A Relação entre as Comunidades Locais e os Artistas Pedro Quintela 1, Daniela Ferreira 2, Francisco Azevedo 3 1) Universidade de Lisboa, IGOT-CEG, Portugal pquintela@campus.ul.pt 2) Universidade de Lisboa, IGOT-CEG, Portugal daniela.ferreira77@gmail.com 3) Universidade de Lisboa, IGOT-CEG, Portugal franciscoazevedo@campus.ul.pt Resumo Esta comunicação inscreve-se no âmbito do projecto de investigação Utopias Reais em Espaços Socialmente Criativos RUcaS (FCT/PTDC/CS-GEO/115603/2009). As políticas urbanas têm considerado, tanto na União Europeia como em Portugal, a inovação e a criatividade como instrumentos importantes para combater as várias adversidades com que as cidades se debatem. Deste modo, verifica-se que um dos pilares estratégicos tem passado pela aposta nas artes, partindo do princípio que estas têm um papel importante na construção dos lugares, tornando-os simultaneamente mais dinâmicos, criativos, abertos e inclusivos. É neste sentido que formulamos a seguinte questão: Como é que os lugares e as comunidades locais acolhem os artistas e o que é que recebem em troca?. Seguindo este desafio, olhamos para dois lugares que consideramos socialmente criativos: Montemor-o-Novo (pequena cidade rural no Alentejo) e o Bairro da Mouraria (no centro histórico da cidade de Lisboa). Palavras-chave:Cidade; Artes; Inovação Social; Desenvolvimento Local; Criatividade 1. Introdução Nas sociedades contemporâneas pós modernidade as políticas urbanas têm consideradoa inovação e a criatividade como instrumentos importantes para combater várias adversidades. Neste sentido, verifica-se que um dos pilares estratégicos tem sido a aposta na cultura e nas artes, partindo do princípio que estas têm um papel importante na construção dos lugares, tornando-os simultaneamente mais dinâmicos, criativos, abertos e inclusivos (Fortuna e Silva, 2001; Jeannote e Stanley, 2002; Smiers, 2005). Para desenvolver esta ideia, considerámos dois lugares que à partida valorizam as artes e a cultura nas suas políticas urbanas: Montemor-o-Novo, pequena cidade rural no Alentejo Central, e o Bairro da Mouraria, no centro histórico da cidade de Lisboa. Nos dois lugares, pretendemos com base nos resultados de um inquérito à população
compreender como é que os lugares e as comunidades locais atraem e acolhem os artistas e o que é que recebem em troca?. Trata-se de dois casos onde as artes e os artistas parecem ter um papel importante na transformação dos lugares, e na produção de dinâmicas urbanas inovadoras. 2. Perspectiva e Conceitos O projecto RUcaS parte do princípio que as artes e os artistas têm um contributo muito significativo na alteração dos valores da sociedade e das instituições e que, por isso, contribuem para a construção de lugares: social e economicamente dinâmicos, abertos em termos culturais; negociados no que diz respeito aos aspectos políticos; e ainda coesos e inclusivos relativamente ao tecido social. Esses lugares podem ser interpretados à luz das utopias urbanas e, em particular, na óptica das utopias reais (Friedman, 2000; Moulaert et al., 2005; Santos, 2012). O conceito de utopia está ligado à ideia de um mundo melhor. Um mundo imaginário criado nas nossas mentes com base nos valores e crenças que temos. O pensamento utópico é portanto a capacidade que todos temos de imaginar algo melhor, ideal e perfeito. O conceito de utopia real diz respeito à transição de algo idealizado e abstracto, para uma entidade real e concretizável. A utopia real configura-se normalmente numa escala abrangente, do colectivo. Isto porque para existir uma utopia real é necessário haver o consenso do colectivo, da comunidade que partilha um dado território. Podemos considerar que determinadas ações contribuem decisivamente para a transformação do território, promovendo assim a criatividade e a inovação social. Isto está contudo dependente de uma aceitação social, de um consenso, mais ou menos negociado consoante as tensões e conflitos gerados pelas mudanças.uma utopia aplicada sem procurar um consenso resulta numa distopia (Baeten, 2002). A pesquisa desenvolvida sugere que a presença de artistas e a produção artística são recursos cruciais na realização de utopias em determinados lugares onde o contexto social, político, cultural é favorável à transformação (André et al., 2009; Lacoste, 2010). 3. A Cultura e as Artes nas Políticas Urbanas O desenvolvimento urbano é encarado, cada vez mais, na ótica da competitividade, procurando explorar vantagens nos mercados nacionais e
internacionais. As cidades competem por investimento, por emprego, residentes, visitantes, receita fiscal, entre outras coisas, mas também, e num sentido nem sempre explícito, por notoriedade e visibilidade internacionais (Keating e Frantz, 2004). Assim, tanto na União Europeia como em Portugal, as políticas urbanas têm considerado a cultura e as artes como instrumentos para combater as várias adversidades. Um exemplo claro é a estratégia da Cultura como forma de desenvolvimento de Strom (2003): 1) Poderes locais que procuram atrair turistas e investidores; 2) Estruturas culturais que procuram ser actores cívicos mais abrangentes; 3) Investidores/negócios que procuram dinamizar a economia local através das artes. Por outro lado, um pouco por toda a Europa, as políticas culturais têm vindo a tornar-se uma componente cada vez mais significativa no âmbito de estratégias de regeneração de cidades (Henriques, 2002; Wojan et al., 2007; André e Abreu, no prelo). Os processos de regeneração urbana, sobretudo nos centros históricos, mobilizam muito a cultura e as artes (Moulaert et al., 2004), na medida em que permitem: (i) construir e reconstruir a identidade dos lugares, reforçando a sua visibilidade e coesão; (ii) introduzir a dimensão estética, contribuindo para o embelezamento da cidade (iii) estimular a actividade turística associada à cultura e ao património. Também nas cidades rurais se tem utilizado a cultura e as artes como meios de revitalização de lugares e de espaços em declínio, através da valorização de aspectos característicos do mundo rural, que por sua vez são transformados em inputs artísticos (André e Abreu, no prelo). Muitos artistas têm vindo a trocar a cidade pelo campo ou a tentar conjugar os dois ambientes, associando a tranquilidade e a inspiração das paisagens rurais e a efervescência e redes de contactos das grandes cidades. 4. Artes e Artistas em Montemor-o-Novo e na Mouraria Neste artigo olhamos para dois lugares que podem ser considerados socialmente criativos: Montemor-o-Novo, pequena cidade rural no Alentejo Central, e o Bairro da Mouraria, no centro histórico da cidade de Lisboa. São dois lugares muito diferentes um urbano outro rural - que se confrontam ambos com fortes adversidades, onde as artes e os artistas parecem desempenhar um papel importante nas dinâmicas locais e na inovação sócio-territorial.
Um inquérito à população residente (cerca de 400 inquiridos em cada lugar correspondentes a uma amostra estratificada, estatisticamente significativa) realizado no âmbito do Projeto RUcaS revela respostas interessantes para a questão que colocámos: o que dão os lugares aos artistas e o que recebem em troca? Mais de metade da população residente inquirida (60,5%) na Mouraria pensa que o melhor que o seu bairro tem para oferecer aos artistas que aí residem e/ou trabalham é o facto de estarem num ambiente tradicional do centro de Lisboa, com uma forte componente histórica (património e elementos intangíveis). A centralidade do bairro emerge como a segunda resposta mais frequente (36,5%). Surgem ainda outros aspetos com menor relevância, como o baixo preço da habitação (13,5%), a diversidade de nacionalidades, o que proporciona um ambiente multicultural (5,5%) e a presença do Fado (5%), expressão musical bastante enraizada na história da Mouraria. O espírito de comunidade do bairro foi também considerado por alguns (2,5%) um aspeto importante para a atração de artistas, característica que se traduz sobretudo nas relações de proximidade e de vizinhança que os habitantes da Mouraria têm entre si. Como muitos referiram, é quase como se fosse uma aldeia dentro de Lisboa, pois todos se conhecem e se entreajudam. Em Montemor-o-Novo (MoN), mais de metade da população residente (54,8%) refere a política cultural municipal como principal razão para a vinda dos artistas para a cidade. No entanto, 28% dos inquiridos referem que tem sobretudo a ver com a qualidade de vida que MoN proporciona, nomeadamente em termos de tranquilidade e de segurança. É também mencionado o bom acolhimento da população local, aspeto referido por 11% dos inquiridos. Ainda relativamente às características da cidade, 6,8% dão especial importância à paisagem de MoN. Embora em escalas e contextos muito diferentes, há dois fatores de atração de artistas que se salientam tanto em MoN como na Mouraria: a acessibilidade, num caso relativamente à metrópole de Lisboa e no outro no interior da cidade, e o perfil coeso e acolhedor das comunidades locais. E o que é os artistas dão a MoN e à Mouraria? No caso de MoN, a resposta mais frequente diz respeito ao contributo para o desenvolvimento cultural da cidade (39,5%). Isto traduz-se, acima de tudo, na organização de um maior número de actividades e espetáculos. Também com uma expressão significativa (23,5%), os inquiridos dizem
que a presença dos artistas é um factor de atração de visitantes e turistas. É ainda salientado (20%) o contributo para reconhecimento nacional e internacional. Por outro lado, 13,8% acredita que a presença dos artistas em MoN contribui não só para o desenvolvimento cultural mas também para um desenvolvimento muito mais abrangente da cidade, nomeadamente para o crescimento da economia local, a expansão urbana e a criação de novos serviços. Por último, 18,8% dos inquiridos referem que, através dos vários eventos, os artistas proporcionam animação e convívio à cidade. No bairro da Mouraria, é destacada a capacidade que os artistas têm, através dos eventos em que estão envolvidos, de atrair pessoas de fora a visitar o bairro, bem como de turistas (45,3%). Também com alguma expressão, é mencionado o desenvolvimento cultural (13,5%) e, em particular, a animação e o convívio que são proporcionados à população (16,5%). Segundo os inquiridos, a existência de artistas na Mouraria é um factor relevante para a fixação de população jovem no bairro (1,75%). 5. Considerações Finais Retomando a questão de partida, verifica-se que MoN e a Mouraria coincidem na maioria dos aspetos que salientam. Noutros, as opiniões são diferentes refletindo contextos sócio-geográficos bastante distintos (ver Tabela 1). Aspetos comuns (MoN e Mouraria) Aspetos distintos (MoN e Mouraria) O que dão os lugares aos artistas -Características do território -Características da população -Localização geográfica -Presença das artes/artistas -Política cultural (MoN) -Baixo preço da habitação (Mouraria) O que dão os artistas aos lugares -Desenvolvimento cultural -Visitantes/Turistas -Animação/Convívio -Novos residentes jovens (Mouraria) -Desenvolvimento da cidade (MoN) Tabela 1 Principais diferenças e semelhanças das comunidades locais e os artistas. Elaboração própria Bibliografia André I, Abreu A (no prelo) Social creativity and post-rural places: the case of Montemor-o-Novo, Portugal in Canadian Journal of Regional Science/Revue Canadienne des Sciences Régionales
André I, Henriques E and Malheiros, J. (2009) Inclusive Places, Arts and Socially Creative Milieux, in MacCallum, D., Moulaert, F., Hillier, J. and Vicari, S. (eds.) Social Innovation and Territorial Development, London: Ashgate. Baeten G (2002) Western Utopianism/Dystopianism and the Political Mediocrity of Critical Urban Research. Geografiska Annaler Series B, 84(3/4): 143-152. Fortuna C e Silva A S (2001) A cidade do lado da cultura: Espacialidades sociais e modalidades de intermediação cultural, in B. S. Santos (org.) Globalização Fatalidade ou Utopia?, Porto: Edições Afrontamento, 409-455. Friedman Y (2000) Utopies Réalisables, (nouvelle edition). L'éclat, Paris. Henriques H B (2002) Novos desafios e orientações das políticas culturais: tendências nas democracias desenvolvidas e especificidades do caso português, Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia, 73, p.61-80 Jeannotte M and Stanley D (2002) How Will We Live Together?, Canadian Journal of Communication, 27:133-139. Keating M e Frantz M (2004) Culture-Led Strategies for Urban Regeneration: A Comparative Perspective on Bilbao, in International Journal of Iberian Studies, 16 (3), pp. 187 194 Lacoste J (2010) La Philosophie De L'Art, 10e Édition,Paris: PUF Que Sais-Je. Moulaert F, Demuynck H, Nussbaumer J (2004) Urban renaissance: from physical beautification to social empowerment. Lessons from Bruges-Cultural Capital of Europe 2002, City, vol. 8, N. 2, 229-235 Moulaert F, Martinelli F, Swyngedouw E and Gonzalez S (2005) Towards Alternative Model(s) of Local Innovation, Urban Studies, 42 (11):1969 1990. Santos B S (2012) Utopia. In Santos A C, Martins B S, Dias J P, Rodrigues J, Gomes M (coord.) Dicionário das Crises e das Alternativas. Edições Almedina, Coimbra: 212. Smiers J (2005) Arts under Pressure: Promoting Cultural Diversity in the Age of Globalization, London: Zed Books. Strom E (2003) Cultural Policy as Development Policy: Evidence From The United States, in International Journal of Cultural Policy, vol. 9, 3, pp. 247 263 Wojan T R, Lambert D. M, McGranahan D A (2007) The Emergence of Rural Artistic Havens: A First Look,, Agricultural and Resource Economics Review 36/1 (April 2007), p.53 70