Uma visão crítica das políticas públicas de combate às drogas

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Transcrição:

Uma visão crítica das políticas públicas de combate às drogas Resumo: O presente artigo visa questionar as ideologias orientadoras das políticas públicas que visam à redução dos prejuízos causados pelo consumo abusivo de drogas e descobrir as finalidades buscadas, apontando, em um primeiro momento, as justificativas reais e declaradas da criminalização e/ou patologização do usuário e, em seguida, mostrando a relação do álcool e da maconha com o consumo de drogas consideradas mais pesadas e, por fim, mostrando as diferenças, por meio do direito comparado, entre as abordagens holandesa, sueca e brasileira de lidar com o problema. Introdução Ao pensar sobre a questão das drogas, é necessário avaliar se concorda-se que consequências da manufatura, síntese, tráfico e uso de drogas resultam em ameaça ao bem-estar coletivo. (NASCIMENTO, 2006) Se a visão é de que é possível conviver com as drogas e que isso não é algo que deve ser banido, como, por exemplo, acontece com o álcool. Se o consumo em pequena quantidade é visto como algo benéfico, tanto física quanto socialmente, certa política e forma de pensar são tomadas. Se as drogas são vistas como um mal que aflige a sociedade, certa política e forma de pensar são tomadas. Ao se tratar de drogas ilícitas, como a maconha, deve-se avaliar os fatores que levam a pensar em uma política de descriminalização e de legalização da droga. É muito importante analisar as consequências da descriminalização e da legalização e os argumentos dos que defendem-nas, para ver se são consistentes, ou se levam a fugir da questão que realmente importa ao tema. Nascimento (2006) afirma que os prejuízos econômicos (no sentido lato) resultantes do abuso de drogas constituem um problema social e que as tentativas de reduzir o impacto desses prejuízos não prosperaram. Ele aponta como uma das possíveis causas a ausência de outro tipo de ação estatal que não seja o combate ao comportamento de consumir drogas pela via do direito penal. É importante avaliar se uma das principais fontes de propulsão à ideia da legalização e da descriminalização não seria o fracasso das tentativas de reduzir o impacto social das drogas e se a descriminalização ou legalização não seriam a desistência de resolver esse problema. Outra questão que se relaciona com a legalização ou descriminalização é se o consumo moderado de droga ilícita, como a maconha, deve ser tolerado ao indivíduo,

como sua liberdade de escolha e de modo de vida, ou se o estado deveria tratá-lo, voluntaria ou compulsoriamente, aplicar multas e detenções. Para evitar o anacronismo e a falta de contato com a realidade é importante tomar contato com publicações sobre o tema e analisar as realidades de países que lidaram de formas diferentes com essa questão, como é o caso de Holanda e Suécia. Laranjeira (2010) aborda o caso da Holanda e da Suécia, mostrando alguns dados e as mudanças a que as políticas introduzidas levaram. Outro fator a ser analisado para avaliar quão desejável é uma política de descriminalização é a repercussão disso em todas as áreas da sociedade. Se a droga legalizada não vai ser dada aos usuários, e se o governo vai fiscalizar e influenciar os preços, não se elimina o problema do tráfico. Isso acontece no caso de cigarros contrabandeados do Paraguai, pois sempre há os que consomem drogas e não querem ou não podem pagar o preço do produto oficial. Algo que se deve analisar também é como a descriminalização ou legalização vai repercutir nas crianças e adolescentes. Drogas lícitas são consumidas por eles, pois os maiores não pensam que o consumo leve, por exemplo de álcool, seja tão prejudicial aos menores. Além disso, muitos adultos utilizam drogas ilícitas de forma escondida, seja de filhos ou outros menores. Talvez com a legalização ou descriminalização passariam a consumi-las em público, aumentando o fator exposição da droga. O início da criminalização das drogas Nunca existiu e provavelmente jamais existirá uma sociedade plenamente livre das drogas. Ao longo do tempo o que mudou foi apenas o papel que exerciam e o uso que se deu a elas, sejam religiosos, medicinais ou recreativos. Os primeiros conflitos gerados pelas drogas visavam o livre comércio dessas substâncias, como a Guerra do Ópio, entre 1839 e 1856, entre a Inglaterra e a China. Até o final do século XIX, a criminalização das drogas era mínima, inclusive com cobrança de impostos sobre determinadas drogas e livre concorrência entre os comerciantes. Uma série de circunstâncias levou à criminalização da droga, sendo destacável o papel da Revolução Industrial e os novos interesses econômicos por trás dela: as fábricas necessitavam de trabalhadores extremamente eficientes e propensos a aguentar as excessivas jornadas de trabalho, e os efeitos letárgicos de algumas drogas acabavam

por atrapalhar os interesses dos grandes proprietários do período. Ainda relacionando-se a fatores econômicos, houve a necessidade de criminalizar, para criar a reprovação moral do uso de drogas, associando-o a grupos perigosos. Nos Estados Unidos, por exemplo, as primeiras leis proibicionistas se deram quando o uso de drogas, que antes era restrito aos segmentos sociais dominantes, chegou a uma parcela considerada inferior da população. Cada proibição voltava-se a um grupo étnico marginalizado e tinha finalidades motivadas por interesses econômicos específicos. Nos Estados Unidos, conflitos econômicos foram transformados em conflitos sociais que se expressaram em conflitos sobre determinadas drogas. A primeira lei federal contra a maconha tinha como carga ideológica a sua associação com imigrantes mexicanos que ameaçavam a oferta de mão de obra no período da Depressão. O mesmo ocorreu com a imigração chinesa na Califórnia, desnecessária após a construção das estradas de ferro, que foi associada ao ópio. No sul dos Estados Unidos, os trabalhadores negros do algodão foram vinculados à cocaína, criminalidade e estupro, no momento de sua luta por emancipação (...). Estes três grupos étnicos disputavam o mercado de trabalho nos Estados Unidos, dispostos a trabalhar por menores salários do que os brancos. (BATISTA, 2003, p.81) O posicionamento em relação à questão das drogas variou significativamente. Em um período relativamente curto de tempo, passou-se da não-criminalização à criminalização maciça. Há, ainda hoje, inúmeras divergências nos diversos setores sociais acerca da melhor política para se lidar com a questão. Entre a criminalização e a patologização do usuário: as filosofias por trás das políticas públicas de redução do consumo de drogas. Os prejuízos econômicos causados pelo uso abusivo de drogas, seja a inviabilização do indivíduo como recurso produtivo ou atividades dilapidadoras que o indivíduo venha a produzir, parecem imunes aos efeitos de qualquer política pública até o momento. A abordagem que trata o usuário de drogas como criminoso se apoia nos argumentos que atribuem às drogas a responsabilidade de serem fontes de crimes como corrupção, financiamento político e do aumento do custo social marginal. No entanto,

tal abordagem reforça a ideia de que punição resulta em educação, além do mais se demonstra que o comportamento do consumidor não é afetado apenas por ser temporariamente retirado de circulação e, teoricamente, do contexto em que o consumo é possível. Questiona-se se com a ação de descrever a conduta de consumir drogas como uma ação típica, um comportamento proibido, o Estado estabelece para o usuário um preço justo a se pagar por ter produzido lesão a um bem jurídico relevante resultante de sua conduta de consumir droga. Segundo o princípio da alteridade, só pode ser punida a conduta que lesa bem jurídico de terceiro. Se o agente ofende somente bens jurídicos pessoais, não há crime (como na tentativa de suicídio, a destruição de bens patrimoniais próprios e a autolesão). E, ainda, não seria tal proibição uma afronta ao direito fundamental à liberdade, subtraindo do indivíduo a capacidade de gerenciar sua própria vida independentemente de qualquer intervenção moral estatal? A forma repressiva com que o Estado trata a questão parece fortalecer os mecanismos de aperfeiçoamento da economia da droga, ocorrendo como uma espécie de pressão seletiva sobre os integrantes desta economia. Quando o Estado ultrapassa seus limites, invadindo as esferas da moralidade, acaba se afastando das suas funções primárias e primordiais, perdendo a legitimidade de suas ações, principalmente do ponto de vista criminal. Por outro lado, a abordagem que trata o usuário como doente o rotula como um demandante de cuidados médicos e psicológicos. A estratégia que deriva desta abordagem descriminaliza a conduta, mas patologiza o consumidor, resultando, novamente, em um modelo de intervenção em detrimento da prevenção e, além disso, ignora que o tratamento dispensado aos usuários pode ser fonte de complicação do estado de vício. O Estado abre mão de sua capacidade de prisão, mas em nenhum momento se abstém do poder de punir, já que aplica ao usuário a medida de segurança, a qual não é uma pena propriamente dita, mas caracteriza restrição de direitos muitas vezes equivalente ou mais grave do que a sanção cumprida na penitenciária. Na polícia brasileira, há casos, por exemplo, em que se opta pela não prisão do usuário, quando se mostra que a quantidade de drogas portada não é ofensiva à sociedade, apenas destinada ao uso pessoal do usuário.

Comparação do álcool com a maconha quanto a representações sociais e à previsão do que mudaria com a legalização ou descriminalização O álcool é uma droga que está presente de forma intensa no cotidiano de muitos países. Isso foi fazendo com que fosse visto como parte da cultura, como algo que descontrai. Há produtos finos e caros do álcool, o que permite que seu status seja mais alto ainda. O fato do consumo de álcool por maiores de idade ser legalizado e de sua representação social ser de que o consumo moderado não é prejudicial, que é pelo contrário benéfico, faz com que seja propícia a ampliação de consumidores. Nessa forma de pensar, pressupõe-se que o consumo aberto de uma droga leva outras pessoas a experimentá-la, e dessas, uma parcela se tornará consumidora regular. Devido à representação social do álcool, as pessoas se sentem autorizadas a fazer seu uso em público, o que permite que outras pessoas vejam o consumo e resolvam experimentar. Dessas, uma parcela continua consumindo álcool de alguma forma ao decorrer da vida. No caso da maconha, como é uma droga ilegal, a representação social dela é negativa. As pessoas, em geral, se sentem desencorajadas a consumir a droga em público, e assim o consumo fica restrito a quem já consome, e as pessoas que tomam contato com o consumo podem vir a se tornar consumidores. Porém a exposição da maconha em público é muito menor que a exposição do álcool, o que torna a expansão de seu consumo controlada. Se o objetivo de uma política estatal é conter o número de consumidores de drogas, e a exposição do consumo da droga é fator que concorre para seu aumento, a descriminalização ou legalização levaria à maior exposição e a maior consumo da droga, aumentando um problema social. Ari Bassi Nascimento afirma: O uso abusivo de drogas constitui um problema social. Há que se entender essa afirmação como verdadeira, mas de forma muito restritiva. Afinal, o que constitui um problema social são os prejuízos econômicos (no sentido lato) resultantes do abuso de drogas. Esses prejuízos devem decorrer da interação indivíduo-droga e se materializam de formas diversas. Algumas se situam na esfera afetiva, outras nas esferas produtiva, educativa e da saúde ou nas relações sociais. Em qualquer uma dessas esferas de ação as relações dos indivíduos implicam em custos e em benefícios, daí por que quaisquer prejuízos nessas instâncias de ação resultam em prejuízos econômicos. (NASCIMENTO, 2006, p. 186)

Isso mostra que o abuso de drogas deve ser evitado, se se quer evitar esse problema social. E como se evita o abuso de drogas? No caso do álcool, o modelo que a Suécia adota para o controle de consumo sugere que quanto mais indivíduos bebem numa sociedade, mais haverá bebedores pesados. (LARANJEIRA, 2010) Então, também no caso da maconha, pode-se entender que quanto menos consumidores, menos pessoas fazem um consumo que cause problemas econômicos. O controle dos consumidores pesados de certa droga não se deve dar diretamente sobre eles, por apenas serem identificados quando causam algum desses problemas. Como isso é difícil, a política deve ser reduzir o consumo da droga, pois assim automaticamente reduzem os consumidores que se causam problemas significativos. E para isso é preciso conter a expansão da droga, diminuindo ou contendo a exposição da droga em público, o que leva ao aumento de consumidores. A política de drogas da Suécia tem bases ideológicas e científicas estabelecidas por Nils Berejot. Ele explica que a expansão do consumo de drogas se dá por contágio psicossocial ou pressão grupal. O contágio se daria pela fórmula C=SxE, ou seja, o contágio é função das suscetibilidades individuais e da exposição. (LARANJEIRA, 2010) Isso sugere que quando se restringe o acesso às drogas, se diminui o contágio. Dessa forma, percebe-se que legalizando ou descriminalizando a maconha, sua exposição seria maior, e assim aumentaria o contágio psicossocial. Pessoas que argumentam a favor da legalização ou descriminalização, alegando a liberdade de escolha do cidadão, ignoram que a exposição da droga leva outras pessoas a serem consumidores. Pode-se considerar a exposição da droga como uma violência, já que o consumo regular de uma droga não parece ser uma opção, mas função das suscetibilidades individuais e da exposição. O consumo da droga em público representa, na prática, uma decisão sobre a vida de outras pessoas que sofrerão o contágio. Comparação entre os modelos holandês e sueco de lidar com as drogas A Holanda tem uma forma mais liberal de lidar com as drogas, em comparação com a Suécia. Cada país, dependendo das ideias predominantes no governo e na população quanto ao uso de drogas, adota certas políticas referentes a drogas. Ronaldo Laranjeira esclarece o caso holandês: A experiência holandesa serve para alguma coisa? Houve duas fases nesse país na forma de tratar a questão das drogas. Inicialmente, na década de setenta, houve uma decisão de tolerar a posse de pequenas quantidades de

maconha, com o argumento de priorizar a repressão às drogas mais pesadas. Durante esse período, nao ocorreu aumento significativo do consumo de maconha. Entretanto, de 1980 a 1988 - numa segunda fase -, houve tolerância em relação à venda de maconha nos coffee shops, e um aumento de mais de dez vezes no número desses estabelecimentos, com o correspondente aumento no consumo da droga. Se, em 1984, 15% dos jovens holandeses consumiam maconha, em 1992 esse número dobrou para 30% e se mantem nesse nível até os dias de hoje. (LARANJEIRA, 2010, pág. 621) Bem, a princípio não parece que essa forma de lidar com as drogas tenha sido um sucesso. É claro que pode se considerar que o número de consumidores de maconha não indique os impactos desse consumo nas diversas esferas de suas vidas. Porém de acordo com o pensamento de que quanto maior o número de consumidores de uma certa droga, mais haverá consumidores pesados, é preferível ter o mínimo possível de consumidores da droga. Também se pode afirmar que não se sabe qual foi o sucesso dessas políticas em evitar o aumento de consumidores de drogas mais pesadas. Contudo, é uma possibilidade que a maconha seja uma porta de entrada para outras drogas, e que essas políticas, ao invés de evitarem que haja maior consumo de drogas mais pesadas, contribuam para isso. Partindo dessa linha de raciocínio, poderia-se considerar que o modelo holandês fracassou em dois pontos. O primeiro ponto foi considerar que tolerar o consumo de maconha poderia evitar o abuso de outras drogas mais pesadas. Não parece haver estudos científicos, ou estatísticas que mostram que quando se tolera o uso de maconha, previne-se o aumento do consumo de drogas mais pesadas. O segundo erro foi desconsiderar que o aumento dos consumidores de uma droga, como a maconha, faria aumentar também o número dos consumidores pesados. No caso da maconha, seria os que descuidariam suas esferas da vida devido ao simples consumo, ou devido a um alto consumo, ou devido a características psicológicas próprias. Na verdade, o consumo de maconha entre jovens na holanda é de 30%, o que é um número elevado, e que sugere problemas em várias esferas da vida, levando a problemas sociais. O problema do aumento do consumo na holanda não foi a primeira fase, mas sim a segunda fase. Na primeira fase, na qual apenas se tolerou a posse de pequena quantidade de maconha, o consumo não aumentou significativamente. Porém na segunda fase, o consumo aumentou bastante, porque se tolerou a venda de maconha nos coffe shops, e o número de estabelecimentos aumentou de mais de dez vezes.

Segundo Laranjeira, o consumo não aumenta devido à retirada da penalidade, mas sim devido à promoção comercial, com a venda passando a ser feita nos coffe shops, depois com o aumento do número de estabelecimentos. (LARANJEIRA, 2010) Já a Suécia restringe as drogas como cuidado social. O sistema de controle de drogas sueco não tolera o uso de drogas, diferindo por esse motivo do que ocorre em alguns países europeus, em que se restringe menos o consumo de drogas. Laranjeira nos informa melhor sobre o sistema de controle de drogas sueco: O sistema de controle de drogas sueco é um dos mais debatidos nos anos recentes porque difere em muito do que ocorre no mundo e na Europa, em particular. Ele é muito mais restritivo e o uso de drogas nao é tolerado. Na realidade, em 1977 foi declarado que um dos objetivos do sistema seria criar uma sociedade livre das drogas. Para a implementação desse objetivo, quantidade substancial de dinheiro foi alocada na prevenção e informação, na política de controle e no tratamento, os três pilares do sistema. Os indicadores disponíveis mostram que o número de dependentes químicos nesse país é relativamente muito mais baixo quando comparado com os da Europa. ( LARANJEIRA, 2010, pág. 621) Diferentemente do caso holandês, em que se tolerou o porte de pequena quantidade de maconha e a venda em coffe shops, um dos objetivos do sistema sueco é criar uma sociedade livre das drogas. Com esse objetivo, políticas diferentes foram tomadas, em relação à Holanda. O país investe bastante em tratamento para dependentes, e mesmo que o uso de drogas seja considerado socialmente inaceitável, o objetivo da política não é punir os indivíduos. Nos anos 80, mudou-se a forma de se ver o sistema, que passou a ter o objetivo de reduzir a demanda de drogas na Suécia. A política baseou-se no consumidor, por ser considerado a engrenagem do tráfico. Considerou-se a questão assim, pois quanto mais consumidores, maior a exposição, o fator que se pode controlar, para evitar a expansão de consumidores. O foco é o consumidor, pois os traficantes são sempre repostos, enquanto os consumidores se mantém no sistema. Se se pensa, como políticos legalizadores progressivos, que os usuários de drogas não são nem mais nem menos racionais nas escolhas do que qualquer pessoa, e que eles tem direito de escolher usar drogas, posiciona-se mais favorável ao modelo holandês. É provável que tenha que pesar a liberdade de escolha com os possíveis problemas sociais, que poderiam ser causados pelos prejuízos nas várias esferas da sociedade e da vida do indivíduo. O caso do Brasil: seletividade na nova lei de drogas

Majoritariamente, a doutrina ensina que a finalidade do Direito Penal está relacionada à proteção dos bens jurídicos essenciais à sociedade, sendo que deve ser aplicado de modo a proteger os cidadãos igualituariamente, em outras palavras, a finalidade última do direito penal seria a defesa social. Entretanto, empiricamente, o que se percebe é que o sistema penal atua de forma seletiva, servindo aos interesses sociais de uma classe dominante, sobrecriminalizando determinados tipos penais mais recorrentes em determinado grupo social marginalizado. As funções que se afastam da defesa de bens jurídicos são chamadas por parte da doutrina de funções não declaradas e estão presentes estruturalmente desde a normatização até a atuação de policiais e magistrados. Nas palavras de Vera Regina P. Andrade a clientela do sistema penal é composta, regularmente, em todos os lugares do mundo, por pessoas pertencentes aos mais baixos estratos sociais e acrescenta que isso é resultado de um processo de criminalização altamente seletivo e desigual de pessoas dentro da população total, às quais se qualifica como criminosos. As mudanças mais significativas que a lei 11.343/2006, a nova lei de drogas, trouxe em substituição à lei 6.368/76 foi relacionada ao tratamento dado ao usuário e ao traficante de drogas. E ao estabelecer os critérios que o juiz deve seguir para diferenciar traficante e usuário, acaba por autorizar o uso seletivo do direito penal. A doutrina traz também a dúvida em torno da descriminalização ou não do consumo de drogas, já que dentre as sanções previstas em lei para serem aplicadas ao usuário de drogas não há previsão de pena privativa de liberdade e, segundo o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, tem-se por crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. O uso de drogas é disciplinado no artigo 28 da lei 11.343/2006. Considera-se usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Também recebe o mesmo tratamento penal aquele usuário que, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. Em relação à identificação do usuário, ainda no artigo 28, cabe ao juiz verificar se a droga encontrada em seu poder se destinava ao uso pessoal, ou não. Deve-se

analisar a natureza e a quantidade de substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente. É justamente no momento mencionado anteriormente que se mostra a abertura à seletividade, o poder que os operadores do direito penal (policiais, delegados e juízes) têm de determinar, muitas vezes com bases em estereótipos penais, quem será condenado ao encarceramento, sendo que o tráfico de drogas é um dos tipos penais mais rigorosamente punidos nos tribunais brasileiros. Portanto, ainda que as sanções destinadas à conduta de consumir drogas tenham sido abrandadas, a diferenciação entre esta e a conduta de traficar drogas é baseada em critérios não racionalizados e subjetivos, deixando espaço ao uso arbitrário do poder punitivo que o sistema penal pode exercer. Referências NASCIMENTO, Ari Bassi.Uma visão crítica das políticas de descriminalização e de patologização do usuário de drogas. Psicol. Estud. [online]. 2006, vol.11, n.1, pp. 185-190. ISSN 1413-7372. http://dx.doi.org/10.1590/s1413-73722006000100021. LARANJEIRA, Ronaldo. Drugs legalization and public health/legalizacao de drogas e a saude publica. Ciência & Saúde Coletiva 74.5 (2010): 621+. Academic OneFile. Web. 26 Jan. 2013. http://go.galegroup.com/ps/i.do?id=gale%7ca224864316&v=2.1&u =capes58&it=r&p=ao NE&sw=w ANDRADE, Vera Regina. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.52. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.81.