A IDEOLOGIA COMO O PAPEL DA MEMÓRIA SOCIAL COGNIÇÃO: NO GÊNERO PUBLICITÁRIO LÍNGUA. Ivandilson Costa* INTRODUÇÃO

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A IDEOLOGIA COMO COGNIÇÃO: O PAPEL DA MEMÓRIA SOCIAL NO GÊNERO PUBLICITÁRIO, Ivandilson Costa A IDEOLOGIA COMO COGNIÇÃO: O PAPEL DA MEMÓRIA SOCIAL NO GÊNERO PUBLICITÁRIO Ivandilson Costa* Resumo: Este artigo busca examinar o papel de elementos da cognição social na manutenção de uma ideologia sexista, quando considerada a publicidade impressa para o público feminino. Para tanto, lidamos com conceitos da psicolingüística, especialmente os relacionados à memória, bem como da análise crítica do discurso, que lida com aspectos como o das relações sociais de poder, da desigualdade, da hegemonia. Palavras-chave: Análise crítica do discurso; cognição social; memória. INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende discorrer acerca de aspectos relacionados àquilo que se concebe por cognição social, relacionando-a com a ideologia numa proposta crítica de análise de discurso. Para tanto, partimos de conceitos relacionados à psicolingüística, especialmente no que diz respeito às noções de memória memória de trabalho, memória de longo termo, memória episódica etc. Também são levados em conta pressupostos do que se compõe a análise crítica do discurso (ACD). Como material de abordagem, utilizamos parte do corpus de nossa recente pesquisa sobre o discurso da mídia publicitária para o segmento de mercado do público-alvo feminino. Nesse sentido, o objetivo é, portanto, examinar o papel de construções mentais notadamente a memória na manutenção de determinadas representações estereotipadas e sexistas de um discurso controla- 114 * Doutorando em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor assistente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

TODAS AS LETRAS K, volume 10, n.1, 2008 do pela ideologia machista, por intermédio da posição midiática, configurando o arcabouço de uma terceira vertente: a memória social. A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO Concebida como uma proposta de continuidade à lingüística crítica, a análise crítica do discurso (ACD) abrange uma abordagem teórico-metodológica que atribui grande relevância à compreensão da linguagem na condução da vida social e preenche uma lacuna quanto à atenção até então dada ao discurso como elemento que molda e é moldado pelas práticas sociais. Nesse sentido, a ACD considera o contexto de uso da linguagem como um elemento crucial, propondo pesquisas voltadas mais para relações sociais não tão estabilizadas de luta e conflito, materializadas por discursos como institucional, político, de gênero (gender), da mídia, e os conceitos de ideologia, poder, hierarquia são fundamentais para a interpretação ou explicação do texto. A ACD leva, ainda, em conta os pressupostos de que: a) o discurso é estruturado pela dominação; b) cada discurso é historicamente produzido e interpretado, isto é, está situado no tempo e no espaço; c) as estruturas de dominação são legitimadas pelas ideologias dos grupos que detêm o poder (cf. WODAK, 2004). Dijk (2001, p. 352), a esse respeito, assim se posiciona: [...] a Análise Crítica do Discurso é um tipo de pesquisa analítico-discursiva que primordialmente estuda o modo como o abuso, domínio e desigualdade do poder social são estabelecidos, reproduzidos e mantidos pelo texto/discurso em dado contexto sócio-político. Esse estudioso ainda acrescenta que o vocabulário típico de muitos estudiosos em ACD refere-se a noções como poder, dominação, hegemonia, ideologia, classe, gênero (gender), raça, discriminação, interesses, reprodução, instituição, estrutura social e ordem social. Na busca de uma abordagem que dê conta da interação entre discurso e estruturas sociais e do modo como os textos são produzidos e interpretados, a ACD vai buscar subsídios e áreas conexas como a filosofia (conceito gramsciano de hegemonia), a sociologia (concepção de estrutura social, de Giddens), a visão de discurso de Foucault, as teorias sobre intertextualidade que remontam a Bakhtin. Para a ACD, o discurso é tido como uma forma de prática social, realizada por intermédio de gêneros textuais. Segundo Fairclough (2001), isso tem as seguintes implicações: a) os indivíduos realizam ações por meio da linguagem; b) há uma relação bidirecional entre o discurso e as estruturas sociais, na exata medida em que o discurso é simultaneamente influenciado pelas estruturas sociais e as influencia; c) há uma preocupação com os recursos empregados na produção, na distribuição e no consumo dos textos, nos recursos sociocomunicativos, porquanto perpassados por discursos e ideologias. 115

A IDEOLOGIA COMO COGNIÇÃO: O PAPEL DA MEMÓRIA SOCIAL NO GÊNERO PUBLICITÁRIO, Ivandilson Costa Resenhando o trabalho de Fairclough, a esse respeito, Meurer (2005) nos deixa bem a par da abordagem crítica de análise de discurso, pela exposição das seguintes perspectivas teóricas: a) o discurso é uma forma de prática social em relação dialética com estruturas sociais; b) o discurso tem poder constitutivo; c) os textos contêm traços e pistas de rotinas sociais complexas, mas os sentidos são muitas vezes naturalizados e não percebidos pelos indivíduos; d) os textos são perpassados por relações de poder; e) a ACD privilegia o estudo da interligação entre poder e ideologia; f) os textos formam correntes: respondem a (e podem provocar ou coibir) outros textos; g) a ACD cultiva uma perspectiva emancipatória. O autor, assim, estabelece uma ponte entre os pressupostos da ACD e a abordagem de gêneros textuais, tema mais bem discorrido a seguir. A ABORDAGEM GENÉRICA: O GÊNERO COMO AÇÃO SOCIAL 116 Marcuschi (2002, p. 19) considera os gêneros como entidades que são: fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social de uma comunidade; fruto de trabalho coletivo, contribuindo para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia; entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa; eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos que surgem emparelhados a necessidades e atividades socioculturais, bem como relacionados a inovações tecnológicas. A produção de gêneros textuais ressalta Bazerman (2005) é, acima de tudo, a produção de fatos sociais; os textos consistem em ações sociais significativas realizadas mediante a linguagem. Conforme defende Marcuschi (2003), os gêneros são, dessa forma, atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de controle social e até mesmo ao exercício de poder: são nossa forma de inserção, ação e controle social. Eles, lembra o autor, estão muitas vezes imbuídos de valores, sendo mais do que guias neutros para a realização de certas atividades comunicativas. E tais valores são também sistemas de coerção social. Os gêneros, portanto, ajudam a organizar o poder na sociedade e, como tal, não são um reflexo da estrutura social, mas parte da própria estrutura, contribuindo para a manutenção e para o surgimento de relações sociais e relações de poder social, devem ser vistos na relação com as práticas sociais, os aspectos cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias, as atividades discursivas e no interior da cultura (MARCUSCHI, 2005, p. 19). Bazerman (2005) acredita que a produção, a circulação e o consumo ordenados de textos constituem a própria organização dos grupos sociais. Assim, as pessoas criam novas realidades de significação, relações e conhecimento fazendo uso de texto. Bazerman (2005), nessa perspectiva, caracteriza os gêneros textuais como:

TODAS AS LETRAS K, volume 10, n.1, 2008 a) fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de atividades socialmente organizadas, ou seja, são o que nós acreditamos que eles sejam; b) fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar; c) fenômenos que emergem nos processos sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos; d) elementos que tipificam muitas coisas além da forma textual, sendo parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais; e) processos que se configuram e se enquadram em organizações, papéis e atividades mais amplos por conjunto de gêneros, sistema de gêneros e sistema de atividades. Quanto a esses últimos aspectos, devemos compreender por conjunto de gêneros a coleção de tipos de textos que uma pessoa num determinado papel tende a produzir. Já os sistemas de gêneros apontam para seqüências regulares com que um gênero segue um outro gênero, dentro de um fluxo comunicativo típico de um grupo de pessoas. Por fim, a noção de sistema de atividade aponta para o fato de que, ao definir o sistema de gêneros em que as pessoas estão envolvidas, o indivíduo também identifica um frame que organiza seu trabalho, sua atenção e suas realizações (BAZERMAN, 2005, p. 31-34). IDEOLOGIA, MEMÓRIA, COGNIÇÃO SOCIAL Central no arcabouço teórico da ACD, a ideologia compõe, junto com as noções de discurso, cognição e sociedade, um conjunto daquilo que Dijk (2000, 2001) concebe como o quadro de referência multidisciplinar, situando-a no âmbito da cognição social. Importa, para tanto, considerarmos seu caráter cognitivo, para o que concorrem campos como os tipos de crenças, os tipos de memória, as representações sociais, os valores. Há, por conseguinte, uma relação muito estreita com os tipos de memória e as representações. Sabemos que diferentes tipos de memória podem ser associados a sistemas cognitivos diferentes. É muito conhecida, nesse âmbito, a distinção entre memória de trabalho e memória de longo termo (MATLIN, 2004). A primeira se reporta à capacidade limitada dos processos cognitivos, sendo de curta e imediata duração, bem como relacionada com o material que processamos em dado momento. Nesse campo, lembra Matlin (2004), alguns estudiosos não acreditam que a memória de trabalho e a memória de longo prazo sejam tipos diferentes de sistemas. A par disso, devemos considerar as ideologias como atreladas a uma dimensão valorativa, vinculada a dadas crenças compartilhadas socialmente e associadas às propriedades características de um grupo, como a identidade, a posição social, os interesses e os objetivos, as relações com outros grupos. Isso vem se vincular ao que podemos conceber como memória social (DIJK, 2000, 2001), cujos aspectos passaremos a explanar melhor com o estudo de caso explicitado na próxima seção. 117

A IDEOLOGIA COMO COGNIÇÃO: O PAPEL DA MEMÓRIA SOCIAL NO GÊNERO PUBLICITÁRIO, Ivandilson Costa DA CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA SOCIAL: O CASO DA PUBLICIDADE PARA A MULHER O gênero publicitário se constrói tendo por base a ideologia do receptor: seu cabedal de conhecimentos e o de seu grupo, seus sistemas de expectativas psicológicas, suas atitudes mentais e, o que mais é insidioso, seus valores. Nesse âmbito, relações originalmente comerciais são transformadas em relações pessoais: aquilo que é real se dilui cada vez mais em um simulacro, ao passo que o consumidor tem de se adaptar a uma ordem bem real de dominação e exploração. Bem marcante é o fato de que a publicidade reflete o olhar masculino: exigese que a mulher esteja engajada na atmosfera da novidade, renovada e renovando-se, a despeito do fato de que seu papel na sociedade esteja mudando porquanto esteja lutando cada vez mais pela superação de imagens pré-construídas, inerentes a uma sociedade patriarcal construída com base em valores tradicionais masculinos. Ora, as próprias relações de poder podem ser concebidas como aquelas estabelecidas entre as pessoas como membros sociais, em um processo de interação. Dijk (2001, p. 255) discute esse aspecto, ao apontar para a questão das desigualdades e da dominação de gênero, refletindo que 118 a despeito das significativas mudanças ao longo das últimas décadas no que tange à posição da mulher na sociedade, e a despeito da existência de diversas formas de discursos dissidentes, muitas das formas discursivas de dominação e desigualdade quanto ao gênero persistem ainda hoje, embora algumas vezes sob manifestações indiretas e veladas. A publicidade para a mulher, por conseguinte, representa ainda com insofismável relevo os interesses e valores do grupo social masculino. Este tem poder sobre o grupo feminino, aqui representado pelas receptoras dos textos publicitários. É possível, pois, ao grupo masculino, controlar o poder do grupo feminino, a partir do controle de seus desejos, planos e de suas crenças. Esse controle acaba sendo imprescindível para que essa relação de poder seja exercida e o que se demonstra mais imperioso mantida: é preciso, acima de tudo, colocar o grupo dominado, no caso a mulher, em seu devido lugar na estrutura social em que se insere. É exatamente por meio da linguagem que um grupo social exerce o poder sobre outro no conjunto de relações que estabelecem na sociedade a que pertencem. É a linguagem que mais contribui para a produção e a manutenção das relações sociais de poder. Em um movimento de mão dupla, a língua nos projeta uma certa imagem da sociedade e das relações de força que a regem. Em pesquisa anterior (COSTA, 2004), mostramos como o gênero publicitário recorre à construção de diversos recursos lingüísticos com expressão de novidade. A tessitura de uma atmosfera propícia ao novo na publicidade para a mulher se demonstra peculiar, pela insistência e pela multiplicidade de recursos empregados, cabendo em uma representação da imagem da mulher em nossa sociedade: é possível observarmos que tal característica contribui para a manutenção do mito da musa, dentre o conjunto dos mitos de marketing, vinculado ao ideal de beleza e juventude, traços impostos e esperados em relação à mulher. Dentre os recursos de linguagem empregados para a execução de um tal projeto, estão o uso de processos de formação de palavras, fórmulas fixas, terminologia. Mas é mesmo pelo emprego do léxico que a construção discursiva

TODAS AS LETRAS K, volume 10, n.1, 2008 desse ideal se concretiza. Termos vinculados ao campo semântico do novo se mostram como bastante recorrentes. O texto a seguir (Figura 1), destacado de nosso corpus, é representativo dessa tessitura, porquanto referencie uma nova coleção para um novo verão. Para você mostrar nos novos dias e noites as várias nuances que só você tem. Figura 1 O mito do novo na publicidade para a mulher. Fonte: Revista Cláudia, fev. 2002, p. 11. BALANÇO E OBSERVAÇÕES FINAIS Podemos delimitar o fato de o gênero textual ser definidor quanto à determinação e à manutenção das relações sociais de poder, uma vez que é a publicidade instanciadora daquilo a que vimos chamar de mito do novo nos textos publicitários de foco feminino, vinculado ao estereótipo da mulher-musa. Cabe salientar o quanto é revelador o fato de a mulher ainda estar enquadrada em grupo e papéis tradicionais e estereotipados, que são representativos de um status social ainda inferior, marcado por traços como dependência, vulnerabilidade, futilidade. Tal constatação focaliza a construção de uma assim concebida memória social, a par de outros padrões já enfaticamente discutidos e representativos da cognição como a memória de trabalho e a memória de longo termo. Uma dimensão de análise de tal natureza se mostra, por conseguinte, como bastante relevante para os estudos da língua, uma vez que contribui para abor- 119

A IDEOLOGIA COMO COGNIÇÃO: O PAPEL DA MEMÓRIA SOCIAL NO GÊNERO PUBLICITÁRIO, Ivandilson Costa dar temas bastante urgentes socialmente, tais como desigualdade, dominação, estabelecimento e manutenção das relações sociais de poder, ideologia, hegemonia principalmente se concebemos os gêneros como uma forma de ação social, que se prestam a toda uma sorte de controle e exercício do poder e que, conforme se constata, também podem ser tomados como vinculados a estruturas cognitivas. REFERÊNCIAS BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005. COSTA, I. O mito da novidade no texto publicitário para a mulher. 2004. 118 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2004. DIJK, T. van. Ideología y discurso: una introducción multidisciplinaria. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, 2000.. Critical Discourse Analysis. In: TANNEN, D.; SCHIFFRIN, D.; HAMIL- TON, H. (Ed.). Handbook of discourse analysis. London: Blackwell, 2001. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. da UnB, 2001. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.; MACHADO, A.; BEZERRA, M. (Org.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.. O papel da atividade discursiva no exercício do controle social. Recife: UFPE, SBPC, Abralin, 2003. Mimeografado.. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KAR- WOSKI, A.; BRITO, K.; GAYDEZKA, B. Gêneros textuais: reflexão e ensino. Palmas, União da Vitória: Kaygangue, 2005. MATLIN, M. Psicologia cognitiva. Rio de Janeiro: LTC, 2004. MEURER, J. L. Gêneros textuais na análise de Fairclough. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005. WODAK, R. Do que trata a ACD: um resumo de sua história, conceitos importantes e seus desenvolvimentos. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. esp., p. 223-243, 2004. COSTA, Ivandilson. Ideology as cognition: the role of social memory in the adverting genre. Todas as Letras (São Paulo), volume 10, n.1, p. 114-120, 2008. Abstract: This paper aims at analysing the role of social cognition elements in the establishment of sexist ideology, taking into consideration advertising addressed at female audiences. Its theoretical basis comes from psycholinguistics, mainly those concepts related to memory, as well as from critical discourse analysis, which deals with aspects such as power social relations, discrimination, hegemony. 120 Keywords: Critical discourse analysis; social cognition; memory.