC (Reforço CC 2), cuja acumulação é atribuída a um episódio de abandono, talvez parcial, daquela zona do povoado em fase avançada do Calcolítico inicial (Fig. 1, nº. 1; Figs. 2 e 3). As terras foram lavadas, crivadas (0 0,5 mm) e triadas à lupa binocular no Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras CMO, e no Centro de Estudos Geológicos da UNL. II) Centro de Estudos Geológicos, FCTjUNL. Coordenador do Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras - Cãmara Municipal de Oeiras. Da Academia Portuguesa da História, da Associação dos Arqueólogos Portugueses e da Associação Profissional de Arqueólogos. (2) Academia das Ciências de Lisboa. Centro de Estudos Geológicos, FCTjUNL. I]) Université Claude BernardjLyon 1. (4) Por 1. L. Cardoso. 121

o ;:: M -99800'+----r--_, TT Ç_-----,,-----_.----_.----_t - - - o 10m + + 00 I + 100 96._.-.j.-._.. / _. _. _.. perímetro da area total escavada -99940+-------L----- -----L----_+ Fig. 1 - Leceia 1983-1995. Planta geral esquemática das principais estruturas, com localização das amostras estudadas (todas do Calcolítico inicial, C.3).

Fig. 2 - Leceia/1988. Vista do corte executado nos depósitos acumulados do lado interno da Muralha CC, cujo Reforço GG 2 se observa no canto inferior esquerdo, Calcolítico inicial (C.3). Foto de J. L. Cardoso. Fig. 3 - Leceia/1988. Outra vista do corte da Fig. 2. Do lado esquerdo, observa-se o desenvolvimento da Muralha CC. Calcolítico inicial (C.3). Foto de J. L. Cardoso.

2 - PEQUENOS MAMÍFEROS (I) 2.1. Composição da fáunula Pesquisas em Leceia proporcionaram a recolha de um conjunto de restos de pequenos mamíferos. Estão representadas espécies de insectívoros (2), de lagomorfos (1) e roedores (5). A lista, que inclui os nomes vulgares em português (cf. bibliografia portuguesa), é como segue: INSECTÍVOROS Crocidura russula (Hermann, 1780) - musaranho, morganho, rato-musgo; TaIpa occidentalis Cabrera, 1907 - toupeira; LAGOMORFO Oryctolagus cuniculus (Linnaeus, 1758) - coelho, coelho bravo; ROEDORES Eliomys lusitanicus (Reuvens, 1890) - rato da serra, rato dos pomares, rato-ieirão; Pitymys duodecimcostatus (de Sélys-Longchamps, 1839) - rato-cego, rato-toupeiro, rato dos campos, rato; Arvicola cf. sapidus Miller, 1908 - rato-de-água, rato-aguarão; Apodemus sylvaticus (Linnaeus, 1758) - rato do campo, rato-terrenho; Mus spretus Lataste, 1883 - rato, ratinho-ruivo, ratinho das hortas. No QUADRO I é indicada a sua repartição, expressa em número de dentes, por cada um dos pontos acima indicados. QUADRO I - Leceia: Pequenos mamíferos da Camada 3 - Calcolítico inicial Taxa Lado int. de CC Lareira ZZI Lareira EX I Crocidura russula Taipa occidentalis 1 Oryctolagus cuniculus 2 2 Eliomys lusitanicus 2 Pitymys duodecimcostatus 7 2 Arvicola d. sapidus 1 Apodemus sylvaticus 4 2 9 Mus d. spretus 7 18 14 I Nd 22 23 27 I sp. 6 4 4 Lareira HHI I % 1.4 1.4 4 5.5 2 2.7 9 12.3 1 1.4 15 20.5 40 54.8 73 100 8 I Nd - total do número de dentes identificados. I sp. - total de espécies identificadas. 2.2. Discussão do significado da amostragem O total de restos identificáveis (dentes) de todas as espécies é de 73. Este conjunto é demasiado pequeno para servir de base fiável a considerações extensas ou com minúcias excessivas; pecariam por inconsistentes, ou poderiam ser falaciosas. Para mais, aquele conjunto é heterogéneo quanto à proveniência, repartido que está em 4 sub-conjuntos (I) Por M. T Antunes e P Mein. 124

Fig. 4 - Leceia/1988. Pormenor do interior da Casa HH. Em primeiro plano, à direita, a Lareira HH 1, de onde provieram os materiais, acumulados à esquerda, integralmente recolhidos. Calcolítico inicial (C.3). Foto de J. L. Cardoso. Fig. 5 - Leceia/1988. Vista geral da Casa HH, com a Lareira HH 1, ao centro e, em primeiro plano, o local de recolha dos materiais agora estudados. Calcolítico inicial (C.3). Foto de 1. L. Cardoso.

Fig. 6 - Leceia/1989. Vista da Lareira ZZ 1, situada no interior da Casa ZZ, cujo enchimento terroso foi integralmente recolhido. Calcolítico inicial (C.3). Foto de G. Cardoso. Fig. 7 - Leceia/1989. Vista da Casa Zz, com a Lareira ZZ 1, situada aproximadamente no seu centro. Calcolítico inicial (C.3). Foto de G. Cardoso.

, Fig. 8 - Leceia/1992. Vista parcial do Bastião EX, com a Lareira EX 1, em primeiro plano, no interior daquele. Calco lítico inicial (C.3). Foto de 1. L. Cardoso. Fig. 9 - Leceia/1992. Vista parcial do Bastião EX Em segundo plano, no seu interior, a Lareira EX 1. Calcolítico inicial (C.3). Foto de J. L. Cardoso.

correspondentes a outros tantos pontos de colheita; além disso, e tanto quanto se pode julgar, também parece heterogéneo quanto à composição. Das amostras, a menos pobre deu apenas 27 dentes de 4 espécies (QUADRO 1). Por isso, são precárias as comparações entre os espectros faunísticos correspondentes aos 5 pontos de proveniência. Quanto à determinação das espécies, mesmo das que estão minimamente representadas, não parecem subsistir dúvidas. Só Mus pode justificar alguma reserva ao nível da espécie: trata-se da destrinça entre Mus spretus e Mus musculus. Além de outros caracteres somáticos, a espécie selvagem M. spretus difere de M. musculus pelo maior tamanho dos primeiros molares e pelo carácter arcaico do lobo anterior de MI (AMANI & GERAADS, 1993). Ainda que a escassez do material não seja propícia à determinação da espécie, tudo leva a crer que os dentes de Mus sejam de atribuir a M. spretus. 2.3. Comparações com o castro do Zambujal No que concerne a Portugal, há, até o presente, um único estudo acerca de pequenos mamíferos de idade aproximadamente idêntica à de Leceia (Calcolítico), os do Castro de Zambujal, Torres Vedras (STORCH & UERPMANN, 1976). Citam (p. 131-137): Talpa caeca, Calemys pyrenaicus, Crocidura suaveolens, Pipistrellus sp., Eliomys quercinus lusitanicus (*), Arvicola sapidus (*), Microtus cabrerae, Pitymys duodecimcostatus (*), Pitymys lusitanicus, Apodemus sylvaticus (*) e Mus musculus. Algumas das espécies indicadas foram detectadas em Leceia, ou estão aí representadas por formas provavelmente conspecíficas mas que a pobreza do material não permite determinar com todo o rigor (*). Justificam-se alguns comentários: Talpa occidentalis, agora citada para Leceia, é aqui considerada como espécie distinta, enquanto que STORCH & UERPMANN p. 131) atribuem a T. caeca material do Castro do Zambujal. Apesar da diferença de nome, pode tratar-se do mesmo taxon, visto T. occidentalis ter sido segregada de T. caeca ao nível da espécie, avançando se além da primeira segregação, esta apenas como subespécie (Talpa caeca occidentalis). Deste modo, as toupeiras dos dois sítios podem perfeitamente ser conspecíficas e ter idêntico significado (ecológico e outro). Calemys é desconhecido em Leceia, mas raríssimo (uma só peça) no Castro do Zambujal, o que, conjugado com a raridade de Arvicola em ambos os sítios traduz afastamento e/ou pouca importãncia de cursos de água, que constituem o seu habitat. Crocidura: há diferença, cujo significado, que nos escapa, é provavelmente irrelevante. a ausência de morcegos em Leceia vai a par da quase ausência no Castro do Zambujal (uma só peça de Pipistrellus), pelo que não constitui diferença significativa. quanto a Eliomys, trata-se, nas duas jazidas, da mesma espécie; admitimos, aqui, que E. lusitanicus, já segregada de E. quercinus ao nível subespecífico (cf. STORCH & UERPMANN, 1976, p. 132), é uma espécie aparte. Parece, relativamente ao total, mais numerosa no Castro do Zambujal. ilações. a falta (aparente?) em Leceia da espécie relativamente arcaica Microtus cabrerae não sustenta quaisquer Pitymys duodecimcostatus: é espécie mediterrãnea, única representante do género encontrada em Leceia, onde parece (tanto quanto se pode avaliar) ser mais frequente, relativamente ao conjunto dos roedores, do que no Castro do Zambujal; nesta jazida, está também representada uma espécie mais "atlãntica", Pitymys lusitanicus. Apodemus sylvaticus é espécie bastante numerosa em ambos os sítios; excede os 20% dentre os pequenos mamíferos de Leceia. enfim, o género Mus está citado para o Castro do Zambujal, onde foram caracterizados (STORCH & UERPMANN, 1976, p.136) dois conjuntos populacionais, ambos atribuídos a Mus musculus, um de grande tamanho, outro de pequeno porte. Com as reservas por insuficência do material de Leceia (cf. 2.2.), a determinação parece pender, neste caso, para Mus spretus, mas é desejável retomar a questão, se possível com melhor fundamento. 128

Fig. 10 - Eliomys lusitanicus. M/3 direito. Foto de J. Pais ao microscópio electrónico de varrimento da FCT/UNL (Centro de Estudos Geológicos). Fig. 11 - Pytymis duodecimcostatus. M/I direito. Foto de J. Pais ao microscópio electrónico de varrimento da FCT/UNL (Centro de Estudos Geológicos).

2.4. Significado ecológico No que concerne ao significado ecológico, poderemos apontar, com base essencialmente em estudos sobre áreas em Portugal, não muito afastadas de Leceia (TRINDADE, 1988) o seguinte: Crocidura russula: habita maquial e sub-bosque (em particular de sobreiros, aliás mal representados nas imediações de Leceia), áreas agrícolas e pinhais, estando ausente de áreas rupestres ou, em regra, de charneca (=garriga); tem distribuição de carácter mediterrãneo; o odor repelente defende esta espécie dos predadores mamalianos, o gato por ex., mas não de rapinas nocturnas (mochos, corujas), de cujo regime alimentar faz parte significativa; Taipa occidentalis: é espécie essencialmente fossadora, escavando galerias em solos móveis e com alguma humidade; ocorre, entre outras, em áreas de cultivo e pinhais; Oryctolagus cuniculus: habita áreas em situações muito diversas com coberto vegetal mais ou menos importante; os baixos requisitos quanto a necessidades hídricas permite-lhe prosperar, inclusivamente, em charnecas mediterrâneas e áreas rupestres; Eliomys lusitanicus: predominantemente arborícola, tem regime alimentar em parte carnívoro; Pitymys duodecimcostatus; tem comportamento fossador, carecendo, por isso, de solos móveis; habita meios com alguma humidade - prados com poucas árvores, ou outros meios abertos, eventualmente cultivados; quanto à resistência à secura, é inferior à de Oryctolagus e Apodemus, que sâo extremamente resistentes; Arvicola cf. sapidus: tipicamente aquático, dulçaquícola, instala tocas nas margens dos cursos de águ, a; Apodemus sylvaticus: tipicamente granívoro e com baixíssimos requisitos hídricos, podem manter-se em áreas rupestres e charnecas mediterrãneas muito secas (onde outros roedores não sobrevivem), mas também em meios com outras características, incluindo áreas agrícolas, matas e a proximidade de habitações - é quase ubíquo; Mus spretus: espécie própria de habitats mais ou menos secos; como diferença relativamente a Mus musculus, não parece comensal do homem, embora possa ocorrer em locais frequentados por este; baixas necessidades hídricas e boa adaptabilidade permitem-lhe distribuição quase ubíqua. Qualquer tentativa de interpretação ecológica tem de ser encarada na perspectiva da presença do homem. Ainda assim, com amostragem tão escassa quaisquer hipóteses têm de ser postas com reserva. 2.5. Intervenção humana A intervenção humana há-de ter-se verificado, essencialmente, em torno de duas vertentes essenciais: obtençâo de alimento; e alteração das condições ambientais circundantes. No caso, apenas o coelho tem valor alimentar para o homem. A presença, rara, pode traduzir abate e consumo pelo homem, sem descartar por inteiro outras alternativas. Dos pequenos mamíferos restantes, o rato de água (representado por um único dente) é o menos pequeno; pelo tamanho e raridade, o papel como fornecedor de alimento seria inteiramente desprovido de significado, sendo improvável a sua captura pelo homem. Os outros roedores são de porte ainda menor. Quanto aos insectívoros, todos muito pequenos, não parecem consumíveis, até pelo odor repelente de alguns; terão, decerto, sido presa de rapinas nocturnas. A alteração antrópica das condições ambientais circundantes certamente existiu em consequência da pressão demográfica, localizada mas eventualmente intensa. Basta pensar na acção sobre o coberto vegetal, explorado como combustível e para outros fins, e provavelmente afectado por queimadas, processo universal para libertar áreas de cultivo, pastagem e eventual urbanização. Vários pequenos mamíferos, como Eliomys (talvez também Pitymys e Apodemus, senão outros) podem ter sido prejudicados. 130

Fig. 12 - Apodemus sylvaticus. M/I esquerdo. Foto de 1. Pais ao microscópio electrónico de varrimento da FCT/UNL (Centro de Estudos Geológicos). Fig. 13 - Apodemus sylvaticus. M/2 esquerdo. Foto de J. Pais ao microscópio electrónico de varrimento da FCT/UNL (Centro de Estudos Geológicos).

3 - CONCLUSÕES No estado actual dos conhecimentos e sem embargo das reservas expressas, o estudo de restos de pequenos mamíferos encontrados no povoado pré-histórico de Leceia conduziu às seguintes conclusões. 1 - Todas as espécies de pequenos mamíferos reconhecidas em Leceia vivem em Portugal e, em particular, na região em causa; a única possível excepção será, talvez, a dearvicola, dadas a degradação e poluição da ribeira próxima. 2 - Pela relativa frequência de Apodemus e de Mus spretus, predominavam meios secos nos arredores; constitui contra-prova a ocorrência mínima de Arvicola, colhida possivelmente junto da (ou na) ribeira. Querendo recorrer (o que é discutível) a um argumento por ausência, a de Galemys vai no mesmo sentido. 3 - A intervenção humana, mediante caça ou recolecção, apenas poderá ter-se verificado no caso do coelho. 4 - A preponderãncia de Mus, sobretudo em relação a Apodemus, pode estar relacionada com meio "urbano". 5 - Parece haver diferença de composição entre a amostra "lado interno de GG - C3", mais "rica" de Pitymys e pobre de Mus, por um lado, e o conjunto de "LC/89 - C3 Lareira ZZl" e "LC/92 EX 1 - C3"; aquela, pode significar, hipoteticamente, espaço exterior às habitações, enquanto o conjunto poderia, talvez, indicar o contrário. Note-se o carácter provisório desta interpretação que, no entanto, é perfeitamente compatível com as observações arqueológicas, consequência de acumulação natural desodimentos do lado interno de uma muralha, compatível com o abandono, ainda que temporária, do povoado. 6 - Para as mesmas amostras citadas em 5, o mais amplo espectro de espécies (6 vs. 4 e outras 4, respectivamente) sugere, apesar do mais baixo número de peças, condições mais variadas e influência humana menos intensa. 7 - A fauna de pequenos mamíferos revelada nos depósitos do Calcolítico inicial de Leceia é basicamente a mesma do castro do Zambujal, apenas com diferenças menores, reais ou aparentes: proporções (quantitativas) de Eliomys e, talvez, quanto aos Pitymys e Mus. BIBLIOGRAFIA AMANI, F. & GERAADS, D. (1993) - Le gisement moustérien du Djebel Irhoud, Maroc: précisions sur la faune et la biochronologie, et description d'un nouveau reste humain. C. R. A cad. Sei. Paris, t. 316, Série II, p. 847-852. CARDOSO, 1. L. (1993) - Leceia 1983-1993. Escavações do povoado fortificado pré-histórico. Estudos Arqueológicos de Oeiras (número especial), 164 p. CARDOSO, J. L. & SOARES, A. M. Monge (1996) - Contribution d'une série de datations 14C, provenant du site de Leceia (Oeiras, Portugal), à la chronologie absolue du Néolithique et du Chalcolithique de l'estremadura portugaise. Actes du Colloque de Périgueux (1995), Supplément à la Revue d'archéométrie (1996), p. 45-50. GAMA, M. M. (1957) - Mamíferos de Portugal (chaves para a sua determinação). Memórias e Estudos, Museu Zoológico da Universidade de Coimbra, 246. 246 + 1 p. MADUREIRA, M. L. & MAGALHÃES, C. P. (1980) - Small mammals of Portugal. Arq. Mus. Bocage (2ª. série), 7 (13), p. 179-2 14. MADUREIRA, M. L. & RAMALHINHO, M. G. (1981) - Notas sobre a distribuição, diagnose e ecologia dos Insectívoros e Rodentia portugueses. Arq. Mus. Bocage, série A, nº. 10, p. 165-263. 132

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