A RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE WINNICOTT E BENVENISTE

Documentos relacionados
OS ESTUDOS DA ENUNCIAÇÃO E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUAS

ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS: ANÁLISE DA INTERSUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA DO PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA

Quando o inominável se manifesta no corpo: a psicossomática psicanalítica no contexto das relações objetais

Bases winnicottianas para uma clínica da inventividade.

A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE DA CRIANÇA: UMA REFLEXÃO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA ESCOLA 1

ENUNCIAÇÃO E ESTUDO DO TEXTO: UM ESBOÇO DE PRINCÍPIOS E DE CATEGORIAS DE ANÁLISE

a condição para o surgimento de um verdadeiro símbolo não é de natureza intelectual, mas afetiva. Ferenczi (1913) - Ontogenese dos Símbolos

INTERVENÇÃO PRECOCE NA RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: UM TRABALHO PARA FAVORECER O ACONTECER DO VÍNCULO

O mecanismo enunciativo de conjunção no ato de aquisição da linguagem

Rebak 1 : A alteridade pelo viés dialógico e a prática de escrita do aluno

Tema: Conceitos Fundamentais

O DISCURSO CITADO: UM ESTUDO SOBRE A OBRA DE BAKHTIN

NOÇÕES DE PRAGMÁTICA. Introdução aos Estudos de Língua Portuguesa II Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves Segundo

O DESENVOLVIMENTO HUMANO SOB A PERSPECTIVA DE BION E WINNICOTT

A contribuição winnicottiana à teoria do complexo de Édipo e suas implicações para a

ROTEIRO 4 PRODUÇÃO DE TEXTOS ESCRITOS CARGA HORÁRIA DE FORMAÇÃO EM SERVIÇO ABRIL /2018

A LINGUAGEM DISÁRTRICA DO SUJEITO RA E AS SUAS PARTICULARIDADES 119

A linguagem serve para viver : o fundamento da prática pedagógica

UM ESTUDO ENUNCIATIVO DO TEXTO: O SENTIDO ÀS FORMAS DA LÍNGUA NA E PELA ENUNCIAÇÃO

10/06/2010. Prof. Sidney Facundes. Adriana Oliveira Betânia Sousa Cyntia de Sousa Godinho Giselda da Rocha Fagundes Mariane da Cruz da Silva

Aquisição da linguagem e enunciação: a apropriação da língua pela criança

A OPERAÇÃO DE REFERÊNCIA NO ATO DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

DANÇA E PSICOMOTRICIDADE

LEITURA E ESCRITA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE TEORIAS ENUNCIATIVAS

O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO ESPAÇO SOCIAL PARA A MANIFESTAÇÃO DE IDEIAS

Ementa: A disciplina estuda fundamentos psicanalíticos do desenvolvimento da personalidade

INCLUSÃO EM TRANSICIONALIDADE

AS ATIVIDADES LÚDICAS NO PROCESSO DE HOSPITALIZAÇÃO INFANTIL

DACEX CTCOM Disciplina: Análise do Discurso. Profa. Dr. Carolina Mandaji

O TRABALHO COM TEXTOS NUMA TURMA DE CINCO ANOS

A LINGUAGEM NO CENTRO DA FORMAÇÃO DO SUJEITO. Avanete Pereira Sousa 1 Darlene Silva Santos Santana 2 INTRODUÇÃO

produziu mais cedo será sempre anterior ao que se produziu mais tarde. Quanto aos conceitos temporais, Elias escreve:

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

ANÁLISE DA FALA DE DOIS INDIVÍDUOS COM DOWN 1

INTRODUÇÃO À ANÁLISE DO(S)/DE DISCURSO(S) UNEB Teorias do signo Lidiane Pinheiro

NOÇÕES DE PRAGMÁTICA. Introdução aos Estudos de Língua Portuguesa II Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves Segundo

Linguagem como Interlocução em Portos de Passagem

A IMPORTÂNCIA DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS MATEMÁTICOS. Patrícia Cugler 1 Nathalia Azevedo 2, Lucas Alencar, Margareth Mara 4

A RELAÇÃO ENTRE ATOS DE FALA E PROSÓDIA

FORMAÇÃO PARA BRINQUEDISTA: MEDIAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO INTEGRAL DA CRIANÇA 1. Palavras-chave: brinquedo, brinquedista, brincar, desenvolvimento

A ESCRITA INFANTIL: SENTIDOS E INTERPRETAÇÃO DOS REGISTROS DAS CRIANÇAS

LINGUÍSTICA APLICADA AO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

METODOLOGIA DOS DESAFIOS: PROBLEMATIZAÇÃO E SENTIDO EM AMBIENTES VIRTUAIS DE APRENDIZAGEM. Clovis Leopoldo Reichert Janete Sander Costa

O MEMORÁVEL NA RELAÇÃO ENTRE LÍNGUAS

AS DEPRESSÕES NA ATUALIDADE: UMA QUESTÃO CLÍNICA? OU DISCURSIVA?

manifestações científicas, gêneros literários (provérbio, poesia, romance) etc. AULA GÊNEROS DISCURSIVOS: NOÇÕES - CONTINUAÇÃO -

A CRIANÇA: SUJEITO DO SEU DIZER

DA IMPOTÂNCIA DA DÊIXIS PARA A COMPREENSÃO DO DISCUSO IMAGÉTICO. Por Claudio Alves BENASSI e Anderson Simão DUARTE

ANÁLISE DE DISCURSO de origem francesa. Circulação e textualização do conhecimento científico PPGECT maio 2015 Henrique César da Silva

Experiências de corpo inteiro: Contribuições de Wallon para a educação

8. Referências bibliográficas

A SINTAXE NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS ANÁLISE E DEBATE: UM DIÁLOGO COM O ENSINO

Aula6 MATERIALIDADE LINGUÍSTICA E MATERIALIDADE DISCURSIVA. Eugênio Pacelli Jerônimo Santos Flávia Ferreira da Silva

TIRAS DA MAFALDA: UM ESTUDO ENUNCIATIVO DA CATEGORIA DE PESSOA. Resumo: Este trabalho tem por objetivo demonstrar a construção da

Professora: Jéssica Nayra Sayão de Paula

CRIAÇÃO LEXICAL: O USO DE NEOLOGISMOS NO PORTUGUÊS FALADO EM DOURADOS

AS MARCAS DO SUJEITO NA LÍNGUA: ANÁLISE DA CATEGORIA DE PESSOA E NÃO-PESSOA EM TIRAS

Questões-chave da lingüística da enunciação A lingüística da enunciação constitui um campo científico de estudos?...

sábado, 11 de maio de 13 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

A TEORIA SÓCIO-CULTURAL DA APRENDIZAGEM E DO ENSINO. Leon S. Vygotsky ( )

O MEIO QUE NA MÍDIA: UMA ABORDAGEM FUNCIONAL DA LÍNGUA

LEITURA E COMPREENSÃO DE TEXTOS EM TURMAS DE ENSINO MÉDIO

O BRINCAR ENTRE A CRIANÇA, O ANALISTA E A INSTITUIÇÃO EDUCACIONAL PRIMÁRIA

COM PÊCHEUX PENSANDO A SIGNIFICAÇÃO A PARTIR DO CORTE SAUSSUREANO

PERSPECTIVAS PARA O PLANEJAMENTO DE ESCRITA Autor1: Jeyza Andrade de Medeiros. Modalidade: COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA

Jornal Oficial do Centro Acadêmico da Universidade Vale do Acaraú.

O Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da PUC-SP sugere a apresentação das teses em forma de estudos. Sendo assim, esta tese é

1 Doutoranda em Letras Linguística na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES.

Linguagem em (Dis)curso LemD, v. 9, n. 1, p , jan./abr. 2009

GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS INFÂNCIA, LINGUAGEM E EDUCAÇÃO - GEPILE

DISCURSO IMAGÉTICO. Por Claudio Alves BENASSI DAS TRANSMUTAÇÕES POÉTICAS/SEMÂNTICAS PARA O

Desde o início da construção do Sistema Único de Saúde (SUS) percebe-se a necessidade de

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ISSN: AFASIA: UM OLHAR PARA O FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM ORAL 78

1.1 Os temas e as questões de pesquisa. Introdução

PRÁTICA NA ENFERMARIA PEDIÁTRICA: UM COLORIDO NA CLÍNICA WINNICOTTIANA

A SOCIOLINGUÍSTICA E O ENSINO DE LINGUA PORTUGUESA: UMA PROPOSTA BASEADA NOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

LIBRAS: UMA PROPOSTA BILINGUE PARA A INCLUSÃO EDUCACIONAL DOS SURDOS

Escolas de Educação Básica, na Modalidade Educação Especial Parecer 07/14

VARIANTE CÊ E SUA GRAMATICALIZAÇÃO: UM ESTUDO FUNCIONAL ATRAVÉS DA LINGUÍSTICA DE CORPUS

seguiam a corrente clássica de análise tinham como norma tratar da criança sem fazer

Dançar Jogando para Jogar Dançando - A Formação do Discurso Corporal pelo Jogo

O ESTÁGIO DE PÓS-ESCRITA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL Sabrine Weber 1 (UFSM) Cristiane Fuzer 2 (UFSM)

O NASCIMENTO DO SUJEITO NA E PELA LINGUAGEM 1

Cristina Almeida Psicóloga escolar 18 e 19 de outubro

TR EC H O DA A PR E S E N TAÇ ÃO DA TÓ PI CA 1,

A produção textual como prática social e funcional

Água em Foco Introdução

Resenhado por Katiele Naiara Hirsch Universidade de Santa Cruz do Sul

TRABALHO COM OS GÊNEROS / ENSINO DA LÍNGUA PADRÃO

A relação língua, sujeito e discurso nos estudos sobre a linguagem...

1 Introdução. atrasos e/ou desordens no processo de aquisição da gramática em ausência de qualquer comprometimento de outra natureza.

Objetivos 05/09/2017. Ao nascermos... Psicologia aplicada à nutrição

Apontamentos Psicanalíticos. Textos Teórico-Clínicos e de Psicanálise Aplicada

O PAPEL DO EDUCADOR NO PROCESSO DE ENSINO DAS ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

OS PENSADORES DA EDUCAÇÃO

O livro na sociedade, a sociedade no livro: pensando sociologicamente a literatura

O PAPEL DAS CRENÇAS NA ORGANIZAÇÃO DO PENSAMENTO HUMANO

IX SEMINÁRIO DE PESQUISA E ESTUDOS LINGUÍSTICOS 21 e 22 de setembro de 2017

O Tom na fala: estratégias prosódicas

Transcrição:

A RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE WINNICOTT E BENVENISTE Sibylla Jockymann do Canto 1 Ao estudo do desenvolvimento da linguagem, é associado o desenvolvimento cognitivo, emocional e social da criança, o que nos leva a crer que ela é vista como lugar de interação e não apenas de comunicação ou representação do pensamento. O estudo das relações entre mãe-bebê traz a oportunidade de vivenciar um trabalho transdisciplinar que engloba não somente as ciências humanas e biomédicas como também a Linguística, visto que a linguagem é parte constitutiva do sujeito, uma vez que entendemos sua apropriação pela criança como ocorrida pelo uso e, sobretudo, pela relação com o outro, lugar em que se constitui e é constituída pela estrutura linguística. O campo de estudo que abrange aquisição foi construído pelas projeções quanto à cientificidade, partindo dos conhecimentos teóricos sobre sujeito, linguagem e língua, inseridos nos quadros da Psicologia do Desenvolvimento, Psicolinguística e Linguística. Assim sendo, ele está atravessado por diferentes concepções em seu escopo teórico, o que projeta a ideia de que o sujeito é aquele capaz de adquirir uma língua constituída por regularidades. A língua não é considerada como uma realidade heterogênea e o sujeito tampouco é visto em sua singularidade. A Linguística da Enunciação permite pensar a linguagem de um lugar único: sujeito que está na língua e deriva da capacidade do locutor de propor-se como tal, na instância desse ato. Tudo isso marcado no tempo da fala, que é o tempo em que se está, sendo a língua a possibilidade de subjetividade, contendo indicadores que podem ser mobilizados pelo sujeito e empregados em seu discurso. A linguagem, que é troca, é diálogo, confere ao discurso dupla função: para o locutor, apresenta a realidade; para o ouvinte, recria a realidade. A obra de Émile Benveniste é conhecida como fundadora do que se convencionou chamar teoria da enunciação, constituída por um conjunto de textos que simultaneamente teorizam e analisam o ato enunciativo. Nessa perspectiva, a Linguística tem por objeto a enunciação, entendida por colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização (PLG II, 1989, p.82). Embora um ato individual, é um processo enquanto colocação em funcionamento. Segundo Lichtemberg: A enunciação, momentaneamente, é ato individual de tomada de palavra, individualidade fugaz, pressuposta pelo ato: constituição de locutor que, para assim constituir-se, constitui alocutário; por isto, não mais individual, nem mesmo ato, processo que instaura o diálogo. (Lichtemberg, 2006, p.74) 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, linha de pesquisa em Teorias do Texto e do Discurso, bolsista CNPq. E-mail: sjockymann@yahoo.com.br 390

Percebemos que a enunciação promove a existência de dois seres linguísticos que têm em comum a instância do discurso. A língua é expressão de sentido que é atribuído pelos sujeitos, que se apropriam de todo o sistema e moldam a ideia que referem, determinando quais as unidades necessárias à constituição da frase. A língua é, portanto, intersubjetiva, materializada na frase através de um sistema de signos referenciais. No texto Da subjetividade da linguagem, Benveniste dá continuidade às discussões de A natureza dos pronomes (PLG I, 2005, p.284) e propõe a noção de sujeito. O que ele nos traz é que o homem está na língua e a subjetividade é a capacidade do locutor em se propor como sujeito. Assim, Benveniste suspende o que era então aceito como tradicional: a língua não é um a priori, já que ela se atualiza na e pela enunciação, que supõe um sujeito que a utilize. Se retomarmos sua ideia de categoria de pessoa, perceberemos que é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego (PLG I, 2005, p.285). Silva (2007) afirma que, ao trazer um modo de análise da enunciação no qual os interlocutores referem e correferem para produzir sentidos aos elementos da língua, Benveniste possibilita-nos explicar a inserção da criança como sujeito enunciativo da linguagem, uma vez que se entende a apropriação da linguagem pela criança como a ocorrida pelo uso e, sobretudo, pela relação com o outro, lugar em que se constitui como sujeito e é constituída pela estrutura linguística. Assim, a língua é entendida como mediadora entre o individual e o social. Em sua leitura da obra de Benveniste, a linguista propõe três instâncias simultâneas de subjetividade/intersubjetividade: uma relação homem/homem imersos na cultura, na qual considera a presença de um sujeito cultural; uma relação locutor/alocutário, na qual aparece um sujeito da alocução e uma relação eu-tu, expressa pelas formas de pessoa no discurso, constituindo o que chama de sujeito linguístico-enunciativo. É nessa última instância que os estudos enunciativos verificam a presença do homem na língua, visto que a subjetividade é dada pela categoria de pessoa presente no sistema da língua mediante determinadas formas, como o pronome reto eu, por exemplo. Cabe lembrar que a subjetividade é dependente da inversibilidade que há entre o par eu/tu, o que assegura a intersubjetividade, sem a qual não faz sentido falar em categoria linguística de pessoa. A linguagem só é possível se cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso e outro como um tu. Deste modo, em Benveniste, a língua é sempre mediação, seja homem/sociedade, seja homem/cultura, seja homem/homem, uma vez que enfatiza serem as relações intersubjetivas a condição para a comunicação. Neste caso, parece estarmos diante de uma instância cultural, visto a intersubjetividade estar centrada na condição humana de homem como ser falante na cultura. (Silva, 2007, p.147) É preciso lembrar que Benveniste (PLG I, 2005) também apresenta uma concepção acerca da aquisição da linguagem. Ele reflete sobre a relação homem/cultura, enfatizando que o homem não nasce na natureza, mas na cultura. Isso porque toda a criança em todas as épocas apreende necessariamente com a língua os rudimentos de uma cultura. Nenhuma língua, segundo o teórico, é separável de uma função cultural. A 391

linguagem tem sempre sido inculcada nas crianças pequenas e sempre em relação ao que se tem chamado realidades definidas como elementos de cultura. Inserido nessa concepção, defende que a linguagem se constitui como o lugar das relações intersubjetivas, já que o pensamento, segundo o autor, é configurado pela estrutura da língua, que revela, dentro de um sistema de categorias, a sua função mediadora, propiciando a cada locutor propor-se como sujeito e implicar o outro. Benveniste nos ensina que, antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Colocamos que à falta da linguagem não haveria nem a possibilidade de sociedade, nem possibilidade de humanidade, é porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar. Sua teoria nos permite pensar sobre a língua/linguagem de um lugar único, uma vez que ele vê a linguagem pelo seu valor constitutivo, sendo impossível estabelecer oposição entre ela e o homem. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando entender a existência do outro. É um homem falando com outro homem que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (Benveniste, PLG I, 2005) E se o próprio linguista acredita que não podemos reduzir o homem a si mesmo, uma vez que ele está imerso em uma relação dialógica, não podemos entender o processo de aquisição da linguagem sem entendê-lo em uma relação também, mas uma relação entre seres humanos e não entre discursos recortados a fim de análise, sem levarmos em conta as pessoas envolvidas, o ambiente e toda a linguagem não verbal que faz parte desse processo. O mais comum envolvendo estudos da linguagem da criança é vê-la de forma isolada, trabalhando somente com o seu discurso, separado do ambiente e de seu interlocutor. A mãe, quando aparece, é vista somente como um input para a criança e a intersubjetividade funciona como um acordo entre os sujeitos falantes: o par mãe-bebê está em um lugar intercambiável e simétrico entre si. Assim, a criança está apta a incorporar a língua fornecida pelo outro passando a assumir os papéis dialógicos antes assumidos pelo adulto, instaurando o diálogo e o adulto como interlocutor. Dessa forma, se pensarmos que no início o bebê ainda não é um sujeito, visto sua profunda ligação com a mãe, estudá-los de forma separada não seria sequer produtivo no que tange aos estudos de aquisição da linguagem. E mais, se pensarmos em todas as questões subjetivas envolvidas no processo, uma vez que estamos lidando com pessoas e qualquer aquisição do ponto de vista linguístico não pode ser vista sem afeto, nada mais natural que procurar entendê-la inserida não somente em termos físicos, motores, mas sustentada juntamente com seu ambiente de facilitação, ou seja, os cuidados maternos tão estudados por Donald W. Winnicott (1896-1971). O ponto de convergência de uma proposta entre o pensamento enunciativo de aquisição de linguagem e a abordagem winnicottiana seria pensar em como a linguagem surge na vida desse bebê que não existe sozinho, prestando atenção nas sutilezas que envolvem a dependência com sua mãe, já que o ambiente tem profunda importância, sendo parte constitutiva da criança. Assim, a Linguística faz limite com a Psicologia, sem que nenhuma delas transponha seu lugar, mas trabalhem juntas para entender o nascimento do sujeito. 392

Winnicott fez grandes contribuições ao pensamento psicanalítico, tendo como ponto de partida os momentos formativos do indivíduo. Ele enfatizou a absoluta importância da dependência do bebê com sua mãe e como o crescimento físico e emocional depende do ambiente de facilitação que se adapta às necessidades da criança. Dessa forma, ele entende a díade mãe-bebê vista como uma unidade relacionada, já que afirmava que, se alguém mostrasse um bebê, mostraria também alguém cuidando dele. O psicanalista inglês escreveu sobre linguagem em Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos (1963). Nesse artigo, ele afirma que a intercomunicação entre o bebê e sua mãe é sutil e deve ser observada do ponto de vista de ambos, já que a mãe é sentida pelo lactente como parte dele, ou seja, como objeto subjetivo. Assim, se no princípio a linguagem entre ambos é predominantemente não verbal, esse objeto passará a ser percebido objetivamente, enquanto a criança deixa pra trás a área da onipotência como uma experiência de vida, e a linguagem e o nascimento do sujeito separado de sua mãe pode ser visto linguisticamente, quando a criança enuncia o eu. Mas tudo isso prova que o nascimento da linguagem não é somente motor, pois passa por processos subjetivos muito profundos e refinados. Se para Benveniste a língua não é um a priori, já que ela se atualiza na e pela enunciação, Winnicott nos responde que o ambiente facilitador o é, ajustado às necessidades que surgem do ser e dos processos de maturação (Winnicott, 1963). Levando-se em conta o começo da comunicação entre duas pessoas, Winnicott (1969) afirma que assistimos concretamente a uma relação de mutualidade. À mãe cabe tornar real aquilo que o bebê está pronto para descobrir, criar. Ela está tão identificada com seu filho que sabe exatamente o que ele precisa, sem perder, contudo, sua identidade. Dessa forma, há uma comunicação silenciosa, galgada em profunda confiabilidade, que protege o bebê das intrusões externas e serve de ambiente confortável para ele. Porém, essa comunicação confiável deve ser efetiva, pois faz parte das experiências adquiridas pelo bebê. E é justamente aqui que a comunicação ocorre em termos físicos: a linguagem é a mutualidade na experiência. A mãe suficientemente boa, conceito esse de Winnicott para denominar o ambiente favorável oferecido ao bebê, reconhece a dependência de seu filho, se adapta às suas necessidades e cria um setting propício para que ele viva a experiência da onipotência e progrida em seu desenvolvimento, integrando-se e crescendo emocionalmente ao acumular vivências. Mas é preciso que se diga que o ambiente não faz com que o bebê cresça em determinado sentido, mas sim, possibilita o processo de amadurecimento, de evolução do ego e desenvolvimento do self. A linguagem, que no início é predominantemente não verbal, desenvolve-se e pode ser entendida como a materialidade física desse processo. Sabemos o papel fundamental que a mãe desempenha no processo de aquisição da linguagem. Porém, os estudos acabam enfatizando muito mais quando ela falha como ambiente, como, por exemplo, no caso de crianças que demoram a adquirir linguagem verbal, não por problemas motores, mas porque a mãe fala por essa criança, sem proporcionar que ela se aproprie de sua língua. Temos ainda o caso do maternês ou manhês, que acaba influenciando a fala da criança que prolonga erros de pronúncia mesmo já tendo adquirido os traços fonológicos necessários e estando apta, portanto, a não suprimir consoantes ou mesmo sílabas inteiras. Fica claro que tratar a criança isoladamente acaba sendo improdutivo, já que o ambiente precisa também sofrer 393

modificações necessárias para que a linguagem seja desenvolvida e o locutor possa criar um interlocutor. Evidentemente, estamos enfatizando o papel linguístico desse processo. Nessa relação, há outros fatores psíquicos envolvidos que devem ser avaliados conjuntamente. Mais uma vez fica clara a contribuição que os estudos winnicottianos podem fornecer à Linguística da Enunciação que, apesar de trabalhar com materialidade discursiva, entende que o objeto inclui o sujeito e o uso da língua é sempre único. Isso implica considerar os dados de aquisição num quadro de singularidade, no qual esteja implicada a relação criança com o outro e com a língua em cada ato enunciativo. Dessa forma, a linguagem constitui-se como o lugar das relações intersubjetivas, já que o pensamento é configurado pela estrutura da língua, que revela, dentro de um sistema de categorias, a sua função mediadora, propiciando cada locutor propor-se como sujeito e implicar o outro, o que torna impossível analisar separadamente a díade mãe-bebê. Outro fator contribuinte desse encontro seria a oportunidade de investigar os primórdios da comunicação, quando a verbalização ainda não está presente, mas não podemos negar a presença efetiva de uma linguagem entre o bebê e seu cuidador. Se Winnicott afirma que o lactente se comunica para continuar a existir, podemos entender o que Benveniste quis dizer quando ele afirma que bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Se nós colocamos que à falta da linguagem não haveria nem a possibilidade de sociedade, nem possibilidade de humanidade, é precisamente porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar. Assim, não devemos entender que a significação está somente nas verbalizações, mas em todo o aparato comunicativo que envolve a criança e sua mãe desde o nascimento. Estudar a linguagem do ponto de vista enunciativo é estudá-la de um prisma semântico: o núcleo é sempre o sentido. O encontro com a psicanálise proposta por Winnicott permite à Linguística da Enunciação perceber a criança e a mãe de uma maneira mais humana, palpável, já que a materialidade discursiva não está separada do indivíduo. Além disso, a importância da relação dialógica envolvida no processo de aquisição da linguagem, e não somente nos processos cognitivos envolvidos, valoriza o ambiente em que surge a comunicação e os cuidados maternos que tanto influenciam nesse processo. Referências BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Pontes, 2005. LICHTENBERG, S. Sintaxe da Enunciação: noção mediadora para reconhecimento de uma Lingüística da Enunciação. Tese de Doutorado. Porto Alegre: IL/UFRGS, 2006. SILVA, C.L.C. A instauração da criança na linguagem: princípios para uma Teoria Enunciativa em aquisição da linguagem. Tese de Doutorado. Porto Alegre: IL/UFRGS, 2007. WINNICOTT, D.W. (1975). O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editara Ltda. (Original publicado em 1967). WINNICOTT, D.W. (1988). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1963). 394

WINNICOTT, D.W. (1993). Preocupação materna primária. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A. (Original publicado em 1956). WINNICOTT, D.W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In: D. W. Winnicott: Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1969). 395