CAPÍTULO 1 A independência da América portuguesa 1 Os bastidores da independência Figura 1 Embarque do príncipe regente de Portugal, Dom João, com a família real para o Brasil no cais de Belém, em Portugal, 1815, de Henry L Évêque. O início do processo de independência do Brasil é associado à chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. A imigração da elite da metrópole deu ao território uma nova condição, pois, de simples colônia, o Brasil passou a ser o centro das decisões do governo português (figura 1). A vinda da família real lusitana para a América portuguesa ocorreu em razão da invasão de Portugal pelo exército napoleônico. Ao assumir o governo da França, Napoleão Bonaparte confrontou-se diretamente com a Inglaterra, por meio do Bloqueio Continental, um decreto de 1806 que proibiu o comércio entre os países europeus sob domínio francês e a Inglaterra. O príncipe regente de Portugal, D. João, não acatou, entretanto, o boicote econômico contra os ingleses devido à dependência econômica do Estado luso em relação ao Estado inglês. Para escapar às pressões francesas, D. João aceitou um acordo com os ingleses que definia, entre outras questões, a transferência da monarquia portuguesa para o Brasil. Tendo em vista a posição do governo português, Napoleão determinou a invasão de Portugal, que esteve sob o domínio francês de 1808 até 1810. A partir de 1810 e até 1820, com a assinatura dos tratados de aliança e comércio entre Brasil e Inglaterra, o governo português passou para a tutela inglesa. 1 Biblioteca Nacional, Portugal 4
2 Marc Ferrez/Instituto Moreira Salles, São Paulo Figura 2 Antiga residência da família real portuguesa, o Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, é hoje sede do Museu Nacional. A foto é de Marc Ferrez (c. 1870), fotógrafo nascido no Rio de Janeiro em 1843 e cuja obra retrata cenas do Império e da República brasileira. Sob proteção britânica, o príncipe regente D. João, a família real e a corte portuguesa, formada por cerca de 15 mil pessoas, deixaram Lisboa em novembro de 1807, chegando à Bahia em 22 de janeiro de 1808 e ao Rio de Janeiro em 7 de março de 1808. Durante os 13 anos de permanência da família real no Rio de Janeiro, transformado na nova sede do Império, a cidade passou por profundas transformações urbanas e culturais. Provisoriamente, a família real acomodou-se no Convento do Carmo, localizado na atual praça XV de Novembro. Depois, um rico comerciante ofereceu a D. João, para sua residência, a Quinta da Boa Vista, no atual bairro de São Cristóvão (figura 2). Os nobres preferiram se instalar nos arredores da cidade, construindo novas residências, ocupando chácaras às vezes cedidas por alguns brasileiros ou, na maioria dos casos, confiscadas por decreto real. 2 A inversão brasileira Estabelecida a sede da monarquia portuguesa na capital da colônia, o príncipe regente (figura 3) substituiu a organização administrativa colonial por um verdadeiro aparelho de Estado. Foi a chamada inversão brasileira. O Rio de Janeiro passou a contar com estruturas típicas de capital. Foi estabelecida a Biblioteca Real (ver boxe na página 6), surgiu a Gazeta do Rio de Janeiro (pri- 3 Museu da Cidade, Rio de Janeiro Figura 3 O príncipe D. João chega à Igreja do Rosário, no Rio de Janeiro, óleo de Martins Viana. Em março de 1808, o príncipe regente e toda a corte chegaram ao Rio de Janeiro. 5
Biblioteca Nacional, um patrimônio brasileiro Figura 4 Prédio da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (2001). A Biblioteca Nacional guarda o patrimônio bibliográfico e uma parte do acervo documental do Brasil e tem como objetivo garantir o acesso de todos os cidadãos a seu acervo. Os duzentos anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil foram comemorados em 2008. Nessa viagem, junto com a corte, vieram cerca de 60 mil obras que compunham a Biblioteca Real e eram consideradas um dos grandes bens culturais de Portugal. O acervo trazido ao Brasil era composto, entre outras peças, de livros, estampas, manuscritos, mapas, moedas e medalhas. Incluía raridades como a Enciclopédia, dos iluministas Denis Diderot e Jean d Alembert, livros ilustrados de Albrecht Dürer e outras obras renascentistas e iluministas. Esse acervo deu origem à Biblioteca Nacional (figura 4), que, com um acervo de 9 milhões de volumes, é a maior biblioteca da América Latina. 4 Iatã Cannabrava/SambaPhoto meiro jornal a funcionar no Brasil), foram instaladas gráficas e outras instituições antes inexistentes. Além disso, várias missões exploradoras, científicas e artísticas vieram da Europa com a finalidade de descobrir e avaliar as riquezas brasileiras. A mais prestigiada delas, a Missão Artística Francesa, chegou ao Brasil em 1816, para dirigir a recém-criada Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que daria origem à Academia Imperial de Belas Artes. Entre seus nomes mais notáveis, havia os de Nicolas Taunay (1755-1830) e Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que compôs verdadeiras crônicas visuais do Brasil do século XIX, publicadas na obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. A permanência da corte no Rio de Janeiro propiciou a divulgação de novos hábitos e padrões de consumo até então desconhecidos pela elite local. Surgiram casas comerciais especializadas na venda de artigos de luxo europeus, principalmente roupas e acessórios, móveis e artefatos para uso doméstico. A presença da família real também resultou na adoção de medidas públicas que mudaram radicalmente o perfil político-econômico da colônia. Entre essas disposições, destacaram-se a revogação do Alvará de 1785 (que proibia a instalação de manufaturas na América portuguesa) e a assinatura, em 1810, de dois tratados com a Grã-Bretanha. Quanto à revogação do Alvará de 1785, é importante enfatizar que a liberação da instalação das atividades manufatureiras na colônia não promoveu o desenvolvimento imediato do setor, uma vez que, concomitantemente a essa medida, havia sido liberado o comércio de manufaturas inglesas no mercado colonial. A 6
revogação do Alvará de 1785 demonstra, no entanto, o interesse de D. João em impulsionar a produção industrial na colônia. Com relação aos tratados econômicos assinados com a Grã-Bretanha, o interesse dos ingleses pelo mercado colonial brasileiro estava ligado ao Bloqueio Continental, decretado por Napoleão e cujo objetivo era enfraquecer a economia da Inglaterra. Além disso, o bloqueio fechara os portos europeus continentais para o comércio de mercadorias inglesas. A Inglaterra, portanto, precisava expandir seu mercado consumidor e o fez a partir de acordos com a Coroa portuguesa. As concessões aos ingleses tiveram início na Bahia, em 1808, quando D. João proclamou a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, abolindo o pacto colonial. A união econômica entre Portugal e Grã-Bretanha seria definitivamente coroada em 1810, com a assinatura dos tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação. Os tratados concediam aos comerciantes ingleses tarifas alfandegárias preferenciais. Assim, a taxa de importação seria de 15% sobre os produtos britânicos, de 16% sobre os produtos portugueses e de 24% sobre os produtos de outras nações. Outra cláusula firmava um compromisso de reduzir em etapas o tráfico de escravos africanos, cuja extinção era exigida pela Inglaterra. Esses tratados favoreceram os interesses econômicos dos ingleses e prejudicaram a economia portuguesa e, em longo prazo, também a brasileira. Como consequência, o Brasil passaria a ser, por um longo tempo, grande consumidor de manufaturas britânicas. 2.1 A Insurreição Pernambucana A presença maciça de portugueses na colônia, a partir de 1808, e a grande quantidade de regalias por eles conquistadas em detrimento dos homens da terra foram alguns dos motivos que levaram à insurreição de 1817 em Pernambuco. Se para os reinóis sobravam privilégios, para a nobreza local, longe dos benefícios da corte, sobravam apenas cobranças e imposições. Somou-se a tal situação uma recessão da economia local, provocada pelas flutuações dos preços do algodão e do açúcar, principais produtos da região, além da queda da produção em decorrência da seca que assolava, desde 1816, o atual Nordeste. Em contrapartida, os comerciantes portugueses continuavam a controlar as atividades de importação e exportação, provocando o endividamento e a dependência dos grandes proprietários. Os déficits do Estado fizeram que o governo lançasse mão de mais taxações, fato que tornava ainda mais difícil a vida na região. Essa situação criou um quadro de tensão e indignação na aristocracia agrária e entre os homens livres pobres. Por fim, a difusão do reformismo ilustrado português, principalmente entre os membros do clero, combinado com um forte sentimento antilusitano, fez eclodir, em março de 1817, o movimento conhecido como Insurreição Pernambucana, que se propagou para outras áreas da região nordestina. O movimento, de caráter separatista, proclamou uma república e organizou um governo provisório responsável pela elaboração de uma Lei Orgânica, baseada nos princípios de liberdade de consciência, de imprensa e de culto. Enquanto os revolucionários dominavam o Recife, organizava-se a repressão na Bahia e no Rio de Janeiro. Uma série de confrontos ocorreu entre os sublevados e as forças oficiais, até que, em maio de 1817, terminou a resistência dos insurretos. As punições foram rigorosas, com muitas prisões e execuções. Glossário Reinol. Indivíduo natural do reino; no caso, pessoa nascida em Portugal. 7
Glossário Cortes. Assembleia portuguesa composta de representantes dos três Estados: clero, nobreza e povo. Figura 5 A partida da família real para Portugal, em 21 de abril de 1821, foi ilustrada em uma das litografias que compõem a obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, lançada em três volumes (entre 1834-1839), de Jean-Baptiste Debret. 5 3 A Revolta do Porto (1820) A transferência da capital do Império português de Lisboa para o Rio de Janeiro gerou um clima de amargura e insatisfação na burguesia lusitana, uma vez que Portugal passou a ser governado por uma junta governativa inglesa que prestava contas a D. João. Muitos dos que haviam permanecido na metrópole consideravam que ela ficara relegada a uma posição secundária, principalmente quando o Brasil foi elevado à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, por ocasião do Congresso de Viena (1814-1815). A inversão brasileira e a influência das ideias iluministas que rondavam a Europa fizeram a elite portuguesa buscar o fim do absolutismo. Por volta de 1820, na cidade do Porto, iniciou-se um movimento revolucionário que exigia o imediato retorno do rei português para a Europa e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. A nova Constituição determinaria o fim do regime absolutista real. As ideias revolucionárias se espalharam rapidamente pelo país. A aprovação da sociedade tornou possível a formação de um governo provisório que convocaria as Cortes para dar início à elaboração da Constituição. Esse movimento, conhecido como Revolta do Porto, ao mesmo tempo que deu início à passagem efetiva do absolutismo para a ordem liberal em Portugal, interferiu na emancipação brasileira. Ao tentarem reduzir mais uma vez o território brasileiro à condição de colônia, as Cortes desencadearam o processo que daria fim ao jugo português na América. Entre outras medidas, os portugueses exigiram o retorno de D. João e da família real para Portugal (figura 5). D. João retornou e deixou seu filho Pedro no Brasil como príncipe regente. Aliado às elites que não aceitavam o processo de recolonização proposto pela Revolução do Porto, D. Pedro apoiou e protagonizou o processo de emancipação política do país. Biblioteca nacional, portugal 8