A REPRESSÃO DAS LEIS PENAIS SOMENTE PARA OS ESCOLHIDOS Simone de Sá Portella Procuradora do Município de Campos dos Goytacazes/RJ; Mestre em Políticas Públicas e Processo pela UNIFLU/FDC; Colunista da Revista Contábil & Jurídica NETLEGIS; Professora de Direito Constitucional. Muito se fala na atualidade na necessidade de maior rigor nas leis penais, com mudanças no Código Penal, além de um novo Código de Processo Penal, que já está sendo objeto de elaboração. As pessoas ficam revoltadas quando acontece um crime, e querem que o culpado seja punido a qualquer custo. Há alguns mais extremados que defendem pena de prisão perpétua e, até mesmo a pena de morte. Isso não causa espanto quando os argumentos nascem de pessoas leigas, não estudiosas do direito. No entanto, quando o argumento vem de um jornal de notícias, deve haver um maior cuidado com as informações, porque a liberdade de imprensa, prevista na Constituição, não se confunde com a liberdade de manipular opiniões. Os formadores de opinião que, sustentam publicamente a necessidade de mudanças do Código de Processo Penal não sabem que o nosso Código atual foi inspirado no antigo Código Rocco, da Itália, na época do regime fascista. Eles ignoram que, após a Constituição de 1988 muitos dispositivos do CPP não foram recepcionados.
Quem defende um Estado autoritário, repressor, sem as garantias da presunção de inocência ou da não culpabilidade, contribui para destruir todas as conquistas de direitos fundamentais estabelecidas na Carta atual. Países sem tradição democrática, como o Brasil, são presas fáceis para ditaduras populistas, como a de Evo Morales, na Bolívia, e de Hugo Chávez na Venezuela. Não adianta dizer que, em países do Primeiro Mundo a repressão penal é maior. O desenvolvimento dos direitos humanos, inclusive dos acusados de crime, tem como nascedouro as Nações desenvolvidas. O povo brasileiro precisa se conscientizar que a violência urbana não é causada somente por omissão do Estado ou ausência de leis penais. As causas são estruturais. Está na origem de nossa cultura o convívio com o autoritarismo, o desrespeito aos direitos humanos, a não convivência pacífica entre os seres humanos. Uma criança de família bem pobre dificilmente terá oportunidades na vida. Não nos causará surpresa se, quando crescer, tentar a sorte no tráfico, e, se for uma mulher, se tornar uma prostituta. Aí seus familiares dirão: Não é justo ele (ela) ser preso, é uma pessoa boa, só não teve chances na vida. O que quero dizer é que tratar de violência não é simples. Não adianta pensar em mais repressão, porque se estará aumentando os poderes do Estado, que já são enormes, e diminuindo os direitos individuais.
Basta pensar nas desigualdades sociais para ver que o Brasil é envolto de privilégios. Uns conseguem tudo, e outros ficam na desgraça. O antigo recurso de protesto por novo júri, previsto na redação anterior do Código de Processo Penal, e revogado no ano passado, só se deu por causa de uma pessoa que foi assassinada, uma missionária religiosa, em razão de o acusado do homicídio ter sido absolvido no segundo júri. Isso, sem dúvida, é um privilégio, porque se fosse assassinada uma pessoa pobre, sem chances na vida, nada mudaria. O mundo continuaria o mesmo; as leis penais não se modificariam; e ninguém saberia que aquele ser humano existiu. Isso é de todo absurdo, porque a dignidade da pessoa humana é um atributo de qualquer pessoa pela sua própria condição humana. Ninguém por qualquer condição social, ou status de ser artista, rico, político, jornalista conhecido, celebridade pode ter qualquer privilégio. Mas, isso só está escrito na Constituição, pois nunca foi cumprido. É difícil para uma pessoa que nasceu em um ambiente pobre, sem acesso à escola, vivendo em um mundo que estimula o dinheiro a qualquer custo se tornar um cidadão honesto, sem violar as leis penais. É só ligar a TV e se verá propagandas de carros luxuosos; eletrodomésticos caros; novelas em que os protagonistas moram em mansões; pessoas que foram BIG BROTHERS esnobando o dinheiro ganho em troca da sua própria violação de privacidade. Enquanto isso, no mundo real as coisas são bem diferentes. A grande
maioria dos brasileiros que consegue emprego recebe salários muito baixos, não condizentes com o custo que a sociedade exige. Ainda que se diga que, há países desenvolvidos que adotam penas mais severas que as nossas, deve-se considerar que, nesses países não existe uma legião de miseráveis como aqui no Brasil. E os ricos e poderosos cumprem as disposições constitucionais e as leis, pois do contrário são punidos como qualquer um. Lógico que quem comete um ilícito penal deve ser julgado pelo Poder Judiciário, e se for comprovada a conduta contrária ao direito, deve responder pelos seus atos. Mas, não se deve esquecer que, todo acusado é um sujeito de direito, e deve ser lhe conferido o direito de provar a sua inocência. Qualquer discussão em torno da criminalidade deve ser feita com razão, e jamais com a emoção provocada pela mídia. Se dentro da racionalidade se chegar a uma conclusão de que deve haver algumas mudanças na legislação, isso deve ser discutido com todos os segmentos da sociedade. Ressalte-se, todavia, que as diferenças sociais não podem ser relegadas em prol de uma cultura de punição a qualquer custo, provocada pelos meios de comunicação. Devemos, sim, todos juntos, na condição de cidadãos, lutar para que a distribuição de rendas seja igual para todos, assim como o livre acesso à liberdade de se manifestar, sem a contaminação dos setores que impõem a sua opinião.
O que ocorre no Brasil é muito mais uma crise de democracia do que o que chamam de impunidade. Punição no nosso país existe, sim, mas para alguns, os escolhidos. Do mesmo modo há privilégios de qualquer natureza para outros, que também são escolhidos.