A violência ao corpo não subjetivado pela cultura da mulher mãe

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Transcrição:

A violência ao corpo não subjetivado pela cultura da mulher mãe Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini UNIPAR/Universidade Paranaense Umuarama/Pr.

Resumo A violência ao corpo não subjetivado pela cultura da mulher mãe A discursividade que localiza a mulher na sociedade, que modela sua relação com o outro, operacionaliza seus fazeres, se fizeram objetivo de análise desta pesquisa quando refletimos sobre a presença potente e normatizadora dos dispositivos sócio culturais atuantes no fazer-se mãe. Esta pesquisa bibliográfica/afetiva é resultante dos diálogos entre orientadora e acadêmicxs sobre as narrativas de mulheres usuárias de diferentes estabelecimentos de atenção e cuidado onde estagiárixs do curso de Psicologia da Universidade Paranaense estiveram realizando suas intervenções e neles e por eles foram atravessadxs, transformadxs e recriadxs. Re-significar as relações entre mulher e desejo, re-inscrever no corpo novas configurações, re-estabelecer contratos distantes daqueles regulados por discursos sobre maternidade poderão ser atitudes exigidas quando falamos de mulheres não mães. Ao cartografar conversações sobre a exigência social da maternidade, instigamos nossas escutas para os ensaios de uma pesquisa analítica de denúncia ou de convite a novos atravessamentos. A metodologia que fortaleceu nossos fazeres foi a proposta pelo método cartográfico instigada pela perspectiva foucaultiana e estudos feministas. Os diálogos sobre escutas de dicções femininas em situações de violência se fizeram desassossego em nossa prática de orientadora ao vivenciar diferentes movimentos que se articulam na contemporaneidade produzindo práticas discursivas das quais se constrói a politização do corpo feminino e do status da maternidade. Palavras chave: cartografia; narrativas femininas; estágios acadêmicos.

Introdução Os diálogos registrados nesta escrita são resultantes do projeto de intervenção proposto em razão do Estágio Supervisionado Curricular Obrigatório Específico I, do 4º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense UNIPAR, realizado dentro do ano letivo de 2016 que tem como indicativa a formação profissional em sua práxis, possibilitando o desenvolvimento de competências e habilidades frente a situações de qualquer forma de violência. A metodologia que fortaleceu nossos fazeres e empoderou os diálogos nestes espaços entre participantes e estagiárixs foi a proposta pelo método cartográfico e fortalecida com o arcabouço teórico da perspectiva foucaultiana. As escutas, as conversações, as narrativas e reflexões bem como as inúmeras afetações ali sentidas, fizeram destes encontros uma provocação para a sua continuidade e importância para os estabelecimentos, seus agentes, suas usuárias e para a Psicologia enquanto ciência e profissão. A escolha por trabalhar com a cartografia e escuta das dicções femininas em situações de violência se fizeram desassossego em nossa prática de orientadora e estagiárias ao vivenciar diferentes movimentos que se articulam na contemporaneidade produzindo práticas discursivas das quais se constrói a politização do corpo feminino da posição de mãe. Martins (2005) escreveu que entre elas estão as culturas de maternidade termo usado por Stuart Hall para representar as articulações e forças sociais que carregam sentidos fundamentais para conceber condutas desejadas pela norma da maternagem, estratégias de uma ortopedia moral que se utilizam de mecanismos para materializarem a produção de verdades originando discursos médicos, sociológicos, psicológicos, jurídicos e cristãos. Passos e Barros (2009) assim nos apresentam a cartografia: A cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção do conhecimento) do próprio percurso da investigação. (...). O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saberfazer ao fazer-saber, do saber na experiência a experiência do saber. Eis aí o "caminho" metodológico (PASSOS & BARROS, 2009, p. 17-18). O imbricamento entre o campo de pesquisa, o procedimento, a nossa posição política e os corpos/mulheres personagens e agentes deste projeto, agenciam nossa territorialização quando cartógrafa, que se afeta ao experimentar e fazer com estes encontros. Rolnik (1989) pode assim nos caracterizar enquanto cartógrafas: O que ele quer é participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de realidade. Implicitamente, é óbvio que, pelo menos em seus momentos mais felizes, ele não teme o movimento. Deixa seu corpo vibrar todas as frequências possíveis e fica inventando posições a partir das quais essas vibrações

encontrem sons, canais de passagem, carona para a existencialização. Ele aceita a vida e se entrega. De corpo e língua. Restaria saber quais são os procedimentos do cartógrafo. Ora, estes tampouco importam, pois ele sabe que deve inventá-los em função daquilo que pede o contexto em que se encontra. Por isso ele não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado (ROLNIK, 1989, p. 02). Os espaços de atuação e afetação foram escolhidos pelas acadêmicas de acordo com seus desejos e projetos de intervenção previamente conversados e organizados, então, apresentados e aceitos como proposta nestes estabelecimentos. Não pretendemos neste trabalho narrar as atividades desenvolvidas nestes locais, mas as conversações e atravessamentos que se fizeram em nossos corpos quando do momento dos encontros de orientação destas intervenções. Nosso grupo, composto por mulheres e suas diversidades, apresentou-se potente na militância contra as situações de violência, os estigmas e os discursos de ódio em relação ao nosso gênero, o que aguçou a necessidades de outras leituras e posicionamentos em outros lugares, lugares de empoderamento que tem a potência de promover a autonomia e superação das desigualdades enfrentada pelas mulheres. Borges (2016) escreveu sobre estas violências da desigualdade de gênero as quais aqui apresentamos como a não possibilidade da escolha pela maternidade que resulta no rechaço, no preconceito e no estigma de anormalidade do corpo feminino quando (...) as relações sociais, econômicas, culturais são atravessadas pelo sistema sexo-gênero que resultam em desigualdades, hierarquias e exclusões, impactando sobre tudo a vida das mulheres (BORGES, 2016, p. 244). Re-significar as relações entre mulher e desejo, re-inscrever no corpo novas configurações de afeto e potência, re-estabelecer outros contratos distantes daquele poderoso regime de regulação forjado por discursos sobre maternagem (discursos de poder/saber de acordo com Foucault), poderão ser atitudes ainda mais exigentes quando falamos de mulheres não mães. Quando nos propomos a cartografar a tentativa de desconstrução de tais conceitos, instigamos nossas escutas para os ensaios primeiros de uma pesquisa analítica de denúncia ou um convite a novos atravessamentos. Desejamos localizar os dispositivos que definem os processos de maternagem ou do seu não fazer maternagem quando do desejo de não ter filhos. Vamos ao encontro bibliográfico dos marcadores sociais que produzem efeitos estigmatizantes, misóginos e sexistas sobre mulheres que atravessam e são atravessadas por outros processos de subjetivação que não são aqueles normatizados pela leitura capital e cristã de mulher, corpos efeito de relações que depreciam a mulher que não desejou ser mãe. Corpos invisíveis por uma sociedade patriarcal e falocêntrica que não torna exequível oitivas das vozes manifestadas em seus desejos e não desejos presentes na relação de maternidade. Problematizamos os fazeres psi e suas intervenções quando a atenção às mulheres e suas narrativas desta opção, propondo enfrentamentos com uma Psicologia do preconceito, da moralidade e da estigmatização.

Percebemos ser substancial para Psicologia fomentar seus fazeres de modo ético, político e estético, através de ações que possibilitem ao profissional ir além do caráter investigativo estabelecido por mecanismos disciplinares que nos são sugeridos pelo sistema de atenção à mulher, seja representado por redes de atendimento e cuidado como saúde, assistência social, educação como também pelas políticas de direitos. Quando optamos por ouvir as narrativas de mulheres e seus processos de maternagem ou da não maternagem, somos provocadas pelos estudos feministas à processos de quebras, de margens e por que não performáticos, movimentos do cuidado de si. Estamos praticantes de leituras e narrativas engajadas às conversações que dilaceram as finíssimas posturas e condutas femininas instituídas pelos ensaios da vida heteronormativa e percebemos a potência da diferença que anda tão próxima destes corpos, mas que, talvez por comodismo ou mesmo por desejar os prováveis benefícios do corpo docilizado pelo vínculo do matrimonio e o status de mãe atuante, a maternagem se faz reconhecida como ação fácil de ser executada, atuação simples de ser desejada, bem diferente de outras narrativas pelas quais fomos atravessadas quando da participação de grupos direcionados à mulheres em diferentes estabelecimentos de cuidado e relacionados a processos de violência. São fundamentais para nossos olhos leitores de mulheres outras as pesquisas e escritos que compuseram o cenário para as discussões sobre o corpo feminino e o sexo desnaturalizado influenciados pelos estudos de Foucault (2015) e Judith Butler (2012) quando os estudiosos passam a escrever sobre o sexo como entidade discursivamente construída ao longo da história. Os modos pelos quais a identidade, sobretudo a de gênero/sexual é construída pelo e no discurso, traduzem os estudos de Butler (2012) quando a teórica postula o sujeito como processualidade, identidade aberta a formas de intervenção e ressignificação contínuas que consolidam a desconstrução do sujeito e possibilitam subversões. Para a estudiosa o gênero não é natural, porém natural pode se tornar nos casos em que se cristaliza por efeito das relações de poder sendo por ele conformada. Os corpos que nos acompanharam na construção destas conversações estruturadas sobre a forma de pesquisa, são aqueles que, em algum período, foram efeitos destas relações de poder e igualmente sugeridos como identidades interpretadas pela heteronormatividade e seus jogos estratégicos. Corpos que narram sobre as violências sentidas e sobre a criação de novas possibilidades, (des) caminhos, linhas de ruptura dos dispositivos em questão. Como ferramenta analítica podemos fazer uso do conceito de dispositivo, desenvolvido por Foucault: (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, posições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se

pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2015, p.244). Desse modo, constituem-se também os dispositivos que instrumentalizam os padrões subjetivos da maternagem enunciados durante a história, suas diferentes linhas relacionadas com a dimensão do poder, seus jogos estratégicos de saber e os processos de subjetivação que remetem a outras tantas formas de constituir-se. Estes dispositivos, seus mecanismo, forças e discursos, se ocupam em ver, dizer e exigir diferentes modalidades maternas, um investimento tático do poder sobre os corpos das mulheres e sob a forma de se fazer sujeito/mãe/maternagem que são instauradas a partir de novas edificações históricas. Nosso movimento enquanto cartógrafas, não pretende reunir semelhanças entre formas de ser mulher sem se tornar mãe, mas sim ouvir as diferenças entre elas, incomodando-se com conceitos binários desta relação mãe/filho, a boa/a má mãe, a normal/a anormal, a correta/ a incorreta, aquela a ser modelo/aquela marginalizada. Como afirmou Foucault (2005), a diferença é produtiva, produz modelos, regras e padrões de comportamento, ensina os modos de ser e agir, é um dos resultados do biopoder, uma incessante produção de diferença entre modalidades de maternagem, aquela produzida como fato natural, originário da mulher ou aquela que está fora do padrão, mas que por ser identificada pode ser especulada, inquirida e discriminada. Judith Butler (2003) chamou este sistema regulatório e disciplinar de sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, o qual, segundo a escritora, seria mantido a partir de relações de coerência e continuidade, apresentando que se o sujeito nasce macho, será necessariamente do gênero masculino e seu desejo será heterossexual com sua prática ativa, já quando nasce do sexo fêmea, seu gênero será firmado como feminino para que seu desejo seja heterossexual e suas práticas passivas, inclusive a maternagem, resultado este predito pelos dispositivos da heteronormatividade e do falocentrismo. Para a estudiosa, a naturalização do sexo e do gênero é resposta do efeito de reprodução do modelo heteronormativo pela qual os sujeitos são capturados pelas ações e imposições do poder exercido por agentes políticos que fabricam o exercício da conduta esperado pelas tecnologias políticas, morais e cristãs. Tal como a filosofia foucaultiana, os estudos feministas nos instigam em não localizar o corpo da mulher, em lugar algum, nem mesmo na maternagem já que, como escreveu Goellner (in Louro; Felipe e Goellner, 2012 Corpo, Gênero e Sexualidade), um corpo, não é só corpo, é também entorno, roupas, acessórios, intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam (...) (LOURO; FELIPE, GOELLNER. 2012, p. 29). Michel Foucault foi um dos principais disparadores dos estudos feministas quando apresentou em sua obra A História da Sexualidade I: Vontade de Saber a sexualidade enquanto dispositivo histórico de poder desenvolvido na cultura ocidental sendo o sexo um sistema de utilidade e regulação social. Nesta perspectiva: A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas a grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a

incitação dos discursos, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 2005, p. 100). Assim, estamos desejantes em cartografar junto com os estudos feministas, as narrativas que apresentam estas outras mulheres, a mulher da heterotopia (FOUCAULT,2013) e nos fazemos engajados a uma crítica feminista à ciência e ao pensamento ocidental que, conforme Harding (1993), necessita de uma revisão urgente para atentarmos aquilo que a ciência não faz, as rações da exclusão e das ausências, mesmo quando não reconhecidas pela primeira. Ao aceitar a instabilidade de categorias analíticas, reconhecemos que a própria teorização é perigosamente patriarcal, por isso estamos propondo o desejado encontro da reflexão teórica com a própria instabilidade como recurso de pensamento e prática, oportunidades para propor melhores problemas do que aqueles dos quais partimos (HARDING, 1993, p. 12). Para Foucault (1992) é necessário problematizar o corpo construído, estranhá-lo, é preciso romper com os essencialismos atribuídos a ele pela cultura e dar atenção analítica a educação incentivada e incorporada aos modos de se fazer homens e mulheres, educação esta entendida pelo estudioso como um conjunto de saberes e poderes que são investidos no corpo e nele se instauram num processo de disciplinamento e assim o potencializa, economizando os gestos evitando o desperdício de suas forças produtivas, por que não corpos fêmeos modelados para ser mães e exercer o desejo da maternagem? Propomos o fazer com de uma pesquisa compartilhada e pertencente, em busca de inquietações que primem pela escuta de sujeitos não apenas produto ou efeito de normativas sociais, mas também produtores delas, num devir contínuo destes fluxos de diálogos e narrativas coletivas. Assim, a realização do caminho que ainda estamos cartografando e nele inserindo o próprio corpo, poderá continuar a oferecer valiosas descobertas quando se propõe a ouvir as narrativas do corpo feminino predestinado culturalmente para ser mãe, a análise dos dispositivos regulatórios que permeiam os processos maternagem e dificultam as relações afetivas de corpos desejantes de uma certa entidade social chamada família, bem como os processos condenatórios do não desejo ou não sucesso do corpo da maternagem. Não se conclui o que se tem muito a falar/escrever A necessidade de pensar/sentir/ouvir sobre os diferentes marcadores sociais que limitam a efetividade de direitos humanos oferecidos às mulheres, é um desafio interessante a ser proposto quando refletimos sobre os novos campos de atuação do psicólogo na contemporaneidade. Nesta pesquisa bibliográfica, as escritas, intervenções e encontros do sujeito pesquisadora, bem como suas intervenções foram norteadas pela perspectiva foucaultiana, pelos estudos feministas e atravessamentos da cartografia. Ao apresentar as práticas psicológicas revelando-se a favor das narrativas sobre os processos de subjetivação realizados sobre os corpos de mulheres que optam pela não maternagem, nos atrevemos a desenhar caminhos com a cartografia, uma abordagem teórico-metodológica que

respeita as variações e nos alerta para o não reducionismo. A cartografia nos auxilia a perceber diversas linhas de saber-poder que criam e recriam as subjetividades que se constroem a partir de nossas relações com o mundo, em constante recriar-se, refazer-se, em processualidade, entendidas como [...] essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 33). O imbricamento entre o campo de pesquisa, o procedimento, a nossa posição política e os corpos/mulheres personagens e agentes deste projeto, agenciam nossa territorialização quando cartógrafas, que se afetam ao experimentar e fazer com estes encontros. Desejamos nos fortalecer como corpo político que transforma, capaz de reinventar-se, disposto a quebrar conceitos, paradigmas, estereótipos e que é capaz de transforma quem está ao seu redor. Como diz ARENDT (1998, p. 44) Se o sentindo da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço- e em nenhum outro- temos de fato o direito de esperar milagres, não o milagre de Deus e/ou crenças religiosas, mais como ela ainda diz não porque fôssemos crentes em milagres, mais sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo (ARENDT, 1998, p. 44). Assim, por mais que em nossas intervenções ainda sejam vozes pouco ouvidas, sentimos estar fazendo o milagre de Arendt, abertos a possibilidade de começar a todo momento, porque como diz a autora ainda o homem é sempre em si um novo começo. Para Spinoza (2007) é no encontro destes corpos múltiplos que suas potências de agir no mundo se transformam, sendo que estes encontros geram nos corpos envolvidos um estado que o estudioso chama de afecções as quais variam em grau de potência, e que chamamos de afeto ou diante a perspectiva deleuziana: o affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o affecus remeterá transição de um estado a outro (...) por afetos entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse mesmo corpo é aumentada (alegria) ou diminuída (tristeza), favorecida ou impedida (DELEUZE, 2002, p. 56). Esta ideia também foi discutida por Deleuze e Guatarri (1997, p.21) quando escreveram: o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu. Deste modo, falar sobre a militância de mulheres psicólogas nestas experimentações do feminismo, trabalhar a formação profissional na academia provocando este desassossego nas estagiárias e permitir-se transformar-se no coletivo é repensar a formação, recriar-se, deixar ser atravessada, sentir o corpo convertido em normas social de maternidade e transgredir a cultura machista e patriarcal. É escuta a voz foucaultiana quando da afirmação de que devemos constantemente realizar uma ontologia crítica de nós mesmos (...) uma atitude, um êthos, uma via filosófica (...) a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e a prova de sua ultrapassagem possível (FOUCAULT, 2005, p. 351), o que por sua vez se aproxima e reforça as proposições feitas por Beatriz Preciado (2010) quando denuncia a tendência de sermos levadas a acreditar na existência de um único corpo, um único sexo, um único gênero. Somos o desejo de ser múltiplas, de fazeres diversos em nossas intervenções como profissionais, em corpos livres enquanto mulheres, em atitudes não normalizadas pelo ato da maternidade e diante o direito de

escolher o que defendo ser melhor para o meu corpo. Um movimento que transcende os estereótipos da sociedade ainda tão limitada aos padrões morais e as leituras machistas da formação do corpo feminino para a maternidade e procriação. Referencias: ARENDET, H. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BORGES, L. S. Narrativas, Gênero e Política: Conhecimentos que (nos) transformam: contribuições feministas para a Psicologia. BH, PUC Minas. P 243-256. 2016. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 2012. DELEUZE, G. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987/1999. FOUCAULT, M. Ditos e escritos II: arqueologia das ciências e histórias dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução Roberto machado. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. FOUCAULT, M. A História da sexualidade I. A vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015. MARTINS, A.P.V. Memórias maternas: experiências da maternidade na transição do parto doméstico para o parto hospitalar. História Oral, v.8, n. 2, p. 61-76, jul-dez 2005. GUATTARI, F. ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 1996, 2005. HARDING, S. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Revista Estudos Feministas, n.1/93. p. 7 a 31, 1993. LOURO, G. L., NECKEL, J.F.; GOELLNER, S. V. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2012. PASSOS, E.; BARROS, B. R. A cartografia como método de pesquisaintervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. PRECIADO, B. Manifesto contrasexual. Práticas subversivas de identidade sexual. 2010. ROLNIK, S. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989. SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2007.