LINGUAGEM, TEORIA E CONHECIMENTO: O PAPEL DA LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO TEÓRICO



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LINGUAGEM, TEORIA E CONHECIMENTO: O PAPEL DA LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO TEÓRICO Elisson Ferreira Morato Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET MG) GT 05: Filosofia da Ciência e da Tecnologia RESUMO: este trabalho apresenta uma reflexão sobre as relações entre linguagem e construção teórica a partir do conceito de teoria de Popper (1972), da teoria da significação de Peirce (1972) e do conceito de paradigma de Khun (2007). De acordo com Popper, as teorias são enunciados, ou conjuntos de signos, utilizados para explicar o mundo. Nessa perspectiva, podemos entender que a teoria se coloca no lugar de um evento do mesmo modo que, na linguagem, uma representação ocupa o lugar de um objeto. Assim, podemos dizer que uma teoria é uma representação de um evento possibilitada pela linguagem, sendo que esta representação ocorre dentro de um paradigma científico determinado, um modelo que leva a teoria a ser articulada segundo valores de verdade e falsidade, os quais podem ser alterados com o tempo. PALAVRAS-CHAVE: linguagem; teoria; representação. 1. Introdução: O ensino tecnológico não pode prescindir de apresentar, além de um conjunto de técnicas, um montante de conhecimentos teóricos. Assim, essa modalidade de ensino reúne tanto um saber-fazer quanto um fazer-saber, o que inclui tanto o conhecimento técnico quanto a aplicação de teorias. Uma teoria, por sua vez, não raramente se encontra permeada de mitos, dentre os quais o de que ela é o próprio evento que procura explicar ao invés de uma representação deste. Encontramos também a ideia pré-concebida de que as teorias são isentas de julgamentos de valor. Também citamos a concepção de que a teoria se constrói pelo acúmulo de conhecimentos, de modo a se tornar apenas o apêndice de outra já suprimida. Nesse âmbito, nos encorajamos a provocar uma reflexão sobre teoria e alguns fatores que lhes são determinantes. Se a teoria é um modo de representar e, ao mesmo tempo, compreender um fenômeno e prever dados que lhe sejam correlatos, podemos entender que essa representação é operada, direta ou indiretamente, pela linguagem, através da qual o observador interage com o mundo.

Dessa maneira, uma teoria se coloca artificialmente no lugar daquilo que procura explicar e se torna uma representação passível de ser comunicada, partilhada e/ou contestada por uma dada comunidade científica. Nesse contexto, o presente trabalho apresenta uma reflexão teórica sobre as relações entre linguagem e teoria com o objetivo de estimular o posicionamento crítico frente ao estudo e/ou a aplicação teórica no ensino tecnológico. Nossa pesquisa consiste em um estudo teórico-reflexivo, resultando daí uma metodologia centrada no estudo de conceitos elementares como o de teoria, conforme depreendido no trabalho de Karl Popper (1972) e Thomas Khun (2007), linguagem, significação e representação, conforme Charles Sanders Peirce (1972) e de paradigma, também discutido na obra de Thomas Khun (2007). Para tanto, iniciamos nossa discussão através do conceito de teoria. 2. Conceito de teoria: As concepções melhor cristalizadas de teoria a definem como uma representação de um dado fenômeno (o movimento, a linguagem, a evolução, a relatividade etc) de modo a se obter, a partir desta, um esclarecimento lógico de um evento e, ao mesmo tempo, um conjunto de previsões possíveis de outros fatos que sejam derivados ou estejam relacionados ao evento principal. Uma teoria está relacionada com uma explicação possível sobre algo que se acredita poder explicar. O epistemólogo austríaco Karl Popper (1902-1994), em sua obra A Lógica da Pesquisa Científica nos oferece a seguinte explicação: As teorias são redes lançadas para capturar aquilo que denominamos o mundo: para racionalizá-lo, explicá-lo, dominá-lo. (POPPER, 1972, p. 60) É curioso observar o acréscimo que o autor faz a essa acepção: As teorias científicas são enunciados universais. Como todas as representações linguísticas, são sistemas de signos ou símbolos (POPPER, 1972, p.60). Julgamos curiosa a definição de Popper por que, quando comparado ao conceito do mesmo objeto, legado por um teórico das ciências da linguagem, temos a seguinte definição: teoria é um conjunto coerente de hipóteses suscetíveis de serem submetidas à verificação. (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p. 498). A noção dada pelos semioticistas franceses Algirdas Julien Greimas e Jean Courtès nos parece, podemos dizer, menos contaminada por uma concepção linguística de ciência.

3. Teoria e representação de mundo: A teoria preenche uma lacuna importante no conhecimento humano, já que explica aquilo que, até então, não encontrava uma elucidação satisfatória. Entretanto, devemos lembrar que o conjunto de hipóteses que forma o aparato teórico não consiste no esclarecimento definitivo do problema, nem a confirmação de tal fenômeno é dada pela aplicação de tais e tais hipóteses. Uma teoria fornece uma explicação transitória que, entretanto, tem o aspecto de ser definitiva. Como nos diz Popper (1972, p. 87), as teorias científicas estão em perpétua mutação. É transitória porque, conforme nos mostra a história da ciência, as explicações dos eventos duram um período de tempo maior ou menor até serem substituídas por outras. E é definitiva porque o pesquisador ou o público leigo tem a impressão de que a explicação existe desde tempos imemoriais e perdurará até o último capítulo possível da história do conhecimento humano. O fato de as teorias serem elaboradas e, posteriormente, substituídas enquanto os eventos permanecem suscitando dúvidas nos dão uma primeira certeza de que a teoria não é o fenômeno em si, assim como um conceito, de força, gravidade ou movimento, por exemplo, não é, necessariamente, a coisa que ele descreve e/ou representa. Do mesmo modo, uma palavra, pedra, céu, queda, por exemplo, são apenas termos através dos quais representamos e comunicamos essas coisas. Nessa perspectiva, podemos entender que uma teoria representa um fenômeno do mesmo modo que as palavras representam os objetos ou os eventos o mundo. O problema da construção ou elaboração teórica não difere do problema da representação das coisas através da linguagem. Tanto nosso conhecimento do mundo quanto a elaboração teórica dos fatos é perpassada pela linguagem, linguagem não entendida como conjunto de sinais que servem a comunicação, mas como elemento que media o mundo e o conhecimento humano. A capacidade de explicar cientificamente o mundo deriva da capacidade de representá-lo e de transformar essa representação em dados através dos quais são tecidas hipóteses por meio das quais se constitui a teoria. Precursor dessa noção é o filósofo alemão Imanuel Kant (1724-1804), segundo o qual só podemos conhecer o mundo através de nossa capacidade de representá-lo e, ao mesmo, na capacidade de interpretarmos essas representações: Nosso conhecimento emana de duas fontes principais do espírito: a primeira consiste na capacidade de receber representações (a receptividade das impressões) e a segunda na faculdade de conhecer um objeto por meio dessas representações (a espontaneidade dos conceitos. Pela primeira

nos é dado um objeto, pela segunda é pensado em relação a essa representação. (KANT, 1958, p. 62) Assim, Kant alega que o entendimento é a faculdade que temos de produzir nós mesmos representações (1958, p. 63). Desse modo, o que conhecemos do mundo não são os fenômenos, mas representações destes, ao passo que os fenômenos não são as coisas em si, existem só no mesmo sujeito (KANT, 1958, p. 131). O filósofo alemão separa as coisas em si, os númenos, dos fenômenos, estes são a maneira através da qual percebemos aquelas. Desse modo, não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas representá-las mentalmente através das sensações que percebemos através dos sentidos. Temos, então, um paradoxo, é através dos sentidos que conhecemos as coisas, e também dos sentidos que estamos privados de conhecer as coisas tais como são em si mesmas. Do mesmo modo, uma teoria nos permite conhecer um evento, mas, ao mesmo tempo, não nos permite de conhecê-lo em si mesmo. 5. Fenômeno e evento: Julgamos necessário estabelecer uma diferença terminológica entre fenômeno e evento. Na filosofia kantiana fenômeno pode ser entendido como uma propriedade através da qual um objeto em si mesmo é apreendido pelos sentidos. As cores, formas, texturas, sons são fenômenos através dos quais podemos conhecer os objetos. Uma maçã, por exemplo, é percebida através das sensações visuais, táteis e gustativas. Nessa perspectiva, o que podemos apreender não é a maçã em si mesma e sim os fenômenos a ela relacionados. Neste trabalho, a fim de evitar equívocos distinguimos fenômeno, que é a propriedade através da qual apreendemos um dado objeto, de evento, sendo que este último é o conjunto de fenômenos que forma aquilo que uma teoria busca explicar, como a gravidade, o movimento, ou a eletricidade, por exemplo. Logo é mais lícito entender, neste artigo, que a teoria busca representar um evento e não um fenômeno, já que aquele é um conjunto formado pela multiplicidade destes. 6. A linguagem e a representação teórica: o legado de Peirce: No início do século XX, o pensador e semioticista norte-americano, Charles Sanders Peirce (1839-1914) elaborou uma teoria segundo a qual só podemos conhecer o mundo

através das sensações que captamos deste. O diferencial, entretanto, estava em considerar que essas sensações geram elementos de representação, os signos. Defendendo uma visão pansemiótica do mundo, o autor alega que as coisas só podem ser percebidas através de signos, os quais se colocam no lugar dos objetos representados. Nosso conhecimento, assim, é possibilitado através das representações que fazemos dos objetos do mundo e dos fenômenos, e conhecer um evento é representá-lo por meio de signos, que são elementos que formam o pensamento colocando-se mentalmente no lugar da coisa representada. Conforme a teoria peirceana, a realidade, ou os objetos do mundo, chega à consciência segundo três categorias de percepção, sendo elas: a Primeiridade, a Secundidade e a Terceiridade (PEIRCE, 1972, p. 136), que são classes de fenômenos usadas na construção de representações mentais, os signos, do mundo. As categorias têm um papel importante, uma vez que permitem a apresentação dos fenômenos, possibilitando o estudo de sua natureza básica e, consequentemente, de suas representações. As categorias permitem uma especificação satisfatória dos fenômenos segundo modalidades de signos e de significação distintos. As três modalidades básicas para os processos de significação, apontadas anteriormente, não são uma função isolada, pelo contrário, a Primeiridade está contida na Secundidade essas duas, conjugadas, integram a Terceiridade, o que merece um esclarecimento mais delongado. Na primeira categoria, a Primeiridade, temos as sensações vagas que não chegam a gerar uma reação na mente, não sendo capazes de gerar um signo definido que as represente. Os estímulos da Primeiridade não chegam a se constituir enquanto signos, mas apenas como Quali-signos (PEIRCE, 1972, p.100), uma primeira ordem de fenômenos sem uma representação mais complexa. A Secundidade pode ser ilustrada como sendo a sensação provocada por um estímulo, categoria na qual se tem a descrição da relação entre consciência e mundo exterior. Assim, o contato com o fenômeno leva a uma resposta, uma reação por parte do indivíduo, e dessa maneira, os objetos são dados na conjugação de uma ação com uma reação. A Primeiridade depende de uma Secundidade para existir, ou vice-versa. As sensações primitivas dadas pelo Quali-signo peirceano, levam imediatamente a uma resposta, passando do campo da Primeiridade para o da Secundidade. A Primeiridade consiste em uma categoria preenchida por signos caracterizados como estímulos vagos, signos primitivos que logo encontram uma forma mais evoluída, possibilitada pela ação cognitiva que seria definida como um Sin-signo (PEIRCE, 1972, p. 100) que envolve um Quali-signo, ou antes, vários

Quali-signos (PEIRCE, 1972, p. 100). Desse modo, depreende-se que o Sin-Signo é uma formulação constituída por Quali-Signos. As duas categorias anteriormente explanadas resultam em uma outra, subsequente: a Terceiridade, que consiste já no pensamento por signos. O elemento aqui constituído por via da Primeiridade e Secundidade é chamado de Legi-signo, a significação formada por Qualisignos e Sin-signos. Uma vez que se trata do pensamento traduzido em linguagem, o Legisigno é dotado de significação graças à atuação de convenções sociais, linguísticas e culturais. Na doutrina de Peirce, a Primeiridade, mera qualidade de signo, só existe enquanto pensada pela Secundidade, uma espécie de signo que leva à consciência da Primeiridade. A Terceiridade, por sua vez, fornece o entendimento necessário à consumação das categorias anteriores. Trata-se de um conjunto de elementos em dependência recíproca: não há Terceiridade sem Secundidade ou este último sem Primeiridade. Essa ordem pode ser invertida de modo a se afirmar que não há Primeiridade sem Secundidade e/ou Terceiridade. Com a inter-relação mantida pelas três categorias dos fenômenos, Peirce apresenta uma tricotomia na qual vincula o signo, ou representamem, a ele mesmo, estabelecendo, assim, a natureza de um fenômeno semiótico em si. A tríade Quali-signo, Sin-signo, Legisigno caracteriza três modos possíveis de apreensão das realidades. O mais frágil e mais primitivo dos signos, o Quali-signo é uma qualidade de impressão de um objeto: é a impressão imediata que um objeto provoca na mente de um sujeito cogniscente. Uma exemplificação eficaz dessa qualidade de signo e de seu efeito a priori é a sensação de vermelhidão. Uma grande tela vermelha que fosse colocada a nossa percepção geraria impressões vagas e passageiras relacionadas a ela. Impressões que só se dariam por percebidas e apreendidas com a ocorrência de um signo mais evoluído: o Sinsigno. O Sin-signo é um representamem que existe em função do anterior sendo, nessa perspectiva, uma elaboração de um Quali-signo, a sensação provocada pelas impressões do Quali-signo. O Sin-signo é um processo de reação e, ao mesmo tempo, é essa reação. Diante da tela vermelha, por exemplo, poderíamos sentir excitação, tristeza, ou qualquer outra gama de reações. O Legi-signo é um signo que se porta como que estipulado por uma lei, ou como sendo, necessariamente, essa lei. Muitas vezes, as reações diante dos objetos podem ser culturalmente motivadas. Essa elaboração convencionada nos mostra que os dois signos anteriores encontram uma formulação que é convencionada e legislada. A cor vermelha, por exemplo, pode ser usado em um semáforo como a representação de um estatuto que ordena

um motorista que pare, ainda que, a priori, o vermelho não tenha essa função. Os Legi-signos são aqueles elaborados a partir de reações advindas de sensações vagas, os Quali-signos, e transformadas em uma ideia cristalizada. Trata-se do pensamento traduzido em linguagem, seja ela verbal ou não-verbal. A linguagem, assim compreendida, é um processo dinâmico através do qual representamos nosso estar-no-mundo através da interpretação deste. Peirce dividiu esse processo em três etapas: na Primeiridade temos a impressão imediata das coisas através dos sentidos (visão, olfato, paladar, tato, audição), na Secundidade esses estímulos são organizados e associados a alguma ideia e na Terceiridade, temos o pensamento propriamente dito: a interpretação e re-elaboração mental do mundo observado. Em todas essas etapas ocorre a formação de signos, ou representamens, que são elementos através dos quais representamos os objetos, concretos ou abstratos do mundo. A elaboração teórica se assemelha, nesse aspecto, ao processo de significação do mundo. A interpretação do mundo através da linguagem opera do mesmo modo que a teorização de um fenômeno, de modo que uma teoria se torna um conjunto de signos, um conjunto de elementos ou representações, como premissas, equações e enunciados que se colocam no lugar dos eventos em si mesmos. 7. Eratóstenes e Ptolomeu: Um exemplo do processo de significação concebido pela teoria de Peirce pode ser dado por uma experiência realizada pelo matemático grego Eratóstenes (285-194 a.c.). Conta-se ele descobriu na lendária biblioteca de Alexandria, no norte do Egito, um pergaminho no qual se relatava que, na cidade de Siene, ao sul, ao meio-dia durante o dia mais longo do ano o sol não projetava nenhuma sombra em contato com uma coluna de pedra ou com uma vara fincada no chão. Do mesmo modo, ao meio-dia, a luz do sol iluminava diretamente o fundo de um poço. O que intrigou Eratóstenes não foi o relato em si, mas o fato de que também no dia mais longo do ano, no mesmo horário, o mesmo fenômeno não ocorria na cidade de Alexandria. Nessa localidade, uma vara fincada no chão ao meio-dia do dia mais longo do ano projetava uma sombra de extensão significativa, ao contrário do que ocorria em Siene. O matemático então intuiu que essa diferença na extensão da sombra era devido ao fato de que os raios solares atingiam a Terra em ângulos diferentes. E essa diferença no ângulo dos raios solares em relação à Terra era devida e circunferência desta, ou seja, a Terra

não era plana ou achatada como prediziam alguns. Para chegar a essa constatação, o sábio não utilizou apenas raciocínio lógico e uma argumentação coerente, mas cálculos matemáticos e experimentos. Eratóstenes mediu a distância entre Alexandria e Siene (cerca de 800 km) e pode calcular com relativa precisão a medida da circunferência do planeta. Se a vareta fincada em Alexandria com aquela fincada em Siene se encontrasse no centro do planeta, formariam um ângulo de 7 graus. 7 graus correspondem a 1/50 avos de uma circunferência. Ora se a distância entre Alexandria era de cerca de 800 km e se um círculo possui 360 graus, a circunferência da Terra deveria medir cerca de 40 mil Km. Uma definição bastante precisa se consideramos hoje que a Terra possui um diâmetro de 40.072 km na linha do Equador. Tudo apenas observando o jogo entre sol e sombra em duas cidades diferentes. O procedimento de Eratóstenes, se encaixado nas categorias da significação de Peirce nos daria a seguinte configuração: Quadro 1: Primeiridade Secundidade Terceiridade Sensação visual de luz e sombra Reação às sensações, organização visual dos objetos: Luz, sombra, coluna, vareta etc. Formação de conceitos a associação de ideias: Sombra de um objeto formada pela luz sobre ele Entretanto, o quadro acima se mostra suficiente para explicar um processo de construção teórica? E se a simples observação de um evento é a condição para a construção teórica, porque outro observador não teria chegado às mesmas conclusões antes de Eratóstenes? Podemos responder que outros não o fizeram porque não eram cientistas. Tal resposta é válida, mas um tanto vaga e sem o devido detalhamento. Eratóstenes observou o evento equipado não apenas com os sentidos, a visão, por exemplo, e com a faculdade do raciocínio, mas com um conjunto de crenças, segundo as quais determinados cálculos matemáticos lhe permitiriam tirar algumas conclusões possíveis. Incorrendo propositalmente em uma tautologia, essas conclusões, por seu turno, poderiam ser confirmadas por esses cálculos. O matemático, então, não utilizou apenas a experiência dos sentidos, para construir o conhecimento teórico, mas uma espécie de prisma científico através do qual convertia os fenômenos observados em dados, digamos científicos. Naquela época, ainda não havia ciência

a não ser em estado embrionário. Eratóstenes, portanto, não era um cientista e não elaborou uma teoria, mas, ainda assim, agiu dentro um procedimento científico, um conjunto de princípios segundo os quais os resultados de suas observações foram convertidos em cálculos e os cálculos na representação lógica de um evento. Cerca de dois séculos depois de Eratóstenes, outro importante personagem desse período proto-científico elaborou uma tese segundo a qual a Terra era o centro do universo e em seu redor giravam o Sol e os planetas. Era o geocentrismo, uma proto-teoria planetária criada por Hiparco de Nicéia (190-126 a. C.) e aperfeiçoada por Cláudio Ptolomeu (168-90 a. C.). Tanto Hiparco quanto Ptolomeu usaram cálculos, observações e também estavam atuando dentro de parâmetros lógicos. Entretanto, o sistema geocêntrico se mostrou equivocado enquanto as conclusões de Eratóstenes, no máximo, foram pouco menos precisas do que hoje. Não podemos dizer sumariamente que Ptolomeu e Hiparco estavam errados, em especial porque, naquela época, o único conceito possível de planeta Terra era, necessariamente, o de um corpo celeste imóvel. Ptolomeu estava correto, mas dentro de um paradigma errôneo. A Terra não poderia ser entendida como um corpo que se move no espaço porque o único ponto de referência possível para a observação do movimento dos astros era a própria Terra. Desse modo, observando o céu, a Terra parecia ser o único corpo imóvel nesse antigo sistema planetário. O que rendeu a Eratóstenes o mérito e a Ptolomeu e Hiparco o abandono de seu sistema não foi a verdade dos fatos em si mesmos, mas a maneira pela qual esses fatos foram aceitos e representados durante séculos. Por exemplo, mesmo errado, o geocentrismo ptolomaico perdurou até o século XV, quando ocorreu a chamada revolução copernicana. Pelo mesmo motivo, pouca importância se deu a precisão das conclusões de Eratóstenes e o homem medieval passou quase mil anos temendo navegar e chegar a um abismo no qual o mundo, que era plano, acabava. O conjunto de crenças que girava em torno desses três pensadores antigos é o que chamamos de paradigma, ou de proto-paradigma, já que, naquela época, ainda havia uma ciência propriamente dita. Com o advento da ciência moderna, a partir do século XVI, podemos falar definitivamente em paradigma e de como ele pode transformar os dados brutos de uma observação sensorial em teoria científica. Para tanto devemos esclarecer sobre o conceito de paradigma, um termo que já mencionamos anteriormente.

8. Paradigma e progresso científico em Khun: Embora o conceito de paradigma, em Thomas Khun seja essencial ao desenvolvimento de suas considerações sobre as revoluções científicas, o autor mal o define ao longo da obra, ou o faz de maneira bastante vaga. Tal crítica foi acatada posteriormente pelo autor que concretizou a noção de paradigma de dois modos possíveis. Paradigma pode ser entendido tanto como um conjunto de crenças, valores e técnicas partilhadas pelos membros de uma comunidade científica quanto um tipo de elemento desse conjunto, como metodologia fórmulas, conceitos etc (cf. KHUN, 2007, p. 220). De maneira geral, sem nos afastarmos do conceito khuniano, podemos entender paradigma como um conjunto de crenças que orienta a observação de um evento e dirige elaboração de uma teoria. Na história da ciência, os paradigmas podem ser substituídos por outros, como ocorreu com o geocentrismo ptolomaico. Essa mudança é o que Khun chama de revolução científica (KHUN, 2007, p.122). O fato de os paradigmas serem ocasional e inevitavelmente substituídos por outros mostra que o conhecimento científico não é construído pelo acúmulo de saberes, mas pelo rompimento que novos conhecimentos provocam em relação aos antigos. Nessa perspectiva, as teorias são transitórias: funcionam e explicam o evento durante um período de tempo e depois podem ser substituídas constando apenas em capítulos da história da ciência. Isso ocorre porque o paradigma oferece respostas para os eventos apenas durante um período de tempo. Mas qual a relação entre paradigma, linguagem e representação teórica? É dentro de um determinado paradigma que a observação de evento ganha uma configuração teórica. No exemplo de Eratóstenes ou de Ptolomeu, a ausência de sombra ao meio-dia ou o suposto movimento do Sol em relação à Terra foram dados elaborados a partir da observação bruta do mundo concreto, de modo que as primeiras ferramentas desses sábios foram apenas os olhos. Posteriormente é que esses estímulos foram compreendidos dentro daquilo que chamamos de proto-paradigma, já não havia ainda um método científico definido. Primeiramente esses homens interpretaram os estímulos dados pelo mundo sensível, e, em seguida, o transpuseram para um paradigma que lhes permitiu teorizar a respeito. Essa discussão pode gerar a seguinte tautologia, a observação leva ao paradigma e o paradigma leva a observação. De fato, o paradigma pode educar os sentidos do observador, de modo que este perceba o evento sempre dentro do paradigma. Entretanto, não podemos nos esquecer que um paradigma não existe a priori, ele também é uma convenção. Uma espécie de ferramenta de pensamento muitas vezes usada de maneira inconsciente através da qual o cientista

transforma os dados brutos do evento observado em dados científicos. Linguagem e paradigma, desse modo, são como ferramentas complementares na elaboração teórica. Segundo Khun (2007, p.150), o mundo observado é condicionado pela tradição científica, e, desse modo, o que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual conceitual prévia o ensinou a ver. Assim, podemos acatar que as alterações perceptivas, a maneira como um observador vê o mundo, acompanham as mudanças de paradigma, ou das maneiras através das quais o conhecimento do mundo pode ser elaborado. Se conciliarmos as ideias de Peirce com de Khun poderíamos articular a seguinte configuração para o conhecimento teórico-científico: Quadro 2: Primeiridade peirceana Impressão imediatada dos objetos Secundidade peirceana Reação impressão imediata, sensação a Terceiridade peirceana Elaboração das impressões em pensamento organizado, reconhecimento dos objetos do mundo Observação científica Observação do evento Constatação do problema Reação ao evento observado Elaboração teórica Formulação de hipóteses e representação teórica Não podemos nos esquecer que os paradigmas não são fatos ou eventos naturais, e sim convenções científicas igualmente transitórias como as formas de se perceber um evento. Se encaixada na teoria da significação de Peirce, um paradigma seria um signo pertencente a terceira categoria, a Terceiridade, que constitui uma classe de signos que consistem em uma lei ou uma convenção. Exemplos desses legi-signos seriam o conceito ptolomaico de Terra enquanto um corpo imóvel no céu. Os paradigmas convencionam as observações dos eventos do mesmo modo que a observação dos eventos convenciona um paradigma. É que ocorre quando uma teoria não consegue mais prever ou explicar um dado problema. A revolução copernicana, por exemplo, ocorreu porque as observações de Copérnico não conseguiam ser orientadas pelo paradigma ptolomaico do geocentrismo. Ou seja, as representações copernicanas do evento observado é que condicionaram a mudança de paradigma e não o contrário. 9. Copérnico:

Matemático e astrônomo polonês, Nicolau Copérnico (1473-1543), contrariou o paradigma ptolomaico segundo o qual a Terra era o centro do universo e não se movia. Entretanto, esse progresso científico notável não se deveu ao acúmulo de saberes sobre o sistema solar, mas do rompimento com os conhecimentos até então admitidos e tidos como verdadeiros. O objeto dessa discussão, o sistema planetário, entretanto, continuava inalterável. Copérnico, embora autor de ideias revolucionárias, não deixou comprovações mais empíricas sobre suas conclusões e teve que esperar que outros astrônomos, como Kepler e Galileu confirmassem suas ideias. Para Copérnico, o fato de o Sol ocupar o centro do sistema solar já não era tão novo, já que existiam evidências dessa convicção em pensadores gregos como Aristarco de Samos (310-230 a. C.). Mas a Copérnico faltaram dados que permitissem a verificação de suas hipóteses: suas ferramentas foram apenas os olhos nus com que observava os astros e cálculos matemáticos. Os principais meios com que o astrônomo polonês divulgou sua teoria foram os argumentos. Esse astrônomo, apesar de observar o céu a olho nu se baseou não só na simples observação, mas na elaboração de dados. Por outro lado, os dados de Copérnico serviram para que outros cientistas consolidassem a ruptura com o paradigma geocêntrico, inaugurando a moderna astronomia. Galileu, ao inaugurar a ciência experimental tornou mais consistente a teoria copernicana e Newton, com sua teoria da gravitação universal também confirmou a validade das ideias de Copérnico. Copérnico não deixou equações memoráveis, mas um modelo teórico no qual o Sol ocupava o centro do sistema planetário em torno do qual os planetas conhecidos desenvolviam órbitas elípticas. A ideia segundo a qual os planetas descrevem órbitas elípticas em torno do Sol, por outro lado, serviu de base que o físico inglês Isaac Newton (1643-1727) construísse a teoria da gravitação universal. Entretanto, o nos interessa em Newton não é o fato de ter apoiado sua teoria nos ombros de um gigante, como Copérnico, conforme teria dito certa vez. Mas no de estabelecer cálculos segundo uma linguagem especificamente científica, ou um modo de expressão particular. A elucidação da força que mantinha em funcionamento o modelo planetário de Copérnico não foi dado apenas por uma argumentação verbal pura e simples, mas também por fórmulas matemáticas, como:

De acordo com a teoria newtoniana, o motivo pelo qual os planetas descrevem uma órbita em redor do Sol é o mesmo pelo qual os objetos caem. A gravidade faz com que os objetos se atraiam for meio de uma força, a gravidade, a qual depende tanto da quantidade de matéria que há nesses corpos quanto da distância que os separa. Na lei da gravitação universal, m 1 e m 2 são dois corpos de massa diferente. R é a distância entre eles e F 1 (F 2 ) é a força sentida pelos corpos. A força gravitacional, nesse caso, é proporcional a massa, a quantidade de matéria, de cada um dos corpos e ocorre na proporção inversa do quadrado da distância que esses corpos possuem entre si. Newton, portanto, teria enunciado sua ideia da gravitação universal como uma lei da física, uma convenção que deveria ser aceita pela comunidade científica de seu tempo. Podemos observar, que o pesquisador que lide com a questão da gravidade, independente do fim a que se proponha, já não recorre à simples queda de um corpo para desenvolver cálculos, mas recorre diretamente à fórmula de Newton. A ferramenta do conhecimento deixa de ser a simples observação de um evento para ser uma fórmula matemática. Nesse caso específico, a lei da gravitação, de Newton, substitui o evento enquanto que o seu paradigma, sua forma de aplicação, substitui a observação bruta como única etapa da observação e da formulação da teoria. A fórmula de Newton substitui o evento e os conceitos, ela é uma teoria, uma convenção científica, que se coloca no lugar dos eventos naturais, dos conceitos e das observações que fazemos do evento. Assim, a construção da teoria da gravitação não se deu unicamente através da interpretação dos estímulos provocados pela observação de uma maçã que caíra. A queda da maçã apenas despertara sua consciência para a elaboração de um paradigma científico dentro do qual caberia a gravitação universal. A proposição de Newton foi de nomear certos eventos, e conceituá-los, por exemplo, com os conceitos de força, gravidade/gravitação, massa etc, e partir daí, explicá-los dentro de modos possíveis. 10. Diálogo entre Peirce e Saussure: Conforme dissemos anteriormente, o trabalho de Peirce nos leva a entender que o conhecimento de um evento, antes que este seja teorizado, resulta da interpretação deste pelos sentidos. A construção teórica não é resultado simples e direto da observação do mundo, mas da observação de dados que são gerados pela observação de um evento dentro de um

paradigma. O teórico não trabalha apenas com os sentidos, mas com dados, cálculos e hipóteses. A teoria de Peirce é altamente complexa e não se limita apenas a explicar o fenômeno da significação, parte de seus estudos consiste em uma classificação exaustiva dos signos segundo três categorias básicas: a Primeiridade, a Secundidade e Terceiridade. Os signos que pertencem a Primeiridade são aqueles que consistem a sensação imediata das coisas, os signos de Secundidade são dados pelas reações aos signos da categoria anterior. Já os signos da Terceiridade, se caracterizam por serem dados por uma convenção Os signos dessa última categoria é que formam o pensamento organizado e são estabelecidos a maneira de uma lei, de uma convenção, de um dado partilhado por uma comunidade. O autor nos dá o exemplo dos símbolos: a justiça é representada como uma mulher com uma venda nos olhos e uma balança nas mãos. Não há nenhuma semelhança entre o conceito de justiça e a representação desta a não ser dentro de uma convenção préestabelecida. Do mesmo modo, não há uma relação natural entre uma teoria e o evento que ela descreve, a não ser dentro das convenções dadas por um paradigma. Para tanto podemos recorrer ao exemplo da fórmula de Newton. A fórmula a seguir possui semelhança com aquilo que ela representa apenas por força de uma convenção e não por uma razão natural. O que associa a força da gravidade em si mesma ao conceito de gravidade não é a natureza, mas a linguagem. Especificamente a linguagem usada na física dentro de um paradigma estabelecido por Isaac Newton. As teorias, desse modo, são convenções partilhadas e ensinadas em livros e disciplinas. Entretanto, não são o próprio evento que representam. Enquanto, Peirce elaborava sua teoria da significação na América do Norte, outro autor, o linguísta suíço Ferdinand Saussure (1857-1913) trabalhava em uma teoria que, em certo ponto, dialoga com a de Peirce. Saussure estabeleceu uma teoria da significação baseada hegemonicamente na linguagem verbal e estabeleceu um modelo de signo baseado na relação entre um conceito e uma imagem acústica. O conceito é a palavra, falada ou escrita, enquanto por imagem acústica, o autor define a impressão causada na mente por alguma palavra. As palavras são uma relação entre um significante e um significado, sendo que o significante é a

palavra em si, falada ou escrita, e o significado a impressão que ela causa ou a imagem que ela evoca: o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse som (SAUSSURE, 1976, p. 80). Entretanto, o linguísta suíço estabelece que a relação entre a palavra e a ideia que ela designa é arbitrária: não há nenhuma relação natural entre o conceito de gravidade e o evento que ele, o conceito, designa: o laço que une o significante ao significado é arbitrário. (...) Assim, a ideia de mar não está por relação alguma à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante (SAUSSURE, 1976, p.81). O modelo de signo de Saussure é a palavra, junção entre significante e significado, e a palavra, na teoria de Peirce é apenas um dos tipos de signos convencionados que se estabelecem no universo das significações possíveis, assim como as teorias. 11. Conclusões e perspectivas: Próximos do término deste artigo, poderíamos supor que uma conclusão possível seria a de que as ciências da linguagem contribuiriam com a base epistemológica de todas as teorias. Entretanto, essa afirmação é bastante reducionista e merece maior esclarecimento. É através da linguagem que representamos o mundo interior ou exterior, e de certo modo, é por meio dela que o explicamos. Entretanto, não se trata de buscar uma hierarquização entre linguagem, conhecimento e teoria, mas de entender que, assim como as palavras, as teorias têm origem na observação dos eventos e na instauração de paradigmas. Uma teoria não tem uma origem natural nem nasce de si mesma, do mesmo modo que poderá ter aceitação breve na comunidade científica, ou delongada até que o evento seja definitivamente explicado e se torne um fato do cotidiano, como o fato de a água ferver a cem graus Celsius. Nessa perspectiva, compreender ou elaborar um conhecimento teórico é antes construir ou entender uma convenção do que descobrir um segredo da natureza. É construir uma explicação possível dentre outras menos plausíveis. E entender que tal explicação também é passível de ser refutada. A teoria já nasce fadada a refutação, seu estigma de nascença é justamente sua transitoriedade. O entendimento dessa condição, já esclarecida por Popper e Khun, ajuda a entender a ciência de modo menos arbitrário e, ao mesmo tempo, contribui para uma espécie de humildade científica, já que a busca da certeza corre paralela a possibilidade do erro.

Esperamos contribuir para se refletir sobre o caráter epistemológico de uma teoria, a qual também está sujeita a valores de certo e errado, a qual é construída não livre, mas arbitrariamente por uma comunidade científica, teoria a qual cabe a professores e profissionais tecnólogos tanto aplicar quanto ensinar. REFERÊNCIAS: GREIMAS, A. J.; COURTÈS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. KHUN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. 9ª Ed.São Paulo: Perspectiva, 2007. PEIRCE, C. S. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972 POPPER, K. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1976.