semeiosis semiótica e transdisciplinaridade em revista

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Transcrição:

semeiosis semiótica e transdisciplinaridade em revista transdisciplinary journal of semiotics A forma e a cor do sentido: a pintura barroca em Minas à luz da semiótica plástica Morato, Elisson Ferreira; Professor de Língua Portuguesa do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET MG) elissonmorato@yahoo.com.br resumo Este trabalho examina a produção de sentido em uma pintura do período barroco em Minas Gerais pela teoria semiótica greimasiana, especialmente através dos conceitos de semissimbolismo, plano de conteúdo e plano de expressão. Para esta semiótica, o texto é composto de um plano de conteúdo e um plano de expressão. Em um texto pictórico, estes planos podem ser correlacionados entre si através de um tipo de relação chamada semissimbólica, que é aquela feita entre as categorias dos dois planos. Relações Semissimbólicas permitem observar como o assunto ou conteúdo do texto se expressa através de elementos como formas, luzes e cores. p a l a v r a s-c h a v e: semiótica plástica, semissimbolismo, plano de conteúdo, plano de expressão abstract This work examines the production of meaning in a painting of the Baroque period in Minas Gerais through Greimas semiotic theory, especially through the concepts of semi-symbolism, content plan and expression plan. For such semiotic, the text consists of the content plan and the expression plan. In a pictorial text, these plans may be correlated with each other through a kind of relation called semi-symbolism, which is that made between categories of two plans. The semisymbolism relations allow us to observe how the subject or content of the text is expressed through such elements as shapes, lights and colors. k e y w o r d s: plastic semiotics, semi-symbolism, content plan, expression plan m a i o / 2011

A teoria semiótica de Greimas se preocupa com o estudo da significação textual. Como o conceito semiótico de texto é amplo, essa teoria, surgida no fim da década de 1960, se interessa também pela pintura, escultura, música, cinema, quadrinhos etc. Ao desdobramento teórico que se volta para o estudo de textos visuais dá-se o nome de semiótica plástica, porque se interessa pela análise de significantes plásticos. Para esta semiótica, o texto é definido como a junção de um plano de conteúdo com um plano de expressão. No plano de conteúdo encontramos o assunto do texto, seus conceitos, valores, sujeitos e modos de enunciação, já no plano de expressão temos um código específico (verbal, visual, sonoro, gestual etc.) através do qual o conteúdo se torna perceptível. Independentemente do tipo de código usado na expressão, todo texto tem uma dimensão inteligível, seu plano de conteúdo, e uma dimensão sensível, o plano de expressão. Assim, a compreensão global de um texto depende tanto da percepção do código quanto da interpretação do assunto tratado. Embora essa dimensão sensível ocorra em qualquer tipo de texto, não podemos nos furtar de crer que nos textos não-verbais, como pintura, ela pode ser observada de maneira mais nítida. Nessa perspectiva, o presente trabalho apresenta um estudo sobre a significação de um texto pictórico do artista barroco Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), através dos postulados da semiótica plástica, desdobramento da teoria de Greimas, levada adiante por Jean-Marie Floch em meados da década de 1980. Através dos conceitos de plano de conteúdo, plano de expressão e semissimbolismo, procuramos evidenciar como os elementos sensíveis de um texto pictórico dialogam com o conteúdo, gerando a significação global. Nossa abordagem se abre também para contribuições da História da Arte, especialmente para o trabalho de Wölflin (1989) sobre a arte barroca e de Affonso Ávila (1971) sobre o barroco mineiro. Diálogo teórico não apenas previsto, como também praticado na semiótica plástica, graças ao trabalho de Floch (1985). Desse modo, esperamos mostrar como, através do diálogo da semiótica com a história da arte, podemos formular uma elucidação teórica capaz de evidenciar o processo de significação de uma pintura, bem como apontar particularidades no plano de expressão desse tipo de texto visual. Se o plano de conteúdo é um elemento invariante, posto que ocorre em qualquer tipo de texto, o plano de expressão varia conforme o tipo de código utilizado e, ao mesmo tempo, distingue os vários tipos de texto (verbal, visual, sonoro etc.). Dessa maneira, um mesmo assunto pode ser expresso através de diversos elementos de expressão sem que seu conteúdo varie ou se perca. O plano de conteúdo do texto é formado por um conjunto de estruturas que dão suporte à significação. Essas estruturas são organizadas em três níveis de complexidade crescente: o Percurso Gerativo de Sentido, o qual é dividido 2

em: nível fundamental, nível narrativo e nível discursivo. Os elementos com que são preenchidas essas estruturas, por sua vez, podem encontrar correspondência com elementos do plano de expressão, de modo a estabelecerem uma correlação entre aquilo que o texto diz e como o texto diz aquilo que diz. São as chamadas relações semissimbólicas. O semissimbolismo é um conceito inaugurado por Greimas e Courtés (2008: 343), mas que teve um desenvolvimento mais amplo e uma maior aplicabilidade graças aos trabalhos de Floch (1985: 14-15). Como nos informa Fiorin (1999: 186), o semissimbolismo ocorre através de uma conformidade entre os planos de expressão e do conteúdo (...) pela correlação entre categorias dos dois planos. Trata-se de uma forma possível de correlação entre o plano de conteúdo e o plano de expressão. De acordo com esse autor, o semissimbolismo ocorre quando os termos de uma categoria do significante podem ser homologados àqueles de uma categoria do significado (tradução nossa) (FLOCH, 1985:14-15). Tal como no quadro a seguir: PLANO DE EXPRESSÃO (CÓDIGO SEMIÓTICO) Categoria A vs B quadro 1: correlação entre o plano de expressão e o plano de conteúdo PLANO DE CONTEÚDO (DISCURSO) Categoria X vs Y Essa conexão de categorias dos dois planos do texto é, de certo modo, arbitrária, já que nem sempre há uma correspondência entre aquilo que o texto diz e o modo como ele é expresso. Por exemplo, em uma obra barroca, a oposição /divindade/ vs /humanidade/ do plano do conteúdo pode ser representada, no plano da expressão, pela oposição /luz/ vs /sombra/, o que criaria relações semissimbólicas entre os dois planos, mas não há uma homologação predeterminada desses elementos. Ou seja, em outra pintura, o termo /sombra/ poderia estar para o termo /divindade/ assim como o termo /luz/ para o termo /humanidade/. Por sua vez, o entendimento definitivo da noção de semissimbolismo depende da abordagem do plano de conteúdo e do plano de expressão, o que nos dedicamos a fazer a seguir. O discurso do texto é dado à maneira de uma sequência narrativa, embasada pela mudança de estado operada ou sofrida por um ou mais sujeitos. Nesse plano, o nível fundamental contém as estruturas básicas da significação, 3

que são pares de conceitos opostos e que, ao mesmo tempo, mutuamente implicados. São exemplos desses pares conceituais: /morte/ vs /vida/, /opressão/ vs /libertação/, /natureza/ vs /cultura/. Os conceitos fundamentais, chamados de oposições semânticas de base, são articulados no quadrado semiótico, um esquema que embasa as etapas seguintes do percurso gerativo de sentido. Trata-se de um arranjo lógico no qual estão dispostos os conceitos fundamentais que representam a transformação de estado ocorrida no texto, conforme ilustramos abaixo: a b n ã o-a n ã o-b A e B, por seu turno, são preenchidos conforme o conteúdo do texto que se analisa. Esse arranjo representa possibilidade de uma passagem de um estado A para um estado B ou vice-versa, passagem que é intermediada pelos termos Não-A ou Não-B. Assim, teríamos as seguintes possibilidades de mudança de estado: a => não-a => b ou b => não-b => a. Os termos A e B são também revestidos de axiologizações positivas, euforia, ou negativas, disforia. O termo eufórico representa, desse modo, o estado com o qual o actante busca estar em conjunção, estando, simultaneamente, em disjunção com o termo disfórico. Chegando ao nível narrativo, os termos A e B são representados por objetos, então chamados de Objeto-valor (Ov). É também nesse nível que observamos o programa narrativo (PN), que representa a ação dos sujeitos. O programa narrativo deve ser interpretado como uma mudança de estado efetuada por um sujeito qualquer (S1), que afeta um sujeito qualquer (S2) (GREIMAS; COURTÉS, 2008: 389). Nesse caso, temos um sujeito que é dotado de um poder de fazer com que outro sujeito realize uma mudança de estado. Há, de maneira geral, dois sujeitos no nível narrativo, um manipulador e um manipulado. Há ainda a ocorrência de uma manipulação, a mudança de estado, dada pela relação de conjunção ou de disjunção do sujeito manipulado com um objeto-valor. O nível narrativo também apresenta uma espécie de percurso que então será preenchido com os elementos dados pelo próprio texto que constitui o objeto de análise. Percurso que, então, é representado da seguinte maneira: 4

PN= F [S1 (S2 Ov)] ou PN= F [ S1 (S2 U Ov)] onde: PN= programa narrativo F= função S1= sujeito de fazer (manipulador) S2= sujeito de estado (manipulado) = estado de conjunção sujeito com um estado inscrito na narrativa U = disjunção do sujeito co m um estado inscrito na narrativa Ov= objeto-valor que representa um dos estados possíveis do sujeito. = fazer A estrutura do programa narrativo apresentada anteriormente pode ser lida da seguinte maneira: um sujeito manipulador (S1) faz ( ) com que o sujeito manipulado (S2) mude seu estado de coisas entrando em conjunção ou disjunção ( U) com um determinado objeto-valor (Ov). Essa estrutura, por sua vez, é semantizada através de um programa narrativo composto pelas seguintes etapas: manipulação => competência => performance => sanção. Essas etapas como que descrevem como se dá a transformação narrativa decorrida da interação de dois sujeitos (S1 e S2). No programa narrativo, um destinador manipulador (S1) manipula um destinatário-sujeito (S2). Uma vez manipulado, S2 acredita possuir uma determinada competência com a qual realiza uma performance. Com a performance realizada, ele (S2) é sancionado por um destinador julgador, que pode ser S1 ou outro sujeito inscrito na narrativa. A sanção ocorre em dois níveis: cognitivo e pragmático. Na sanção cognitiva, é reconhecida a performance de S1; na pragmática, é dada uma espécie de prêmio ou punição pela performance realizada. Uma vez concluídas as operações do nível narrativo, chegamos ao nível discursivo, que é o mais superficial e, ao mesmo tempo, o mais complexo. Nele podemos constatar que a transformação narrativa é discursivizada, convertida em discurso. Nesse nível, verificamos dois procedimentos: a enunciação e a colocação do discurso em temas, tematização, e figuras, figurativização. A enunciação da transformação inscrita na narrativa é embasada pelas categorias de pessoa-tempo-espaço. Nesse caso, a narrativa pode ser enunciada através de um Eu-Aqui-Agora, ou um Ele-Lá-Naquele tempo, ou um Eu- Lá-Naquele tempo. No primeiro caso, temos os efeitos de subjetividade, já 5

que o enunciador se coloca no discurso. No segundo caso, temos o efeito de objetividade, já que o enunciador simula se ausentar do texto. É também no nível discursivo que o enunciador transforma a narrativa em um simulacro do mundo, através de uma espécie de efeito de real. Esse efeito de real é dado através de dois procedimentos: a tematização e a figurativização. A tematização é a colocação dos conteúdos da narrativa em temas, os quais são termos abstratos que representam valores, crenças ou fatos do mundo (FIORIN, 1999: 181). São exemplos de temas: vergonha, beleza, amargura, coragem etc. Esses temas, por sua vez, são representados por figuras, que são termos concretos, como árvore, pedra, rio, mulher, homem etc. Depois de ser enunciada, figurativizada e tematizada, a narrativa será trabalhada segundo um plano de expressão. O que significa que o mesmo conteúdo pode ocorrer tanto em um texto verbal quanto em um texto não-verbal. Na junção do plano do conteúdo com o plano de expressão, temos o processo de textualização. De certo modo, a textualização é uma correlação definitiva entre o discurso contido no texto e os elementos do código semiótico usado na expressão. Nessa textualização podemos encontrar o engendramento de relações semissimbólicas. Entretanto, ao contrário do que ocorre com o plano de conteúdo, o plano de expressão não possui uma hierarquização de estruturas definidas e consolidadas sobre as quais possamos aplicar os elementos retirados do texto analisado. Não temos um plano de expressão que se proponha universal, mesmo para os textos visuais. Tal dificuldade se deve ao fato de que mesmo o universo de textos visuais possui exemplares de expressão particular: uma escultura, por exemplo, não usa precisamente os mesmos elementos expressivos que a pintura ou a fotografia. Por outro lado, encontramos trabalhos diversos que nos auxiliam a estabelecer níveis e categorias para a montagem de um plano de expressão pictórico.no caso dos textos visuais, haveria uma dimensão mais profunda sobre a qual se assentariam as demais. De acordo com Greimas (2004: 84-86), trata-se da dimensão topológica: a espacialidade do quadro, a qual permite a disposição das formas das cores e da luz. Para o autor, o espaço do quadro, ou da imagem produzida, estipula uma espécie de espaço significante em que a narrativa é enunciada visualmente, formando um todo significativo. Devemos enfatizar ainda que podem ser observadas outras dimensões no plano de expressão dos textos visuais, todas embasadas na dimensão topológica. Essas dimensões estariam relacionadas com o uso das cores (dimensão cromática), da luz (dimensão fotológica), e das formas (dimensão eidética) (OLIVEIRA, 2004: 118). Entretanto, a ocorrência dessas dimensões não é relevante em todos os textos visuais. Por essa razão, apresentamos a análise do texto levando em conta os diferentes graus de complexidade observados no plano de expressão. 6

Se por um lado a semiótica greimasiana nos oferece um amplo instrumental teórico, por outro ela não descarta contribuições de outras áreas, contribuições que foram inclusive, importantes, por exemplo, na elaboração de um desdobramento da teoria greimasiana voltado para o estudo de textos plásticos, a semiótica plástica ou visual. Assim, lidando com textos estéticos, adotamos subsídios teóricos da História da Arte que possam nos auxiliar nas abordagens do plano de conteúdo e, de maneira especial, do plano de expressão. Auxílio que encontramos no estudo de Heinrich Wölflin (1989) sobre a arte barroca, o que nos ajudará a pontuar mais precisamente dados do corpus imprescindíveis para a análise. No quadro a seguir procuramos apresentar algumas dimensões relacionadas ao plano de expressão que nos parecem eficazes para o estudo de um texto pictórico. Trata-se de uma montagem preliminar baseada em trabalhos sobre semiótica plástica ou visual de Lopes (2003), Oliveira (2004) e Greimas (2004). Dimensão/Nível Eidética Fotocromática Topológica Exemplo de sintagmas Largo vs estreito Horizontal vs vertical Cor quente vs cor fria Alto vs baixo Central vs periférico quadro 2: plano de expressão na pintura O quadro anterior foi construído levando em conta as características da pintura barroca, embora a espacialidade do quadro possa ser um elemento aplicável a outros estilos de pintura. De acordo com Wölflin (1989: 46-77), a arte barroca apresenta uma relação particular entre luz e cor, já que a luz colabora para dar tonalidade às cores e criar simultaneamente os espaços claros e escuros. Também na pintura barroca, o artista não desenha as formas para, em seguida preenchê-las com as cores, já que é através da colocação das cores que ele compõe as diversas formas que irão formar os elementos figurativos da pintura. Apresentamos um plano de expressão pictórico no qual a espacialidade da superfície pintada aparece como nível mais profundo. Sobre a espacialidade do quadro é que serão colocadas as cores em interação com a luz. Lembramos que a luz é o elemento que não apenas cria as diferenças entre claros e escuros, mas aquele que dá a tonalidade das cores. As cores e a luz, por sua vez, são elementos fundamentais na pintura barroca para definir as formas. a obra: contexto e plano do conteúdo A obra que analisamos é uma pintura executada no forro na capela-mor da Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara (MG), cidade situada em uma região famosa pela quantidade e pela qualidade de exemplares artísticos e 7

arquitetônicos do período barroco no Brasil. Realizada em 1806 por Manoel da Costa Ataíde, alcunhado de Mestre Ataíde, a pintura possui grandes dimensões e representa a assunção de Jesus, momento em que após ressuscitar e aparecer aos apóstolos, Cristo os reúne no monte Tábor e se eleva para os céus. Mestre Ataíde pintou forros de diversas igrejas mineiras, e também deixou obras em tela ou cavalete. Guardando as características do barroco, como a composição assimétrica, a utilização da linha curva e da diagonal, os jogos de claro-escuro, e a movimentação da formas, a obra de Ataíde possui também suas próprias feições: seus personagens são mulatos, a musculatura destes é vigorosa e as fisionomias têm um aspecto bastante humanizado, sem a austeridade comum em imagens de santos ou divindades. Há também um uso marcante das cores, em especial o azul e o vermelho. A morte do artista, ocorrida em 1830, é usada muitas vezes para marcar o fim do período barroco em Minas (OLIVEIRA, 1997: 468), posto que após esse ano cessam as criações artísticas de vulto e nem há notícias de algum nome relevante nas artes. Em sua trajetória como pintor, Mestre Ataíde recebeu influência notória da pintura italiana, a qual se caracterizava pelo efeito de perspectiva através da utilização de elementos arquitetônicos (como pode ser visto nos anexos deste artigo). Essa técnica era oriunda do século XVII e passou a ser chamada por diversos nomes: pintura arquitetônica, pintura de perspectiva aérea, pintura em trompe-l oeil (ilusão de ótica), ou simplesmente pintura de forro (OLIVEIRA, 1997: 468). Cronológica e estilisticamente, a obra de Mestre Ataíde é oriunda do período rococó, vigente em Minas entre as décadas de 1760 e 1830, que consiste no último ciclo do barroco mineiro. A obra que analisamos neste artigo apresenta as características fundamentais desse tipo de pintura: do alto das paredes partem colunas que sustentam um medalhão central emoldurado com concheados (rocalhas). Nesse medalhão temos uma visão celestial representando alguma passagem gloriosa da vida de Cristo. Nessas composições as linhas partem dos cantos para o centro, seguindo linhas diagonais que oferecem ao expectador efeito de profundidade. Representando passagens dos evangelhos, a pintura barroca, desse modo, não era uma arte apenas decorativa, ela traduzia as aspirações e inquietações de uma época em que a religião norteava a vida e a morte do homem. Tratava-se, então de uma arte construída pela coagulação de uma discursividade religiosa, marcada pela frequente tensão entre o mundo material e o espiritual. Em vista disso, examinaremos a obra de Mestre Ataíde nos níveis fundamental e discursivo do plano do conteúdo, articulando-os ao plano da expressão. O nível narrativo não será enfocado com a mesma profundidade, mas será evocado sempre que sua contribuição for imprescindível para a 8

compreensão dos demais níveis. Devemos entender, nessa perspectiva, que um texto pode trabalhar melhor um nível do que outro, um componente do que outro, e é sobre esse aspecto mais explorado que a análise deve centrar-se. Mas nossa preocupação também se debruça sobre o plano de expressão das obras. Antes de iniciar nossa análise, lembramos que o texto é um produto histórico construído em uma dada conjuntura social e que, inevitavelmente, guarda traços da situação na qual foi produzido, situação de produção que podemos entender como contexto. Para a semiótica greimasiana, embora o contexto sócio-histórico e ideológico (contexto tomado em sentido amplo) não seja negado, não constitui uma categoria de análise. Não se trata de um desprezo epistemológico pelo contexto, mas de uma concepção segundo a qual o texto já traz o contexto em seu interior (OLIVEIRA, 2004: 17). Isso nos leva a entender o contexto, na perspectiva desta semiótica, como um diálogo entre textos (concepção próxima à de intertextualidade). Floch (2004: 244), no entanto, ao analisar telas do pintor alemão Immendorf (1973-1988), mostra-se maleável a esse respeito e nos diz: se é preciso inscrever o próprio quadro em um contexto, é primeiramente no do conjunto dos outros quadros que constituem a obra do pintor que se deve inscrevê-lo, mas acrescenta, quem ousaria negar a importância do contexto histórico, político e artístico quando se trata de compreender uma obra tão evidentemente marcada por sua época?. Trata-se, pois, da compreensão do conceito de contexto de forma mais ampla do que a relação intertextual descrita anteriormente. O episódio representado na pintura que analisamos é descrito nos Evangelhos e também nos Atos dos Apóstolos, sendo este livro bíblico posterior àqueles. Assim, temos nesses textos uma primeira contextualização, que nos permite melhor compreender o conteúdo da obra. De acordo com os evangelhos, Jesus, após a Ressurreição, se encontrou com os discípulos, e em dada ocasião subiram ao monte Tábor para orar: Os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes havia designado. Enquanto os abençoava, foi-se retirando deles, sendo elevado para o céu (Mateus 28, 11; Lucas 24, 51). No episódio, a figura de Jesus se tornara extremamente alva e reluzente e, em seguida, subira para o Céu sendo coberto por uma nuvem luminosa, de onde se ouviu uma voz dizendo: Este é o meu filho muito amado, o eleito no qual me agradei (Atos, 1, 14). Mestre Ataíde, entretanto, não usou o relato bíblico como fonte, embora devesse ter conhecimento dele. Na época, os pintores recorriam a ilustrações contidas em missais (livros com textos litúrgicos), e as reproduziam no espaço determinado, já que o(s) encomendante(s) da obra possuíam ou encontravam os modelos para as obras que queriam ver retratadas pelo artista (ALEX BOHER, 2004: 3). Na execução do trabalho, por seu turno, não deixavam de imprimir as características de seu próprio estilo. 9

A pintura apresenta a chamada trama arquitetônica, conjunto de colunas e balcões que imitam uma arquitetura no teto da igreja. Em meio a essa trama, a narrativa propriamente dita se encontra no medalhão, o espaço central da pintura, que aparece como uma abertura do teto sustentada por pilastras. É esse medalhão que reservamos para a análise de relações semissimbólicas. Neste trabalho utilizamos a reprodução divulgada pelo trabalho de Frota e Moraes (1982: 125), a qual apresentamos a seguir: figura 1: forro da capela-mor da matriz de Santo Antônio (1806). Santa Bárbara, MG. Fonte: FROTA, Lélia Coelho; MORAES, Pedro de. Ataíde: vida e obra de Manoel da Costa Ataíde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1982. p. 125. O artista distribui a cena segundo dois espaços, e notamos na parte de baixo a presença dos 11 apóstolos (11 porque Judas Iscariotes já havia se suicidado), assustados com a assunção de seu Mestre. Entre os discípulos, temos uma figura feminina com as mãos postas e a cabeça encimada por uma auréola luminosa. Trata-se da Virgem Maria. 10

Jesus aparece na parte superior da pintura atravessando um corredor vertical de nuvens luminosas. Suas mãos e pés, perfurados pelos cravos na cruz, ainda guardam as marcas do martírio. Sua movimentação, nas vestes e nos pés, e sua posição assimétrica colaboram para dar a aparência de que flutua rumo ao firmamento. Com a constatação dessas figuras, encontramos no nível fundamental do plano de conteúdo a oposição semântica de base /humanidade/ vs /divindade/, corriqueira no discurso religioso, e bastante valorizada no período barroco em Minas. O Cristo aparece como um termo complexo por reunir em si esses dois termos: ele tem a aparência humana, e ainda guarda as chagas do martírio da crucificação: os pés e as mãos estão furados e deixa pegadas na rocha de onde se eleva para o Céu. Mas ele executa a ação divina de subir aos céus com o corpo e a alma, e de ser agraciado diretamente pela voz do Espírito Santo, que se ouve das nuvens, segundo o relato bíblico. Sua divindade é também marcada pelas irradiações de luz na cabeça. Já o termo /humanidade/ é realizado pelos apóstolos que aos pés do Cristo se admiram espantados da assunção do Mestre. A Virgem aparece do lado direito da cena, e pode se constituir como um termo neutro, sua figura é humana, mas é destacada com uma auréola na cabeça. E sua figura estática a mantém presa à terra, de modo a se encontrar no dilema de não ser completamente humana, já que se destaca sua santidade, nem completamente divina, já que não executa nenhuma performance sobrenatural. No nível narrativo, temos o sancionamento do Cristo como a parte mais enfocada do programa. O ator Cristo é sancionado devido à performance humana de passar pelo martírio na cruz, cujas marcas ainda se lhe encontram nas mãos e pés. Desse modo, a crucificação aparece como um objeto-valor dúbio, que é tanto negativo quanto positivo. De acordo com os evangelhos, o sofrimento e a morte não são desejados pelo Cristo, o que é expresso, por exemplo, na seguinte passagem em que Jesus orando no Horto das Oliveiras suplica: Pai, tudo te é possível; passa de mim esse cálice (Marcos 14, 32). Entretanto, é o martírio que lhe abre o caminho para confirmar sua natureza divina através da Ressurreição e da Assunção. O martírio, por sua vez, é bastante caro ao discurso barroco, sendo fartas as representações iconográficas desse tema. Na concepção contrarreformista, o martírio é exaltado ao máximo como exemplo dado pelos santos para uma morte gloriosa capaz de assegurar o ingresso sem delongas ao reino dos céus. Usando de uma debreagem enunciva ao não assinar a obra, o artista realiza um efeito de ausência, situando a narrativa em um ELE-LÁ-ENTÃO. Deixando que o discurso fale por si só e gerando o efeito de uma verdade divina atemporal. No subcomponente temático do nível discursivo, temos o tema do 11

martírio, que evoca o termo ressurreição. Martírio e ressurreição são temas centrais no barroco mineiro, e são evocados através da possibilidade que o homem tem de reconciliar-se com sua porção divina através de uma existência segundo os preceitos católicos. A seguir, representamos o quadrado semiótico com as categorias encontradas no plano de conteúdo: /humanidade/ martírio /divindade/ ressurreição /não-divindade/ não-ressurreição /não-humanidade/ não-martírio a obra: categorias semissimbólicas Antes de iniciar a análise do plano de expressão, podemos fazer um reconhecimento da pintura de Ataíde através da observação de algumas categorias lembradas por Wölflin sobre a arte barroca. Observamos que o desenho não é dado pelas linhas, mas pelas massas cromáticas, as quais têm o seu realce pelo uso da luz: se ela é forte, a cor se torna clara; se é fraca, a cor se torna mais escura. O que nos ilustra a relação entre a luz e a cor na pintura barroca. Postulado que levamos em consideração na montagem de nosso quadro sobre o plano de expressão. Passando à análise das dimensões e categorias do plano de expressão, a cena pode ser dividida em dois espaços, expressos através do sintagma topológico ALTO vs BAIXO, sendo que o primeiro é onde se realiza o termo /divindade/, e o segundo onde se realiza o termo /humanidade/. O que nos gera o primeiro semissimbolismo. Notamos ainda que é na parte de cima que se concentra a luz, a qual chega enfraquecida à parte de baixo, de tal maneira que a dimensão foto-cromática nos lega o seguinte sintagma fotológico: CLARO vs ESCURO. Na dimensão eidética, apontamos a unicidade do Cristo em contraposição à pluralidade das figuras dos apóstolos e da Virgem. Dessa maneira, a massa destacada do Cristo em relação à massa justaposta dos demais actantes nos leva a elaborar o seguinte sintagma eidético: UNICIDADE vs PLURALIDADE. A análise do plano de expressão se encerraria nos componentes eidéticos, conforme o quadro com os níveis do plano de expressão que apresentamos anteriormente. No entanto, uma das características fundamentais da pintura 12

barroca, a movimentação das massas 1, nos sugere que o plano de expressão da pintura barroca não se fecha no sintagma eidético, já que este conduz a um sintagma que podemos definir como dramático, termo sugerido pelos estudos de Affonso Ávila (1971: 54) sobre o barroco mineiro. Na arte barroca, dramaticidade é sinônimo de teatralidade, sendo evocada na descrição dos efeitos de realidade buscados pelo artista barroco. A pintura barroca, por exemplo, é realista ou dramática por apresentar formas em movimentação ao invés de figuras estáticas. A movimentação das figuras ou das massas atendia à estratégia dos artistas da época de criar efeitos de realidade, o que se contrapunha à pintura renascentista, onde as figuras se pautavam pela estaticidade. A pintura barroca busca explorar a movimentação como efeito de real. Quanto ao movimento como categoria do plano de expressão na pintura de Mestre Ataíde, sugerimos a dimensão dramática 2 para abrigar sintagmas relacionados com a movimentação das formas. Retomando a análise após essa digressão, atentamos para a expressividade do movimento das imagens. O Cristo executa um movimento ascendente: ele se eleva para o Céu, movimento que é reforçado pelas suas vestes esvoaçantes e pela posição assimétrica dos pés. Seus discípulos, por sua vez, executam movimento descendente: eles parecem premidos em direção ao chão, executando movimento contrário ao do Cristo. Já a Virgem permanece na neutralidade, por não executar movimentação alguma, a não ser a da cabeça, que pende para cima. Essa estaticidade da Virgem é reforçada pela posição de suas mãos postas. Assim representamos o quadro das relações semissimbólicas: 1 Na descrição da arte barroca, massa é sinônimo de forma. Assim, a descrição do arranjo das massas, por exemplo, na observação da simetria ou assimetria da obra, consiste na observação das formas com que o quadro é composto. 2 O adjetivo dramática nos parece mais específico do que outros por nós tentados, que resultariam em definições ambíguas como dimensão dinâmica, dimensão movimental ou dimensão movente. /humanidade/ martírio b a i x o e s c u r o p l u r a l i d a d e movimento descendente /divindade/ ressurreição a lt o c l a r o u n i c i d a d e movimento ascendente /não-divindade/ não-ressurreição n ã o-a lt o n ã o-c l a r o n ã o-u n i c i d a d e não-movimento ascendente /não-humanidade/ não-martírio n ã o-b a i x o n ã o-e s c u r o n ã o-p l u r a l i d a d e não-movimento descendente Embora a semiótica greimasiana ainda seja vista como uma teoria hermética, o diálogo com teorias de outras áreas foi fundamental para que as 13

ideias centrais de Greimas se desdobrassem, por exemplo, na semiótica plástica. A validade e a produtividade desse diálogo, por sua vez, se confirmaram com a semiótica plástica encabeçada por Floch, que levou em conta as contribuições da história da arte. O diálogo entre Semiótica e História da Arte, por seu turno, não apenas possibilitou uma compreensão bastante ampla do plano de expressão em textos pictóricos, como também possibilitou desdobrá-lo em níveis de complexidade, embora esses níveis estejam relacionados a um tipo específico de pintura: a pintura barroca. Este trabalho segue nessa mesma proposta, uma vez que concilia conhecimentos da história da arte a fim de realizar um exame mais apurado de um texto pictórico. Exame com o qual se espera demonstrar as possibilidades envolvidas no estudo do plano de expressão da pintura e das relações que essa expressão estabelece com o conteúdo. referências: alex FERNANDES BOHRER. Mecenato e Fontes Iconográficas na Pintura Colonial Mineira. Ataíde e o Missal 34. In.: Anais do XXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. pp. 1-14. Disponível em: <http://www. geocities.ws/adarantes/textos_alex_bohrer/2.doc>. Acessado em: 02/02/2011. ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971. FIORIN, José Luiz. Sendas e veredas da semiótica narrativa e discursiva. In: DELTA-Revista de Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. São Paulo, v. 15, nº 1. 1999. pp. 1-13. FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l oeil et de l esprit: pour une sémiotique plastique. Paris/Amsterdam: Hadés/Benjamins, 1985.. De uma crítica ideológica da arte a uma mitologia da criação artística: Immendorf 1973-1988. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de (org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 243-62. FROTA, Lélia Coelho; MORAES, Pedro de. Ataíde: vida e obra de Manoel da Costa Ataíde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1982. GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de (org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 75-96. GREIMAS, Algirdas; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São 14

Paulo : Contexto, 2008 LOPES, Ivã Carlos. Entre expressão e conteúdo: movimentos de expansão e condensação. Itinerários. São Paulo, Número especial, 2003. p. 65-75. OLIVEIRA, Ana Claudia de. As semioses pictóricas. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de (org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p.115-58. OLIVEIRA, Myriam Ribeiro Andrade de. A pintura de perspectiva em Minas colonial: ciclo rococó. In: ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/CBMM, 1997. p. 465-89. WÖLFLIN, Heinrich. Renascença e barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989. como citar este artigo Morato, Elisson Ferreira. A forma e a cor do sentido: a pintura barroca em Minas à luz da semiótica plástica. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. [suporte eletrônico] Disponível em: <http://www.semeiosis.com. br/u/32>. Acesso em dia/mês/ano. semeiosis