artigo de fundo O Novo Sistema Contabilístico (IAS) para as seguradoras Pedro Seixas Vale Dois elementos básicos têm influenciado nos últimos tempos os sistemas/padrões contabilísticos das empresas. O primeiro, é o de que a principal linha de evolução conceptual é no sentido de um uso cada vez mais intenso da valorização dos activos e passivos ao chamado valor justo (isto é, a valores de mercado), em vez de o ser a custos históricos e consequentes depreciações anuais. Em segundo lugar, recentes apresentações contabilísticas erradas, por empresas de grande dimensão seja nos EUA ou na Europa que tiveram impactos de vária ordem, sobretudo na credibilidade contabilística. Os principais analistas, auditores e organismos que definem as normas internacionais de contabilidade (NIC / IAS) querem assim obviar a que as empresas utilizem regras contabilísticas que possam amortecer determinados impactos nos custos ou proveitos e, desta forma, alisar os resultados. O argumento é simples : apesar de envolver uma volatilidade maior nos resultados e valores das empresas, a utilização do valor de mercado para activos e passivos reflecte melhor a situação actual das empresas e a sua possível evolução futura, aumentando também o grau de comparabilidade entre as empresas do mesmo sector, independentemente da sua localização geográfica. Existem, naturalmente, opositores a estas regras, normalmente não no seu conjunto mas em relação a algumas delas. E, em especial, no sistema financeiro, as longas discussões entre o IASB (International Accounting Standards Board) e os organismos internacionais representantes das diversas áreas do sector financeiro bancário, segurador, gestão de activos, gestão de fundos de pensões têm sido claramente difíceis e controversas. Sobretudo no domínio da volatilidade dos resultados (a volatilidade será, em muitos casos, artificial) e alguns dos fair value de activos ou passivos não serão fiáveis ou de confiança. Parece, no entanto, inevitável pelo menos a longo prazo a introdução alargada do conceito de fair value ou de market value. Pela sua natureza conceptual e pelos
instrumentos de medida necessários, os padrões internacionais das demonstrações financeiras (IFRS) passarão a demonstrar maior volatilidade dos resultados, serão mais complexos e nalguns casos mais subjectivos. E, como consequência, corre-se o risco de se tornar matéria apenas do domínio de especialistas. As informações adicionais às demonstrações financeiras deverão ainda dar a conhecer aos accionistas os riscos potenciais e sua probabilidade na alteração do valor de mercado de activos e passivos. Tais informações obrigarão as empresas a fazer a publicação dos principais indicadores de gestão (key performance indicators KPI s). SITUAÇÃO ACTUAL NO SECTOR SEGURADOR Em 19 de Julho, através duma Decisão, o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu decidiram que as regras IAS seriam automática e obrigatoriamente aplicadas a todas as sociedades cotadas no domínio das contas consolidadas. Esta decisão foi transposta para um Regulamento Interno com carácter de Lei e sem necessidade de alteração de legislações nacionais na União Europeia, na mesma altura. Foi estabelecida, ainda, uma opção de extensão a todas as outras companhias de contas não consolidadas. Foram definidas inicialmente duas fases de implementação : 1ª fase das IFRS até 2005 : informações adicionais nas demonstrações financeiras e análise de sensibilidade dos resultados aos principais riscos definição de contrato de seguro apólice sem risco significativo de seguros tratamento específico continuação dos métodos actuariais de cálculo das provisões matemáticas actuais activos reclassificados usando IAS 39 2ª fase das IFRS até 2007 : Entrada em vigor de todas as IFRS CONSEQUÊNCIAS PRINCIPAIS DA INTRODUÇÃO DAS REGRAS IAS NA ACTIVIDADE SEGURADORA a. Ao nível da gestão do negócio
É importante que a introdução destas regras não seja considerada apenas um problema contabilístico. Há também óbvias implicações no domínio estratégico e operativo : ao nível dos produtos e preços : a rentabilidade do produto será estabelecida de acordo com o fair value, isto é, os preços têm que cobrir as despesas e propiciar níveis aceitáveis de lucros; no ramo vida, os custos dos produtos de longo prazo serão mais evidentes, as cargas devem ser suficientes para fazer face a esses custos e a previsão dos rendimentos financeiros será cada vez mais importante; o enfoque principal da gestão passa a ser na gestão e valorização dos activos e passivos, e não na gestão dos custos e proveitos de per si. b. Ao nível do conceito de contrato de seguro Para que determinado produto possa ser considerado ao abrigo dum contrato de seguro, tem de incluir um risco segurável, deve existir uma probabilidade razoável de que um evento cause uma variação significativa no valor presente dos rendimentos esperados. Alguns dos actuais produtos (p.ex. produtos unit linked do ramo vida) não serão considerados produtos de seguro (segundo as regras IAS 39) mas sim outros instrumentos financeiros. Parece que, de acordo com estudos feitos pela IAA (International Actuarial Association), esta proporá ao IASB os seguintes limites : probabilidade razoável uma probabilidade anual superior a 0.01%; mudança significativa mudança no valor líquido actual (VLA) dos futuros cash-flows superior a 10%. c. Novos conceitos contabilísticos A contabilização com base no valor justo, impõe a definição deste. A mais vulgarizada, é a de que o valor justo é a quantidade (monetária?) pela qual um activo pode ser trocado ou um passivo pode ser vendido, entre duas partes independentes, conhecedoras do negócio e dispostas a finalizar a operação. Em particular, o valor justo de um passivo é a quantidade que uma companhia teria que pagar a um terceiro para que este assumisse os seus compromissos. Os cálculos das diversas variáveis prémios, sinistros, custos gerais, participação dos resultados, resgates, anulações, devem ser baseados em previsões realistas de cashflow, devem incluir uma margem de risco (quanto??) para efeitos de prudência do valor de mercado e basear-se em modelos estocásticos. Os impactos mais específicos serão no domínio de :
tratamento de mais valias não realizadas; provisões para sinistros : eliminação do conceito de best estimate ; não diferimento dos custos de aquisição; património líquido; impostos diferidos; alterações nos conceitos de capitais necessários; desadequação do actual conceito de margem de solvência; diferente tratamento contabilístico do tipo de activos : para negociação (trading), disponíveis para venda (available for sale) e detidos até à maturidade (held to maturity); eliminação das provisões para prémios não adquiridos, para riscos em curso e para desvios de sinistralidade; contabilização por ano de subscrição (p. ex., o mais importante passa a ser o volume de prémios emitidos e não o de prémios adquiridos); introdução duma provisão para sinistros futuros, correspondente aos prémios não adquiridos; o cálculo das responsabilidade (passivos) passa a ser baseado no valor presente do custo para a companhia de fazer o run-off, calculado numa base de cash-flow e não de taxa de desconto; necessidade de efectuar inúmeros testes de reconhecimento sobre os riscos com modelos estocásticos e, portanto, uma maior integração da função actuarial e financeira; a gestão de activos e passivos (sobretudo no ramo Vida) passará a fundamentar-se muito mais nos cash-flows do que na duration. REACÇÃO DOS SEGURADORES/REGULADORES/ANALISTAS/AUDITORES/ACTUÁRIOS Apesar de uma reacção positiva inicial à introdução do conceito de fair value e das regras IAS, têm vindo os seguradores através das suas organizações a demonstrar o seu desacordo quanto a algumas regras previstas e, em especial : às necessidades adicionais de capital, dado que algumas das regras prudenciais previstas no cálculo das provisões para sinistros passam para
necessidades de capital. A ligação entre estas regras e as imposições do designado processo Basileia II são evidentes e coerentes; à necessidade de introdução das regras de fair value simultaneamente para activos e passivos, sob pena de se criarem efeitos bastante perversos na gestão coordenada e conjunta de ambos os aspectos, dada a sua interdependência; possíveis aumentos de preços e abandono de áreas menos rentáveis; pouca fiabilidade do cálculo do justo valor no caso dos passivos. Também as instituições reguladoras têm manifestado a sua apreensão quanto à bondade de alguns critérios contabilísticos e do nível de informação desejável, criando a hipótese de informações adicionais ou não adopção de certos critérios contabilísticos, o que obrigará a mais trabalho por parte das seguradoras. Por razões óbvias, as empresas de análise, de auditoria e organizações de actuários, têm manifestado o seu acordo quase total às novas regras. Independentemente da bondade dos conceitos, a abertura de novas áreas de actuação e de especialização do conhecimento justificam a sua quase completa aprovação. QUESTÕES GERAIS O futuro próximo está neste domínio traçado, para muitos de nós. A implementação deste novo conceito contabilístico fair value e das regras IAS, está na linha da tradição da mão invisível de Adam Smith". O que alguns se interrogam, é quão justo é o valor justo? O conceito de valor justo, e todos os mecanismos de cálculo subjacentes, não passará a ser a sociedade do conhecimento de alguns misteriosos experts? Quanto tempo vamos passar a discutir os modelos estocásticos implícitos em muitos dos cálculos do valor justo? Porquê passar alguns níveis de prudência do âmbito da responsabilidade da empresa de per si, para o domínio dos seus accionistas? Quem beneficia? Os accionistas? Os tomadores? Os Estados? Os terceiros? Porque razão dentro do sistema financeiro mundial e europeu em particular, já se estão a criar diferenças no conceito e no âmbito de introdução do conceito de justo valor? E porque deve o sector segurador servir de cobaia? Será que as suas contas não são tanto ou mais transparentes do que as de outros sectores do sistema
financeiro, como os bancos, os gestores de fundos de investimento, ou os gestores de fundos de pensões, para não citar outros? CONCLUSÕES O sector segurador mundial, europeu e o português em particular, têm demonstrado uma notável capacidade de evolução conceptual, estratégica e operativa. Essa capacidade é expressa pela sua dimensão volume de negócios, valor acrescentado, volume de activos geridos, volume de emprego, número de empresas, influência nos mercados de capitais. Só consegue esta importância uma actividade que oferece produtos e serviços adequados à satisfação das necessidades dos seus clientes. E que tem uma relevação contabilística adequada. E que é credível. O mundo dos negócios não é para amadores, ignorantes, nem arrivistas, sejam eles accionistas, gestores, reguladores, analistas, auditores ou actuários. É, pois, importante, que as reformas ou revoluções (como alguns preferem, desde que seja de acordo com as suas ideias ou interesses) sejam implementadas tendo em atenção o cidadão comum, que prefere ver as suas poupanças em boas mãos, do que em boas IFRS,..., que mais não são do que manifestações ex-post de actuações correctas ou incorrectas. Não deve, pois, haver uma subversão de conceitos / prioridades. Não gostaria de ver a credibilidade da definição do valor patrimonial duma seguradora e dos seus resultados (passados, presentes e futuros) ter a mesma classificação de alguns Orçamentos Gerais do Estado e das contas de certos organismos. E, já agora. Que este processo não fizesse aumentar certas nomenklaturas em detrimento de quem pensa e faz o negócio segurador.