Estudo da percepção de cirurgiões-dentistas quanto à natureza da obrigação assumida na prática odontológica



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Transcrição:

Revista de Odontologia da UNESP. 2006; 35(2): 211-15 2006 - ISSN 1807-2577 Estudo da percepção de cirurgiões-dentistas quanto à natureza da obrigação assumida na prática odontológica Cléa Adas Saliba GARBIN, Artênio José Isper GARBIN, Ricardo Takeda LELIS Departamento de Odontologia Infantil e Social, Faculdade de Odontologia, UNESP, 16015-050 Araçatuba - SP Garbin CAS, Garbin AJI, Lelis RT. Study of the dentists perception in relation to the obligation assumed in the dental practice. Rev Odontol UNESP. 2006; 35(2): 211-15. Resumo: A partir da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, em março de 1991, o cliente passou a cobrar mais os seus direitos, o que ocasionou o aumento da ocorrência de processos movidos contra os fornecedores de todos os setores do mercado, inclusive no odontológico, tornando-se importante a determinação da obrigação assumida pelo profissional, a qual pode ser de meio ou resultado. Este trabalho objetivou verificar qual a percepção de cirurgiões-dentistas com relação à obrigação assumida na prática odontológica e a ocorrência de processos judiciais contra esses profissionais. Participaram da pesquisa 56 cirurgiões-dentistas do município de Araçatuba- SP, selecionados aleatoriamente, os quais, após consentimento livre e esclarecido, responderam a questionários auto-administrados com perguntas envolvendo o tema proposto. Do total da amostra, 59% dos cirurgiões-dentistas afirmaram que a Odontologia deveria assumir obrigação de meio, 34% responderam que dependeria de cada situação e 7% afirmaram que deveria ser de resultado. As especialidades mais classificadas como obrigação de meio foram a periodontia (82,1%); a ortodontia (75%); a CTBMF, a estomatologia e a implantodontia (73,2%) e a odontopediatria (70%). Um profissional (1,8%) afirmou ter sido processado judicialmente por paciente e outros quatro (7,1%) realizaram acordos extrajudiciais. Não houve consenso entre os cirurgiões-dentistas quanto à natureza obrigacional que a Odontologia deveria assumir; a ocorrência de processos e acordos extrajudiciais foi preocupante, exigindo uma reflexão sobre a conduta desses profissionais. Palavras-chave: Responsabilidade legal; relações dentista-paciente; odontologia legal. Abstract: In Brazil, after promulgation of the Consumer Defense Code in 1991, the consumers began to claim more and more their rights, increasing the lawsuits against the workers of all merchandising sectors, included the dental service. Then became important the determination of the obligation assumed by the professional, which can be obligation of means or results. This work aimed to verify the dentist s perception in relation to the obligation assumed in dental practice and the occurrence of lawsuits against these professionals. Fifty-six (56) dentists from Araçatuba city in São Paulo State participated of this research. The selection of the subjects was aleatoric, and after the informed consent, they answered to auto-managed questionnaires enclosing questions about the considered theme. From the total sample, 59% of the dentists stated that the dentistry should assume the obligation of means, 34% answered that it would depend on each situation and 7% stated that the dentistry should assume obligation of results. The dental specialties more considered as obligation of means were the periodontology (82.1%); orthodontics (75%); oral and maxillofacial surgery and traumatology, stomatology, implantodontology (73.2%) and pediatric dentistry (70%). One professional (1.8%) were processed and four dentists (7.1%) realized extrajudicial agreements. It was not observed consensus between the dentists in relation to the obligation that the dentistry should assume; the occurrence of the judicial process and extrajudicial agreements was preoccupying, demanding a reflection on the dentists professional behavior. Keywords: Legal liability; dentist-patient relations; forensic dentistry.

212 Garbin et al. Revista de Odontologia da UNESP Introdução O 3º artigo do Código de Defesa do Consumidor define claramente fornecedores como sendo todas as pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvem atividades de produção, comercialização, distribuição de produtos ou prestação de serviços 1. Assim, o cirurgião-dentista é um prestador de serviços odontológicos, enquadrando-se perfeitamente no conceito de fornecedor, de modo que pode ser acionado judicialmente, conforme a hipótese, por fato próprio ou de terceiro relacionado 2,3. Quanto ao paciente, este é reconhecido como consumidor, e é definido como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final 2. A relação cirurgião-dentista/paciente, por se tratar, muitas vezes, da contratação de prestação de serviços, pede que ambos os lados assumam obrigações que devem ser satisfeitas, sob pena de que seja ensejada ação para o seu cumprimento ou pelos danos sofridos pela sua inadequada ou não realização 3. Um dos fatores que podem influenciar na apuração e na execução de processos judiciais enfrentados por cirurgiões-dentistas é a determinação da obrigação assumida pelo profissional, a qual pode ser de meio ou de resultado. Na obrigação de meio, o profissional deve atuar com diligência, colocando à disposição do paciente todo o seu conhecimento, a fim de que seja alcançado o resultado almejado pelo paciente, não significando o insucesso do tratamento o descumprimento da sua obrigação 4,5. Segundo Farah, Ferraro 6, a obrigação de meio é a modalidade na qual o profissional, enquanto possuidor de um conhecimento específico, deverá agir de acordo com esses conhecimentos, sem, contudo, garantir o resultado de sua intervenção. É o que, via de regra, ocorre com a medicina. Na obrigação de resultado, o fornecedor se obriga, além do esforço necessário, a atingir determinado resultado útil de sua atividade 7. Pode ser definida, ainda, como aquela em que o credor tem o direito de exigir do fornecedor a produção de um resultado esperado, sem o qual se terá o inadimplemento da relação obrigacional 8. A importância desses conceitos aparece também na determinação de quem deve provar em juízo. Na obrigação de meio, o reclamante é quem deve provar onde se concentrou o erro do profissional. Na obrigação de resultado, o cirurgiãodentista é quem tem de provar que não errou 9. Alguns autores mostraram-se favoráveis à obrigação de resultado para a Odontologia por acreditarem que, se o bem do paciente for considerado como fim (resultado), os profissionais conduzirão sua prática de forma menos danosa nos sentidos físicos e morais 10. Outros autores afirmaram ainda que os cirurgiões-dentistas possuem condições de garantir resultados positivos na maioria dos tratamentos, haja vista o avanço da ciência Médico-Odontológica, o que amplia sua esfera de responsabilidade 11-13. No entanto, a imprevisibilidade biológica da resposta do paciente ao tratamento e a possibilidade de insucesso em se obter determinado resultado não podem ser ignoradas, devendo ser levadas em consideração. De acordo com Menegale 14, nas profissões sanitárias, como a Medicina e a Odontologia, o compromisso contratual não pode consistir em restaurar a saúde agravada, mas em empregar todos os recursos disponíveis para esse fim. Segundo Graça Leite 15, o insucesso terapêutico não constitui nenhuma culpa desde que o tratamento tenha sido realizado dentro das regras científicas em voga. Assim, o cirurgião-dentista apenas se obrigaria a diligenciar os meios de obter a cura, sem se comprometer a efetivá-la. Por outro lado, verifica-se, ao longo dos tempos, que subsiste na propaganda odontológica a prática de garantia de serviços prestados, muitas vezes até por escrito, e argumentos muitas vezes exagerados como: você irá tornar-se mais jovem com este tratamento ou o seu sorriso ficará maravilhoso, fatos que automaticamente configuram o tratamento proposto como sendo de resultado 4,16. Talvez esse fato contribua para que a maioria de nossos juristas entenda, de maneira inadequada e desfavorável para os cirurgiões-dentistas, que a prática odontológica, como regra, deva assumir obrigação de resultado 9,17. O presente estudo teve como objetivo verificar qual a percepção de cirurgiões-dentistas com relação à obrigação assumida na prática odontológica e a ocorrência de processos judiciais movidos contra esses profissionais. Material e método A pesquisa constituiu-se de um estudo descritivo transversal, tipo inquérito auto-aplicativo, tendo sido adotados questionários com perguntas abrangendo o tema proposto como instrumento de coleta de dados. Participaram da pesquisa 56 cirurgiões-dentistas do município de Araçatuba SP, que foram selecionados aleatoriamente a partir de lista fornecida pela vigilância sanitária. Os sujeitos da pesquisa, de acordo com as normas da resolução 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, foram esclarecidos por escrito que a participação na presente pesquisa seria voluntária e que os dados obtidos seriam, posteriormente, divulgados em publicações e reuniões científicas e, ainda, que suas identidades seriam mantidas em sigilo. A análise dos dados obtidos foi realizada utilizando-se o programa Epi-info 2000, versão 6.04, e os resultados foram apresentados em Gráficos.

2006; 35(2) Estudo da percepção de cirurgiões-dentistas quanto à natureza da obrigação assumida na prática odontológica 213 Resultado A amostra foi constituída por 56 cirurgiões-dentistas. Do total, 54% eram do gênero masculino e 46% do gênero feminino. Com relação à obrigação que a Odontologia deveria assumir no âmbito da responsabilidade profissional, 59% dos cirurgiões-dentistas afirmaram que ela deveria assumir obrigação de meio, 7% afirmaram que deveria ser de resultado e 34% responderam que dependeria da situação (Figura 1). A fim de se conhecer qual a percepção dos cirurgiões-dentistas quanto à obrigação que áreas específicas da Odontologia deveriam assumir, foi questionado quais especialidades esses profissionais classificariam como meio e/ou resultado, obtendo-se especialidades mais classificadas como de meio a Periodontia (82,1%); a Ortodontia (75%); a Cirurgia e Traumatologia buco-maxilo-facial (CTBMF), a Estomatologia e a Implantodontia (73,2%) e a Odontopediatria (70%) (Tabela 1). Quanto às especialidades que deveriam assumir obrigação de resultado, foram mais indicadas a Dentística (37,5%), a Prótese (35,7%), a Odontologia legal (32,1%) e a Radiologia (30,3%) (Tabela 1). Com relação à ocorrência de ações judiciais movidas por pacientes, um profissional (1,8%) afirmou ter passado por tal situação, tendo sido civilmente, processado na especialidade de Ortodontia, sendo posteriormente absolvido (Figura 2). Outros quatro cirurgiões-dentistas (7,1%) afirmaram ter realizado acordos extrajudiciais a fim de evitar o ensejo de processo judicial pelo paciente. Discussão A determinação da obrigação assumida pela Odontologia é tema de grande conflito e polêmica, inexistindo um consenso entre cirurgiões-dentistas, juristas e pesquisadores da área. A dependência da resposta biológica do paciente ou até a sua colaboração para o sucesso do tratamento odontológico têm feito alguns juristas perceberem que, na Odontologia, não pode haver previsibilidade de resultados 17. Estando de acordo com essa percepção, 59% dos cirurgiões-dentistas afirmaram que a Odontologia deveria assumir Tabela 1.* Distribuição percentual** da percepção dos cirurgiõesdentistas segundo a natureza obrigacional que as especialidades odontológicas deveriam assumir (Araçatuba - SP, 2004) Especialidade Natureza obrigacional Meio (%) Resultado (%) Periodontia 82,1 8,9 Ortodontia 75 23,2 CTBMF 73,2 14,3 Implantodontia 73,2 12,5 Estomatologia 73,2 7,1 Odontopediatria 70 8,9 Endodontia 66,1 17,8 Patologia Bucal 64,3 17,8 Prótese 62,5 35,7 Odontologia Prev. 60,1 17,8 e Soc. Dentística 58,9 37,5 Radiologia 44,7 30,3 Odontologia 44,7 32,1 Legal * Os cirurgiões-dentistas indicaram quais especialidades deveriam assumir obrigação de meio e/ou resultado, de modo que uma especialidade poderia ser considerada como meio e resultado pelo mesmo participante da pesquisa; ** Cada unidade percentual é referente ao número total de participantes (N = 56) 1,8% 7,1% 91,1% 34% 59% 7% Meio Resultado Depende da situação Figura 1. Distribuição percentual das respostas dos cirurgiõesdentistas quanto à obrigação que a Odontologia deveria assumir (Araçatuba, 2004). Foram processados por pacientes Fizeram acordos extrajudiciais com pacientes Não foram processados e nem fizeram acordos extrajudiciais Figura 2. Distribuição percentual dos cirurgiões-dentistas segundo a ocorrência de processos judiciais e realização de acordos extrajudiciais (Araçatuba, 2004).

214 Garbin et al. Revista de Odontologia da UNESP obrigação de meio, concordando com vários autores que defendem essa posição considerando a imprevisibilidade da resposta biológica do paciente ante o tratamento realizado, assim como a dependência do êxito do tratamento à cooperação do paciente no que diz respeito à sua alimentação, à higienização bucal, aos cuidados com próteses e aparelhos ortodônticos 4,18. Os dados encontrados em nosso estudo correspondem aos obtidos em trabalho realizado por Barbosa 19, quando 50% dos cirurgiões-dentistas entrevistados consideraram sua atividade como obrigação de meio. Entretanto, embora a percepção de alguns juristas venha inclinando-se para a obrigação de meio, a prática odontológica, para o direito, assume, via de regra, obrigação de resultado 11. Essa situação foi confirmada em estudo realizado por Barbosa 19 no município de Uberlândia-MG, quando 54% dos advogados participantes da pesquisa afirmaram que a obrigação dos cirurgiões-dentistas seria de resultado. Já em pesquisa realizada por Garbin 18, também envolvendo advogados, 19,4% destes afirmaram que a Odontologia deveria assumir obrigação de resultado, e a grande maioria (78,5%) relatou que a prática odontológica poderia assumir obrigação de meio ou resultado dependendo da situação. Em nosso trabalho, 7% dos 56 cirurgiões-dentistas participantes da pesquisa afirmaram que a Odontologia deveria assumir obrigação de resultado e 34% afirmaram que a obrigação que a Odontologia deveria assumir dependeria de cada situação. Não obstante, cabe ressaltar aos cirurgiões-dentistas que, se a garantia de um determinado resultado for expressa em qualquer serviço prestado ao consumidor, o profissional deverá responder cumprindo o prometido, assumindo automaticamente, dessa forma, obrigação de resultado. Os cirurgiões-dentistas foram questionados sobre quais especialidades deveriam assumir obrigação de meio ou resultado, obtendo-se como obrigação de meio a periodontia (82,4%), a implantodontia (73,2%), a cirurgia e a traumatologia buco-maxilo-facial (73,2%) e a odontopediatria (70%), o que está de acordo com a classificação apresentada por Simonetti 20 e Oliveira 7 sobre especialidades que deveriam assumir obrigação de meio. Esses mesmos autores classificaram como resultado a dentística, a prótese e a radiologia, também consideradas, respectivamente, por 37,5%; 35,7% e 30,3% dos cirurgiões-dentistas participantes de nossa pesquisa. Percebe-se assim, certa tendência dos cirurgiõesdentistas em considerar como obrigação de resultado as especialidades que estariam relacionadas também à estética e ao diagnóstico (Tabela 1). Observa-se, ainda, que poucos cirurgiões-dentistas mostraram-se cocordantes de acordo com a classificação proposta por Simonetti 20 e Oliveira 7 no que diz respeito às especialidades que deveriam assumir obrigação de resultado. No estudo realizado por Garbin 18, tendo advogados como participantes, as especialidades dentística, ortodontia e implantodontia foram as mais citadas como de resultado, respectivamente, por 80, 67,6 e 65,5% do total da amostra. As especialidades mais classificadas como de meio foram a CTBMF, a estomatologia e a endodontia, respectivamente, por 58,5, 57 e 50,4% dos participantes, o que se identifica claramente a tendência que a maioria dos advogados tem em considerar a Odontologia como obrigação de resultado. Segundo Calvielli 21, a atuação de cirurgiões-dentistas, pesquisadores e docentes da área de Odontologia Legal tem demonstrando aos juristas que, em especialidades como Cirurgia, Periodontia e Endodontia, existe uma grande dificuldade em prever a resposta biológica do paciente perante o tratamento realizado, devendo ser consideradas como obrigação de meio. Dessa forma, sabendo-se que o êxito de um tratamento odontológico está na dependência não só da adoção de uma técnica correta e atualizada pelo profissional, mas também da resposta biológica do paciente ante a terapêutica adotada e, ainda, dos hábitos e cuidados adotados por este, acreditamos que, a princípio, todas as especialidades deveriam ser consideradas como meio, devendo-se, obviamente, apurar a conduta do cirurgião-dentista observando-se a sua documentação. E é nesse ponto que o cirurgião-dentista se encontra em desvantagem, já que estaria se mostrando negligente com relação a isso 22. A não-observação de cuidados com a documentação odontológica comprometerá, em muito, a defesa do cirurgião-dentista em um processo judicial movido por pacientes insatisfeitos com o tratamento recebido. A literatura especializada tem demonstrado um aumento significativo do número de ações movidas contra cirurgiões-dentistas, especialmente após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor em 1991 1. Em relação ao registro de profissionais processados por pacientes, em nosso estudo, de 56 cirurgiões-dentistas, um fôra processado civilmente, sendo posteriormente absolvido. Embora aparente, à primeira análise, ser um número irrelevante, devemos considerar que, em um universo de 56 profissionais, esse resultado é significativo, ainda mais se considerarmos os cirurgiões-dentistas que realizaram acordos extrajudiciais com pacientes a fim de evitar o ensejo de processos (7,1%). Em nosso estudo, a porcentagem de profissionais processados foi equivalente à encontrada por Serra 22, pelo qual 1,3% dos cirurgiões-dentistas havia sofrido processos judiciais, sendo a maioria na esfera cível. O profissional participante de nossa pesquisa que foi processado judicialmente atuava na especialidade de Ortodontia, foi considerada a área em que mais ocorrem problemas jurídicos para os cirurgiões-dentistas, segundo a opinião dos advogados da pesquisa de Garbin 18. A ocorrência de ações judiciais movidas contra cirurgiões-dentistas poderia ser minimizada pela satisfação do

2006; 35(2) Estudo da percepção de cirurgiões-dentistas quanto à natureza da obrigação assumida na prática odontológica 215 paciente com o serviço realizado, por um bom relacionamento profissional/paciente, pela informação adequada sobre o serviço realizado e por uma adequada documentação odontológica 18. Conclusão Com a realização deste trabalho foi possível concluir que: Embora a maioria dos cirurgiões-dentistas tenha afirmado que a Odontologia deveria assumir obrigação de meio, não há ainda um consenso quanto a isso; As especialidades mais indicadas como obrigação de meio pelos cirurgiões-dentistas foram a Periodontia, a Odontopediatria, a Implantodontia e a CTBMF; O registro de profissionais processados e que realizaram acordos extrajudiciais com pacientes mostrouse preocupante, exigindo uma reflexão aprofundada sobre a conduta profissional dos cirurgiões-dentistas. Agradecimento Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cuja concessão de bolsa PIBIC possibilitou a realização desta pesquisa. Referências 1. Saquy PC, Jesus D, Silva RG, Souza Neto MD. O código de defesa do consumidor e o cirurgião dentista. Rev Paul Odontol. 1993;15(4):4-5. 2. Dias Ribeiro ARM. Erros profissionais e seus aspectos jurídicos em odontologia legal. Rev Bras Odontol. 1996;53(3):41-3. 3. Moro NRNL, Bueno JF. Responsabilidade técnica profissional em odontologia. JBO: Jornal Brasileiro de Ortodontia & Ortopedia Facial. 2000;3(16):29-34. 4. Calvielli IP. Natureza da obrigação assumida pelo cirurgião-dentista no contrato de locação de serviços odontológicos. Rev Assoc Paul Cir Dent. 1996;50:315-8. 5. Stoco R. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial: doutrina e jurisprudência. 4ª ed. São Paulo: Rev Tribunais; 1999. 6. Farah EE, Ferraro L. Responsabilidade civil. Guia prático para dentistas, médicos e profissionais da saúde. São Paulo: Quest; 1998. 7. Oliveira MLL. Responsabilidade civil odontológica. Belo Horizonte: Del Rey; 2000. 8. Diniz MH. Curso de direito civil brasileiro. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva; 1993. 9. Ferreira RA. No banco dos réus. Rev Assoc Paul Cir Dent. 1995;49:258-67. 10. Puppin AAC, Paiano GA, Piazza JL, Torriani MA. Ético versus legal implicações na prática clínica. Rev ABO Nac. 2000;8(1):38-41. 11. Schinesteck CR, Peske JB, Schinesteck PAN. A relação dentista-paciente sob a ótica judicial. JAO: J Assessor Odontol. 1998;2(8):22-24. 12. Bittar CA. Responsabilidade civil médica, odontológica e hospitalar. São Paulo: Saraiva; 1991. 13. Araújo ALM Responsabilidade civil do cirurgião-dentista. In: Bittar CA. Responsabilidade civil médica, odontológica e hospitalar. São Paulo: Saraiva; 1991. p. 155-75. 14. Menegale JG. Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista. Rev Forense. 1939;80:55-62. 15. Graça Leite V. Odontologia legal. Salvador: Era Nova; 1962. 16. Antunes FCM, Daruge Júnior, E, Daruge E. O cirurgiãodentista frente a responsabilidade civil. JAO: J Asssessor Odontol. 2001;4(24):45-51. 17. Ramos DLP, Calvielli ITP. Sugestão de composição de inventário da saúde do paciente. Rev Fac Odontol IMES. 1991;1(1):41-2. 18. Garbin CAS. A Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista, segundo a visão de advogados de Araçatuba-SP [Tese de Livre-Docência]. Araçatuba: Faculdade de Odontologia da UNESP; 2004. 19. Barbosa FQ, Arcieri RM. A responsabilidade civil do cirurgião dentista: aspectos éticos e jurídicos no exercício profissional segundo odontólogos e advogados da cidade de Uberlândia/MG. 2005 [citado em 2006 Abr 3]. Disponível em: www.propp.ufu.br/revistaeletronica/edicao2005/vida2005/a_responsabilidade.pdf 20. Simonetti FAR. Responsabilidade civil do cirurgião dentista. Rev Assoc Paul Cir Dent. 1999;53:449-50. 21. Calvielli ITP. Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista. In: Silva M. Compêndio de odontologia legal. Rio de Janeiro: Médica e Científica Ltda; 1997. p. 399-411. 22. Serra MC. Responsabilidade profissional em odontologia: cuidados observados por cirurgiões dentistas com a documentação odontológica, em consultórios particulares [Tese de Livre-Docência]. Piracicaba: Faculdade de Odontologia da UNICAMP; 2001.