UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO. Fabiana Furlanetto de Oliveira Pavanelli



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Transcrição:

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Fabiana Furlanetto de Oliveira Pavanelli Piracicaba, SP 2005

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Urdidura e Trama: tecendo a significação da formação e da docência com um grupo de professoras Fabiana Furlanetto de Oliveira Pavanelli Orientadora: Profa. Dra. Roseli Aparecida Cação Fontana Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Piracicaba, SP 2005

Banca Examinadora Profa. Dra. Roseli Aparecida Cação Fontana (orientadora) Profa. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha (UNIMEP) Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza (UNESP)

Para Ana Maria, Cláudia, Cecília, Luciana e para tantas outras professoras, pelos fios das histórias e das vidas entrelaçados que me permitiram um certo olhar para a escola, para a docência e para a formação em constituição.

São tantos os fios nos tecidos da vida e da composição de uma dissertação... Agradeço: a Deus, fio primeiro de minha existência... Aos meus pais, Judemar e Lourdes, fios de segurança, estímulo e confiança. A José Luiz, meu companheiro desde 1992, um fio de amor, sem o qual esta pesquisa não existiria. À querida amiga, orientadora, professora Roseli, com quem aprendi a refletir sobre como me tornei professora, um fio que ensinou alguns segredos da pesquisa porque sabe, como poucos, ser pesquisadora e sabe, como alguns outros, compartilhar. Aos professores de minha infância e adolescência e àqueles com quem tive o privilégio de conviver na minha história de professora; fios muito distintos, cores diversas, nuances marcantes.

Aos queridos Luciana, Mateus e Judemar, meus irmãos, fios das brincadeiras da infância, preenchendo a vida do lúdico e do inexplicável. Aos amigos, Cláudia, Izilda, Liane, Nonato e Rita, fios de ânimo para continuar, fios de interlocução, fios de amparo nos momentos de solidão. À Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza, o fio da literatura conhecida e ensinada. À Profa. Dra. Anna Padilha, fio especial, de alegria. À Profa. Dra. Nazaré Cruz, o fio de tranqüilidade, de leitora que desloca. Aos professores da UNIMEP, da UNICAMP Ana Guedes, Carminha, Geraldi e à professora Nilma Lacerda, fios de inspiração. Aos meus alunos, de ontem e de hoje, fios do ensino e da aprendizagem. Aos fios do trabalho, Oldack Chaves (Dirigente de Ensino da Diretoria de Piracicaba), por entender as ausências e os limites de uma supervisora-mestranda, e à Comissão Regional do Projeto Bolsa Mestrado da Secretaria de Estado da Educação São Paulo, pelo apoio. À Onice e à Maria Leão, fios de revisão e de edição. * Esta pesquisa contou com o apoio do Projeto Bolsa Mestrado da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.

Resumo Nesta pesquisa, mobilizada pelo desejo de compreender os processos formativos que se instauram nas relações entre professoras e os significados e sentidos da docência que neles são elaborados, focalizo as interlocuções produzidas nos encontros de um grupo de estudos constituído por cinco professoras ao longo de um ano. Tomando como referência as perspectivas teóricas histórico-cultural de Vigotski e enunciativo-discursiva de Bakhtin, e os conceitos de experiência e de narrativa em Benjamin, a docência e a formação são entendidas, neste trabalho, como produções históricas que se singularizam como experiência, elaborada e compartilhada pela linguagem. Neste sentido, o narrar e o escutar são considerados como constitutivos da formação e da docência. Metodologicamente ancorada no paradigma indiciário de Ginzburg, recolho indícios dos sentidos da docência, enunciados nas interlocuções entre as professoras, relativos a três instâncias de seu trabalho: a escola lócus de produção da docência, a aula materialidade da docência e a avaliação ritual central da organização do trabalho docente na sociedade moderna. Inseridas, enquanto condições de produção, em um grupo, aqui entendido como um acontecimento, mediadas pela memória discursiva e pelas vivências da escola, da aula e da avaliação, de que são portadoras, e também pelas utopias que as movem em seu trabalho, as professoras significam e re-significam estas três instâncias do trabalho docente em seus limites e possibilidades, configurando projetos de formação, nem sempre reconhecidos na/pela escola e/ou pelas agências de formação, inicial ou continuada, a que têm sido submetidas.

Sumário Apresentação...10 I Olhares Teórico-Metodológicos...13 Acerca do conceito de formação...14 A formação como produção histórica e experiência: narrativa e responsabilidade...21 A pesquisa em seu movimento...23 A análise dos dados...26 A metáfora da moça tecelã: interlocução com a literatura...30 II Urdidura: os sujeitos...37 Ana Maria por Ana Maria...39 Pessoalidade e profissionalidade...41 Cecília por Cecília...50 Entre utopias e sobressaltos...51 Cláudia por Cláudia...58 Aprendendo a ser professora...60 Fabiana por Fabiana...72 Percurso...74 Luciana por Luciana...85 Lições de silêncio...87 Entrelaçando...95 III Trama: o grupo como acontecimento...97 Zoom: focando a escola...99 Um texto é para ser lido...99 Como o livro chegou ao grupo... 100 Zoom e as professoras... 102 Sobre a lição: da leitura da aula ao dizer a aula...120 Intertextos: lendo o texto... 121 Co-autorias: dizendo-nos com o texto... 124 Avaliação: três histórias de um mesmo rito...127 IV Ponto final?...135 Referências...138

10 Apresentação No início do trabalho heurístico, não é tanto a inteligência que procura, construindo fórmulas e definições, mas os olhos e as mãos, esforçando-se por captar a natureza real do objeto... (Mikhail Bakhtin) A idéia de um pêndulo em movimento entre a polarização teoria-prática, passando e demorando-se pela técnica, marca a discussão acerca do conceito de formação. Entre os extremos da noção moderna de formação cultural e o tecnicismo a que foi direcionada a educação sob a égide do capitalismo monopolista, modos específicos de olhar, explicar, compreender e valorar os saberes e fazeres, daquelas que vivem o exercício da docência foram produzidos e materializados, como formas de agir, pensar e sentir, em muitas e muitas professoras, ao longo de diversas gerações. Apesar de essa produção histórica ser polifônica e sua materialização ser singularizada, muitos dos estudos sobre o tema efetuam aquilo que Lahire (2004, p. XII) considera como uma formidável abstração com relação aos sujeitos neles envolvidos e que ativamente os re-significam, conferindo diversidade aos modos de viver e fazer viver a formação docente. Ou seja, os processos de formação, ainda que se materializem em atividades, ações e sentidos individuais, particulares e singulares, são descritos de forma desindividualizada, dessingularizada e desparticularizada, focalizando os professores na abstração de seu pertencimento profissional. No entanto, como destaca o mesmo Lahire, ainda que não assumamos o mito contemporâneo do indivíduo como o elemento primordial de análise, a dessingularização faznos perder de vista a atividade dos sujeitos, materializada em processos complexos de significação, em que forças e contra-forças, a que estamos submetidos desde o nosso nascimento, confrontam-se, configurando uma arena de luta nas próprias palavras que enunciamos. Frente aos traços generalizantes de uma profissionalidade docente e de seus processos de formação, tal qual divulgados pelas pesquisas neste campo, nasceu o desejo de me aproximar dos modos como a docência vai sendo significada, reconhecida e enunciada pelas professoras anônimas que produzem a escola e são produzidas por ela, no e pelo trabalho. O que enunciam e como se enunciam professoras? Que temáticas abordam sobre a docência, sobre a escola, sobre si mesmas, sobre o momento histórico em que se tornam professoras, sobre as relações entre sua vida profissional, sua vida pessoal e a história? Como compreendem e projetam sua formação profissional?

11 Estas questões amplas estão na raiz do presente estudo, em que venho procurando aproximar-me dos processos de formação que se instauram entre professoras singulares, buscando neles compreender como se desenvolvem e se mantêm e que projeto(s) de formação pode(m) ser deles derivados. Na primeira parte do texto, apresento uma breve discussão acerca do conceito de formação, em interlocução com Bakhtin e Benjamin. Na reflexão com estes autores, detenho-me em uma concepção de formação como produção histórica singularizada pela experiência, entendida esta última, em sua etimologia, como o que se passa e o que afeta os sujeitos, neste caso, as professoras, nos lugares ocupados e nos papéis desempenhados em um tempo e em um espaço amplos, o tempo e o espaço da constituição humana e do ser profissional. Destaco a seguir como, ao optar por este recorte, privilegiei, no movimento do pêndulo, uma concepção de formação assentada na constituição social da subjetividade e na centralidade da mediação semiótica neste processo. Esta concepção pode ser sintetizada nas teses abaixo, derivadas da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano formulada por Vigotski, e da perspectiva enunciativo-discursiva tal como desenvolvida por Bakhtin: Os sujeitos e sua consciência formam-se historicamente nas relações sociais mediados pela linguagem. A mediação semiótica é a condição distintiva do humano. Os sujeitos significam e atribuem sentidos ao vivido e a si mesmos pela e na linguagem. A linguagem como interação é lugar de produção e reprodução social na medida em que os sujeitos participam ativamente da definição da situação na qual se acham engajados, tanto porque se apossam dos significados que já constituem a situação, quanto produzem réplicas a estes significados, posicionando-se (ou sendo posicionados) diante deles, a partir dos lugares sociais que neles já se enfeixam e dos lugares sociais que eles ocupam na situação imediata. A linguagem é um evento dialógico e polifônico no sentido de que os significados e sentidos não provêm de um sujeito adâmico que os inaugura a cada enunciação. Significados e sentidos são produzidos e reproduzidos na interação entre sujeitos sociais, contemporâneos ou não, co-presentes ou não, do mesmo grupo social ou não, pertencendo a ambos. Os enunciados são composições de sentidos, i.e., articulam em si a presença dos diversos sujeitos em interação na corrente da comunicação verbal. A responsabilidade está implicada em todos os atos humanos pela própria existência. Mediada pelas teses anunciadas, em seguida descrevo a pesquisa empírica desenvolvida e os princípios metodológicos que a nortearam.

12 Na seqüência, com o conto A moça tecelã, de Marina Colasanti, estabeleço um diálogo, fazendo do ato de tecer a metáfora central desta dissertação. Formação, tecer e texto remetem a movimento, a possibilidades do em sendo, em que nos tornamos e continuamos professoras, fazendo-nos e desfazendo-nos na docência, começando e recomeçando... sempre. A seguir, embrenho-me na urdidura os fios das histórias dos sujeitos da pesquisa, e na trama os entrelaçamentos produzidos no grupo por esses sujeitos constituído. Um grupo de professoras que se reuniu; jogou conversa fora ; reviveu lembranças guardadas na memória; narrou eventos alheios; escreveu e leu textos; tirou fotografias; falou sobre e se emocionou com a literatura; escutou; compartilhou experiências, saberes e fazeres; sofreu os dilemas corriqueiros; lutou para ensinar, aprendeu a cada dia; formou-se com o outro pelo/no trabalho. Nestas interlocuções, compartilhando conceitos, significados e sentidos históricos e culturais da docência, nós, professoras, materializadas em nossos enunciados, tecemos o processo de formação, cujos contornos descrevo e analiso. Urdidura e trama, o entrelaçamento, o tecido, o texto, a vida...

I Olhares teórico-metodológicos

14 Acerca do conceito de formação [...] nem os objetos nem as palavras estão aí somente à disposição para nos obedecer, mas... nos escapam, nos questionam, podem ser outra coisa que nossos instrumentos dóceis. (Jeanne Marie Gagnebin) O conceito de formação, como qualquer outro conceito, remete a um amplo espectro de concepções e de pontos de vista, abrangendo significados distintos, nascidos das mais diferentes filiações teóricas e experiências, nos tempos e nos espaços em que foi sendo elaborado. E, neste sentido, ele próprio, por si só, já garantiria mais de uma tese. Em função das adjetivações que o acompanham, tais como formação de professores, formação do operariado, formação em serviço, formação do psiquismo, formação da consciência, formação social, entre outras, seus significados multiplicam-se mais ainda, recobrindo, o conceito, eventos variáveis e heterogêneos. Toda esta multiplicidade elimina a possibilidade de uma análise simplista, ou mesmo de uma tentativa de definição, resultando todo o esforço reflexivo não em uma possibilidade apaziguadora de resposta mas na manutenção da questão e das possibilidades que ela instaura. Diante de tantos senões, por que eleger, exatamente, este exercício arriscado e escorregadio para abrir esta dissertação? Porque as diferentes concepções de formação orientam a observação do pesquisador para fatos diversos entre si, exigindo-lhe uma decisão, que é por sua vez uma escolha, tanto epistemológica quanto política. Assim sendo, assumo o desafio (e os riscos) de examinar alguns sentidos do conceito de formação, com o intuito de explicitar, para mim mesma e para o leitor, os lugares teóricos a partir dos quais o enuncio e de que interlocutores me acompanho no desenho e na tessitura da pesquisa. Um dos pontos do espectro de concepções acerca da formação assenta-se no conceito de Bildung, herança da filosofia alemã que marca os discursos educativos na modernidade. O conceito moderno de Bildung surge na Alemanha, a partir dos fins do século XVIII. De acordo com Bolle (1997, p. 14), em A idéia de formação na modernidade, sua complexidade e aplicabilidade em diversos campos (pedagogia, educação e cultura) tornam-no indispensável nas reflexões sobre o homem e a humanidade, sobre a sociedade e o Estado. Em seu sentido primitivo medieval, o termo Bildung referia-se a imagem (lat. imago, alemão Bild). Bildung remetia a uma idéia de reprodução por semelhança (imitatio, NachBildung), prevalecendo um sentido plástico (BOLLE, 1997, p. 15). Além de designar a formação de minerais, vegetais e animais na natureza, Bolle destaca que os verbos bilden e sich bilden referiam-se à atividade reprodutiva (formatio, Gestaltung) por parte dos artistas. Este

15 último sentido, associado ao arquétipo do fazer artístico na tradição cristã pela figura do Criador acabou por associar o termo à criação divina, que formou o homem à sua imagem e semelhança. Por esse viés religioso, a ênfase do sentido de Bildung foi se deslocando [...] da produção de uma forma exterior para uma construção interior: mental, psíquica, espiritual (idem, p. 16). Posteriormente, pela influência de Rousseau e de sua obra Émile ou De l éducation (1762), a palavra foi se aproximando tanto do sentido de vontade de educar, conforme Bolle (1997, p. 16) como, por influência dos acentuados esforços e investimentos no sistema educacional alemão, da noção de educação formal. O resultado da tensão entre a vontade de educar e os aspectos pragmáticos da educação formal segundo a qual cada súdito-cidadão deveria receber o tipo de formação mais adequado para poder tornar-se útil e dar os melhores rendimentos possíveis para o sistema econômico e o bem-estar social (a idéia do training inglês) (idem, p.16) foi a distinção semântica de que o termo Bildung passou a se revestir, sendo considerada como algo que não pode ser obtido apenas por meio da educação, exigindo independência, liberdade, autonomia, elaborando-se como um autodesenvolver-se (idem, p. 17). Essa elaboração foi refinada por Herder (1744 1803) que, de acordo com Bolle (1997), inseriu Bildung entre os conceitos de espírito, cultura, humanidade (idem, p. 18). Em oposição à educação e ao ensino, Herder realçou o termo Bildung em seu caráter de desenvolvimento das forças psíquicas e do bom gosto, em processos de auto-formação e atuação viva, não apenas de indivíduos isolados, mas de povos inteiros e da humanidade. Com este sentido, Bildung tornou-se um conceito central para todos os que estão empenhados no desenvolvimento físico, psíquico e intelectual do ser humano, bem como diz respeito ao processo de formação da humanidade como espécie. A formação individual e a formação da humanidade caminhando juntas, em um processo de emancipação político-social, dentro dos parâmetros do idealismo, é o legado da modernidade, segundo Bolle, no que diz respeito à idéia de Bildung. Tanto assim o é, que a crença na possibilidade de aperfeiçoamento do homem e da humanidade pela educação e a idéia de emancipação pela educação e não pelo conflito são dois fortes componentes ideológicos dessa concepção, presentes, ainda hoje, nos discursos acerca da função social da escola e do caráter constitutivo da educação, no desenvolvimento do especificamente humano no homem. Os reflexos desta concepção na formação de professores dão-se a ver em sua caracterização como agentes civilizadores. Criticado, pela dialética marxista, em seu idealismo e em seu caráter de privilégio de classe (da nobreza no século XVIII e da burguesia no século XIX, quando as pessoas bem formadas passaram a ser definidas como aquelas que detinham a posse de um conjunto volumoso de saberes que a pessoa carrega consigo (idem, p.24) e de modos de se apresentar em público, que remontam às tradições de vida da Corte a aparência aristocrática), o conceito de formação como Bildung foi re-significado em termos de

sua materialidade histórica, fincando-o em condições sociais específicas de produção e de acesso aos bens e práticas culturais. Ele também foi associado, por alguns intelectuais à idéia de formação do operariado ou das massas, como oposição e protesto contra a prepotente formação burguesa (idem, p.18). A idéia de formação re-significada pela crítica e pelas teses marxistas constitui um outro aspecto do espectro de concepções diversas de que o conceito de formação se reveste. Aproximo-me de algumas de suas formulações através de dois autores: Bakhtin e Benjamin. Bakhtin, um dos autores em que este estudo se baseia, embora não tenha discutido diretamente a noção de formação, dela se aproxima em suas considerações sobre o romance de formação (Bildungsroman) de Goethe, em sua obra Estética da Criação Verbal (2000), e sobre a constituição da subjetividade. É importante situar o pensamento bakhtiniano a partir de sua concepção de linguagem enquanto mediadora das relações homem/mundo, relações estas históricas e sociais. Para ele, a realidade da linguagem é a enunciação, processo de produção e compreensão de sentidos, envolvendo a língua e a fala, a cultura e a subjetividade, em relações sociais historicamente determinadas. A partir desta concepção, ele propõe um estudo da linguagem em funcionamento nas interações verbais que configuram elos na corrente da comunicação verbal 1, de sorte que cada enunciado não significa em si, mas em sua relação com enunciados que o precederam, e aos quais responde ativamente, e com enunciados que se seguirão a ele, em um diálogo ininterrupto e constitutivo. É por meio desta concepção de linguagem que Bakhtin analisa o romance de formação de Goethe, afirmando que neste: O homem se forma ao mesmo tempo que o mundo, reflete em si mesmo a formação histórica do mundo... São justamente os fundamentos da vida que estão mudando e compete ao homem mudar junto com eles. Não é de se surpreender que, nesse tipo de romance de formação, os problemas sejam expostos em toda a sua envergadura, pois que se trata da realidade e das possibilidades do homem, da liberdade e da necessidade, da iniciativa criadora. A imagem do homem em devir perde seu caráter privado (até certo ponto claro) e desemboca numa esfera totalmente diferente, na esfera espaçosa da existência histórica[...](bakhtin, 2000, p. 240) 16 Destaca-se assim a constituição histórica da formação, pois no romance o ser da personagem e a história sócio-cultural entrecruzam-se. Daí poder-se afirmar que ao pensar a formação de uma pessoa, pensa-se também a história e a cultura de uma época. A formação do indivíduo não se dá apenas na esfera do privado, antes apresenta uma interdependência entre o caráter privado e o histórico. Na leitura bakhtiniana, Goethe é o artista que traduz com maestria o homem em devir (BAKHTIN, 2000, p. 245), sendo capaz de fazer a palavra coincidir com o visí- 1 Linguagem, língua, fala e enunciação são conceitos amplamente trabalhados por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2002b).

vel, pois ele detestava as palavras que não manifestavam uma experiência propriamente visual (p. 245). O tempo e o espaço indissociáveis, dinâmicos, possibilitam a Bakhtin ler em Goethe uma visão de formação, considerada apropriada, nos termos do cronotopo (leitura do tempo no espaço). A simples contigüidade espacial (neben einander) dos fenômenos era profundamente alheia a Goethe, ele costumava preenchê-la, penetrála, com o tempo, descobrira nela o processo de formação, o desenvolvimento, distribuía as coisas que se encontram juntas no espaço segundo os elos temporais, segundo as épocas de geração. Para ele, o contemporâneo, tanto na natureza quanto na vida humana, se manifesta como uma diacronia essencial: ou como remanescentes ou relíquias de diversos graus de evolução e das formações do passado, ou então como germes de um futuro mais ou menos remoto...em toda parte o olho que vê procura e encontra o tempo: a evolução, a formação, a história. Por trás do que está concluído, transparece com excepcional evidência, o que está em evolução e em preparação. (BAKHTIN, 2000, p. 249) 17 A formação assim revela-se um constante movimento, marcado por tempos e espaços que se interpenetram nas relações estabelecidas com o mundo, com uma época. Bakhtin também revela a aptidão de Goethe para ver os indícios do tempo na vida humana, quer fosse o tempo da natureza, o tempo cotidiano revelado num único dia ou o tempo da jornada humana, uma vida inteira (idem, p. 249). Outro aspecto ressaltado pelo autor é o olhar histórico de Goethe sobre um tempo que é denominado necessário e total, ou seja, há uma plenitude temporal: o passado está ativo no presente e junto com este dimensiona o futuro (idem, p. 253). Perguntando que é o homem para Goethe, Bakhtin responde: O homem é um construtor! A materialidade e a necessidade da atividade histórica do homem é um fato acatado. E se acontecer ao homem empreender guerras, o modo como as travou também estará visível (ou seja, também nesse caso estará presente uma necessidade) (BAKHTIN, 2000, p. 257). Bakhtin aponta na personagem e na visão de formação goethianas as marcas da história. Não as lê apenas como a explicitação de um sujeito auto-fundante, fonte dos sentidos e que se insere num mundo dado, numa tradição; mas como indícios da interpenetração subjetividade/história, afastando-se, pela tese da intersubjetividade, da polarização social/individual. E, assim, chego à noção de constituição da subjetividade em Bakhtin. O ser humano, assume ele, constitui-se na intersubjetividade, nas relações sociais que estabelece com o outro, os outros, o mundo. A consciência de si e do mundo nascem nas relações com o outro. Relações históricas situadas e significadas em um contexto e tempo específicos. Nesta perspectiva, a história é constitutiva. Ela não é externa ao homem. Ela é condição do especificamente humano.

Se na leitura que Bakhtin faz da formação destaca-se sua materialidade histórica, na leitura feita por Benjamin destacam-se as noções de experiência e de narrativa. Para ele, na experiência e em seu poder de intercambiar saberes (BENJAMIN, 1987, p. 198) pela narrativa constitui-se (forma-se) o humano. Gagnebin, na obra História e Narração em Walter Benjamin, ao considerar a importância da narração para a constituição do sujeito, destaca: Primeiro, a noção de experiência se inscreve numa temporalidade comum a várias gerações. Ela supõe, portanto, uma tradição compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai a filho; continuidade e temporalidade das sociedades artesanais[...] Essa tradição não configura somente uma ordem religiosa ou poética, mas desemboca também, necessariamente, numa prática comum; as histórias do narrador tradicional não são simplesmente ouvidas ou lidas, porém escutadas e seguidas; elas acarretam uma verdadeira formação (Bildung), válida para todos os indivíduos de uma mesma coletividade. (GAGNEBIN, 1999, p. 57) 18 Em seu ensaio O Narrador, Benjamin centra-se na figura de Nikolai Leskov (1831-1895) e nele analisa as características fundamentais daquele que narra e porque narra, forma e forma-se. Em primeiro lugar, Benjamin destaca seu profundo enraizamento no povo, na coletividade. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes (BENJAMIN, 1987, p. 201). Segundo o autor, [...] Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento. (BENJAMIN, 1987, p. 215) A arte de narrar, como um modo histórico de intercambiar saberes, enraizado no trabalho artesanal, carrega consigo as marcas de dois grupos profissionais: o camponês e o artesão sedentários, que ficam em seu lugar de origem e de trabalho e conhecem suas histórias e tradições, e o marinheiro comerciante, que viaja e tem muito o que contar (idem, p. 215). Leskov, como narrador, tinha afinidade, segundo Benjamin, com essas marcas do dizer e de seus autores anônimos. Sua matéria era a vida humana com a qual estabelecia uma relação artesanal, mantendo afinidade com os contos de fadas e as lendas, aproximando-se do misticismo e demonstrando simpatia pelos patifes e malandros. Porque opera na comunidade entre vida e palavra, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos... Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia...) (idem, p. 221).

No entanto, Benjamin diagnostica que, na modernidade capitalista, a arte de narrar torna-se cada vez mais rara porque já não existem, nesta forma de organização social, condições para a transmissão de uma experiência plena de sentidos. Este é o foco da sua leitura do conceito de Bildung. Enfatizando a crítica à burguesia, como uma classe que sobrevive da informação e da força produtiva alienada em um trabalho fragmentário, em um mundo em que milhares de coisas acontecem ao mesmo tempo e rapidamente, cerca-se de muitas explicações, em detrimento das especificidades dos processos em que se produzem, e fere as possibilidades do narrar, da escuta, dos conselhos e sabedoria que deles advêm. Como diz, Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes (BENJAMIN, 1987, p. 203). A forma romanesca, e dentro dela o romance de formação, como produto de uma classe, representam, segundo Benjamin (1987, p.212), um desenraizamento transcendental, na medida que nela se separam o sentido da vida e a própria vida. Os personagens do romance buscam o sentido da vida na privaticidade de suas vivências individuais, em detrimento de uma memória e de uma palavra comuns, contribuindo para o depauperamento da narrativa. Benjamin, segundo Gagnebin (1987), considera que o romance coloca em cena um herói desorientado porque o sentido de sua vida deixou de ser dado implícita e imediatamente pelo contexto social. Toda a ação se constitui como uma busca de seu sucesso ou seu fracasso, e o leitor do romance persegue o mesmo objetivo. Ele busca na leitura um sentido explícito e reconhecido que já não encontra na sociedade moderna. Ele espera com impaciência pela morte do herói... para poder provar para si que este último não viveu em vão e, portanto, reflexivamente, ele, leitor, tampouco. Assim, a questão do sentido traz a necessidade de concluir, de pôr um fim na história. Enquanto a narrativa antiga se caracterizava por sua abertura... (GAGNEBIN, 1987, p.14,15) 19 À medida que o romance vai se impondo como gênero literário da modernidade, a narrativa antiga, como forma de expressão pré-capitalista, ligada ao trabalho artesanal e ao comércio, torna-se cada vez mais rara, pois as formas de trabalho capitalistas esvaziam as principais condições para sua realização: uma comunidade de vida e de discurso que torna possível que a experiência transmitida pelo relato seja comum ao narrador e ao ouvinte. De acordo com Gagnebin (1987), a distância entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações e a rapidez com que as condições de vida e de trabalho se transformam na sociedade capitalista, não só dificultam sua apropriação e elaboração pelos próprios homens, como esgarçam a possibilidade de que os relatos compartilhados entre o narrador e o ouvinte sejam-lhes comuns. Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil, diz o autor (GAGNEBIN, 1987, p.10).

20 Além disso, a comunidade entre vida e palavra em que se apoiavam os homens na organização pré-capitalista do trabalho fragmentou-se no trabalho em cadeia, rompendo não só a relação profunda que existia entre a atividade narradora e as maneiras de dar forma à matéria do trabalho, como também esvaziou de proveito os saberes práticos envolvidos na narrativa. Sapiência prática, que muitas vezes tomava a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas com que, hoje, não sabemos o que fazer, de tão isolados que estamos, cada um em seu mundo particular e privado (idem, p.11). Diante deste quadro, cabe perguntar pelas condições de formação na modernidade, na ausência da possibilidade da narrativa como partilhamento de experiência. Ainda segundo Gagnebin, em uma elaboração não explicitada por Benjamin, mas sugerida em seus escritos sobre Proust e Kafka, veria a possibilidadede de uma reconstrução da Erfahrung (experiência) acompanhada de uma nova forma de narratividade (idem, p. 9), em que a experiência particular e privada transforma-se dialeticamente em uma busca universal e integral na lembrança, ou seja a presença do passado no presente e o presente que já está lá, prefigurado no passado (p. 15,16), em Proust. Ou em Kafka, uma narrativa que representa uma experiência única: a da perda da experiência, da desagregação da tradição e do desaparecimento do sentido primordial (p. 18). Tanto em um caso quanto no outro, de acordo com Gagnebin, vemo-nos diante de obras abertas, ou seja, obras em que a profusão dos sentidos vem... de seu não-acabamento essencial (idem, p.12), seja pelo movimento infinito da memória, em que uma história desencadeia outra e outra, seja pela atividade da leitura e da interpretação, em que contar não implica dar explicações definitivas. Geraldi (2003a, p.13), valorizando a narrativa como... talvez uma das remanescentes formas de compartilhar saberes de experiências vividas, já que sua escuta é uma experiência..., assinala, em seu diálogo com Benjamin, a idéia de que a experiência não é impossível, mesmo na sociedade atual e que é a intersubjetividade tese bakhtiniana aqui já apresentada e discutida que sustenta a possibilidade de intercambiar saberes e de ler em Benjamin esta formação singular mediada e constituída pela história e pela memória de um passado que é um pré-dado de construção de um futuro possível (GERALDI, 2003a, p. 13). Ou seja, a formação mediada pela experiência, uma experiência que não se cria do nada, mas da qual nos apropriamos nas experiências de nossos outros e que seguimos compartilhando, em um processo em que a formação como um fazer-se plural e criativo de um sujeito, inscreve-se numa dada cultura, num espaço e numa temporalidade. Com Bakhtin e Benjamin, proponho-me, a seguir, explicitar um modo de compreender a formação em que história e experiência se articulam.

A formação como produção histórica e experiência: narrativa e responsabilidade 21 A interlocução com Bakhtin e Benjamin permite que eu me detenha em uma concepção de formação como produção histórica singularizada na/pela experiência. Nesta perspectiva, a experiência é o vivido, não como privaticidade isolada, mas como obra aberta, tal qual sugerido por Gagnebin (1987, p.12), como sentidos produzidos por sujeitos e entre sujeitos que, mesmo inseridos em uma vida privada de sentido social pela fragmentação do trabalho e pela expropriação da sapiência prática, narram como vão sendo afetados e como afetam o outro, nestas condições de existência, em um processo inconcluso, pelos caminhos convergentes da memória e da semelhança: Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para o que veio antes e depois (Gagnebin,1987, p.15). Já pensar a experiência com Bakhtin nos remete ao conceito de ato como unidade entre o mundo da vida realmente vivida e mundo da cultura, a vida interpretada (1993, p. 20). Cada pensamento meu, junto com seu conteúdo, é um ato ou ação que realiza meu próprio ato ou ação individualmente responsável [postupok]. É um de todos aqueles atos que fazem da minha vida única inteira um realizar ininterrupto de atos [postuplenie]. Porque minha vida inteira como um todo pode ser considerada um complexo ato ou ação singular... (BAKHTIN, 1993, p. 21). A formação mediada pela experiência vivido que afeta e é afetado não se limita àquele que a vivencia, mas estende-se aos outros, àqueles com quem se compartilha, pois a narrativa, o fato de contar o que se viveu é um ato, bem como sua escuta e sua compreensão ativa responsiva. Neste sentido, intercambiar experiências as próprias, as alheias, as alheias-próprias e as próprias-alheias, já que são nossas porque também o foram do outro pela narrativa é mantê-las vivas, é possibilidade de se conhecer, desconhecer ou reconhecer-se nelas. E ainda, na complexidade do ato ético que implica a responsabilidade, é responder pela vida, porque não há como fugir às respostas, pois não se tem álibi para a existência. Como falar da pluralidade e da criatividade, alguns outros aspectos que vão se agregando à idéia de formação aqui defendida? Com Bakhtin aprendi que os sentidos renovam-se. O sujeito não é anulado, con-formado, pela cultura e pela história na qual está inserido. Antes, ele só se singulariza porque é formado nesta cultura e nesta história, no encontro e no confronto com as múltiplas vozes, sentidos e papéis sociais aos quais vai se dispondo e sendo disposto.

Na riqueza, diversidade e complexidade das relações sociais vividas, mediadas pelo trabalho, pela memória, leitura e arte, os sujeitos singularizam-se, criam percursos no horizonte social 2 possível. Neste sentido, a formação é plural e inconclusa. 22... os sujeitos não são cristalizações imutáveis, os processos interlocutivos estão sempre a modificá-los ao modificar o conjunto de informações que cada um dispõe a propósito dos objetos e dos fatos do mundo; ao modificar as crenças pela incorporação de novas categorias e, até mesmo, ao modificar a linguagem... e as relações dos homens neste mundo. (GERALDI, 2003c, p. 28) Com esta compreensão dos sujeitos, como constituição que vai se produzindo na relação social, a relação com a palavra do outro (BAKHTIN, 2002b) é um tema central na formação, pois é na relação com as palavras alheias que o sujeito se forma (tudo que chega a mim, até mesmo o meu nome, me vem pela palavra do outro, assinala Bakhtin) e se transforma, definindo as bases de sua atitude em relação ao mundo, ao outro e a si mesmo. É no diálogo entre vozes alheias, alheias-próprias, próprias-alheias que se dão a ver os tempos e os espaços interdependentes em que a formação vai sendo materializada nos sujeitos em relação. A apropriação das noções de temporalidade tanto de Benjamin quanto de Bakhtin, assinalam que o passado determina o presente de um modo criador, e juntamente com o presente dá dimensão de futuro que ele predetermina (BAKHTIN, 2000, p. 253). Daí o caráter cronotópico, que inclui tanto o momento espacial quanto o temporal (BAKHTIN, 2003, p. 369), de um devir plural, criativo, inconcluso, mediado pela experiência vivida, compartilhada e elaborada pela palavra na narrativa. Estas características aproximam-me da perspectiva teórica histórico-cultural tal como pensada por Vigotski, que no Manuscrito de 1929 (VIGOTSKI, 2000), respondendo à questão o que é o homem?, explicita: é a personalidade social = o conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo[...] (idem, p. 33). A personalidade social torna-se para si aquilo que ela é em si, através daquilo que antes manifesta como seu em si para os outros (idem, p. 24). As relações sociais são relações de linguagem. É pela palavra e na palavra, é pelos gestos e expressões faciais e corporais que somos significados pelo outro, que significamos o outro e nos significamos. Como adverte Bakhtin: Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de terreno que não pode ser chamado de natural no sentido usual da palavra: não basta colocar dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência 2 O horizonte social definido e estabelecido... determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito (BAKHTIN, 2002b, p. 112).

individual nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicitada a partir do meio ideológico e social. (BAKHTIN, 2002b, p. 35) 23 Marcados pela alteridade e pelas condições de produção do discurso 3, somos compreendidos, compreendemos e nos compreendemos numa dada cultura. As marcas da cultura, das convenções, do que socialmente foi acordado, dos consensos ou conflitos, que vão persistindo ou não nos processos formativos instaurados nas relações sociais entre sujeitos, são indiciadas e mediadas pela linguagem. É na linguagem e pela linguagem que as atividades humanas e a constituição dos sujeitos se dá a ver. O signo, como aquilo que se produziu e estabilizou nas relações interpessoais, age, repercute, reverbera nos sujeitos. Tem como característica a impregnação e a reversibilidade, isto é, afeta os sujeitos nas (e na história das) relações. E aqui se destaca a palavra como signo por excelência, como modo mais puro e sensível da relação social e, ao mesmo tempo, material semiótico da vida interior. Constituindo uma especificidade do humano viabiliza modos de interação e de operação mental, possibilita ao homem não apenas indicar, mas nomear, destacar e referir pela linguagem; e pela linguagem orientar, planejar, (inter)regular as ações; conhecer o mundo, conhecer(se), tornar-se sujeito; objetivar e construir a realidade. A emergência do verbum constitui um acontecimento de caráter irreversível. (SMOLKA, 2003, p. 12) Com estas referências, decidi aproximar-me de um grupo de professores para compreender, no em sendo das relações compartilhadas entre eles, como a docência era significada nestas relações e como os processos formativos, nelas instaurados, desenvolviam-se, mantinham-se e singularizavam-se em suas elaborações. Recortada a questão que norteou a pesquisa, voltei-me para uma outra pergunta: como realizar o estudo desejado? A pesquisa em seu movimento A referência teórica assumida demarcava alguns princípios norteadores. A formação focalizada como processo de constituição implicava aproximar-me dos sujeitos. Como enuncia Fontana (2000b, p. 63), a idéia de estudar o sujeito implica estudar as relações entre sujeitos, na dinâmica interlocutiva tecida entre eles. Neste sentido, era necessário definir quais relações privilegiar e como nelas inserir-me, de modo a poder documentá-las. De início, assumindo um princípio elaborado por Vigotski, de que a pesquisa dos processos de constituição do humano deve ser conduzida em suas condições reais de produção, defini como lócus do trabalho de campo desta investigação as reuniões de pla- 3 Entendido aqui como linguagem em funcionamento.

24 nejamento, HTPCs 4 que aconteciam na própria escola em que eu era professora. Enfim, imaginei lançar mão de qualquer um dos momentos de reunião já instituídos, nos quais eu pudesse focalizar as interlocuções produzidas entre professores e delas participar. Acompanharia um grupo de professores focalizado em relações que se produziam nas condições específicas da escola em que atuavam. Quando pensei nesta forma de definir o grupo, acreditei, ingenuamente, que tudo seria muito simples, tendo em vista que compartilhava do espaço como professora da escola. Entretanto, não considerei o quê de fato acabavam sendo aquelas reuniões. Conduzidas pela direção da escola ou pela coordenação pedagógica, as reuniões eram palco, na maior parte do tempo, de avisos, cobranças e de combinados relativos a tarefas, normas, fixação de prazos, etc., que diziam respeito ao funcionamento imediato e burocrático da escola. A docência, em sua complexidade, raramente era tematizada naquele espaço, que era marcado pelo silêncio ou pelas reclamações dos professores frente aos avisos, cobranças e combinados. Como a mim não interessava constatar, mais uma vez, uma faceta da escola, bem conhecida, e muitas vezes criticada pelos professores; e como do lugar de professora por mim ocupado a margem de atuação, no sentido de modificar as condições de produção daquelas reuniões, era quase nula, abandonei esta opção inicial, substituindo-a por outra em que se reunissem condições de produção diversas daquelas. Considerei, então, a possibilidade de constituição de um grupo de estudos na escola onde eu era professora, no qual se reunissem professores que por ele se interessassem. Mas esta proposta esvaiu-se por entre as tentativas de acertar um momento comum para sua realização. Decidi-me, então, a manter a proposta do grupo de estudos, reunindo professores, daquela escola ou de outras, que interessados em estudar, se dispusessem a se reunir semanalmente, em um espaço escolar ou não. Neste caso, o que nos articularia, mais do que a pertença a uma mesma escola, seria nossa condição de professores, nossos modos de compreender a profissão e de exercê-la, nossa trajetória dentro dela e a compreensão que dela elaborávamos. Com a profissão, viria a escola. Ou seja, a escola, enquanto lócus da docência, estaria em pauta, quer nos reuníssemos dentro dela ou não, quer ocupássemos, ou não, os espaços nela instituídos (mas raramente efetivados) para a interlocução entre professores. Assim sendo, mesmo assumindo todas as críticas que poderiam vir a ocorrer, e ocorreram ( a escola é o lócus privilegiado da formação, então, um grupinho de professores conversando na casa de alguém é formação?, olha o voluntarismo, o espontaneísmo, sua pesquisa pode ser lida como uma evidência de que são desnecessários os investimentos na formação do professor ), decidi constituir o grupo fora do ambiente escolar, reunindo professores que em algum momento haviam me indiciado desejar um espaço de interlocução, de leitura, de estudo, de discussão sobre o trabalho docente por eles produzido. Um grupo 4 Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo Encontros semanais de 2 (duas) ou 3 (três) horas que acontecem nas escolas da Rede Estadual de Ensino São Paulo.

25 que, mesmo acontecendo fora da escola, seria por ela marcado, já que pensamos a docência sempre ligada às situações ali vividas. Para compor o grupo, convidei: professoras de Língua Portuguesa da escola em que trabalhava; outros professores que trabalhavam em uma escola particular, onde, por quatro meses, eu substituíra uma professora de português no ano de 2002 e uma colega com quem cursara Pedagogia, mas que havia deixado a docência. Uma das professoras convidadas convidou uma outra professora. Recusas e impossibilidades definiram a composição do grupo: cinco mulheres professoras Ana Maria, Cecília, Cláudia, Luciana e eu movidas pelo desafio do trabalho e pelo desejo de um espaço de interlocução sobre o trabalho. Quanto a mim, o desafio da pesquisa também me mobilizava. Ele estava na raiz da formação do grupo e definiu minha participação dentro dele, tanto como professora, quanto como pesquisadora. Esta opção implicou uma configuração específica de pesquisa, seja em relação ao grupo, seja em relação a mim mesma. Com relação ao grupo, compartilhei, desde o nosso primeiro encontro, a proposta de pesquisa que havia elaborado, entrelaçando-a, como uma de minhas expectativas em relação ao grupo, às expectativas que mobilizavam minhas interlocutoras a dele participarem. O andamento da pesquisa e a especificidade das atividades a ela pertinentes também foram compartilhados com o grupo, de modo sistemático, seja ao longo de nossos encontros, seja em momentos posteriores a eles, quando nos reuníamos para conversar, especificamente sobre a pesquisa em construção. Os registros feitos, as dificuldades encontradas, as análises esboçadas, decisões relativas a alguns dos encaminhamentos da pesquisa, o texto em produção, em suas muitas versões, não só foram relatados ao grupo, mas se tornaram temas de nossas interlocuções. Com relação a mim mesma, assentada em um comprometimento assumido e explícito, vivi a relação tensa, em que pesquisadora e pesquisada emergiam sem fronteiras bem definidas. Quanto ao espaço, por questões relativas à necessidade de fácil localização, após buscarmos, em vão, um lugar neutro, acabamos por nos reunir em minha casa. Quanto ao modo de funcionamento, o grupo de estudos, que foi sendo, gradativamente, entendido e incorporado por todas nós, como grupo de estudos e pesquisa, foi conduzido por todas nós. Quanto maior a aproximação, maior o vínculo e, quanto mais intensificávamos nossa relação, tanto mais dividíamos a responsabilidade pelos encontros, instaurando e vivenciando a relação construída entre nós. Essa dinâmica, cabe dizer, marcou também alguns momentos de decisão quanto aos encaminhamentos da pesquisa, quando discutimos juntas modos de apresentação dos sujeitos e a seleção dos dados que comporiam a dissertação. Foram quinze encontros no ano de 2003. A princípio seriam semanais, mas acabaram sendo quinzenais e houve alguns intervalos maiores entre os encontros, em função das

26 condições concretas de existência dos sujeitos: férias escolares, encerramento de semestre e ano letivo, dificuldades familiares e outras. De maneira geral, todas as professoras estiveram presentes. As ausências pontuais foram sempre justificadas pelas situações mais diversas do cotidiano. Cada encontro teve duração mínima de uma ou duas horas, iniciando sempre às dezenove horas e chegando, no máximo, até vinte e uma horas e trinta minutos. O curso da interlocução regia a duração dos encontros, portanto sua extensão foi bastante variada, mas estipulamos e respeitamos, ao longo do ano, o horário de término, já que algumas de nós trabalhavam no período da manhã no dia seguinte. Embora desde o início eu tivesse comentado minha intenção de gravar em áudio as interlocuções, só a partir do quinto encontro, a familiaridade entre os sujeitos e a proximidade permitiu que o gravador fosse ligado sem recusas explícitas. Dos primeiros quatro encontros, fiz registros pontuais de aspectos que, naquele momento, pareceram-me relevantes e significativos. Os encontros gravados em áudio foram transcritos e as conversas e as narrativas instauradas entre nós, além de nos constituírem, mobilizando os significados e sentidos da docência existentes em nós, constituíram o conjunto de dados da pesquisa. A análise dos dados Com as transcrições e apontamentos dos quatro primeiros encontros em mãos, procurei, inicialmente, indícios dos sujeitos que materializaram esta pesquisa, com seus dizeres, gestos e práticas. Busquei seus indícios em sua própria escrita, nos registros fotográficos feitos por eles, nas enunciações e nas leituras compartilhadas. Quanto mais deles me aproximava, mais me via às voltas com a multiplicidade na unidade do próprio sujeito (Fontana, 2000, p. 63). Multiplicidade nascida da alteridade constitutiva. Desta perspectiva, o espaço da subjetividade é tenso, porque é mais do que aceitar ou não o que o outro faz de nós, ou o que nós fazemos daquilo que o outro fez de nós, uma vez que se assume que o outro nos constitui e nós também o constituímos. As relações com os outros, nossos modos de agir com/sobre os outros, tornam-se formas de relação e de ação sobre nós mesmos. (FONTANA, 2000b, p. 63) Nesta tensão, construir uma relação de confiança não foi tarefa fácil. Conforme destaca Silva (2000, p. 32), em O antropólogo e sua magia, comentando sobre o trabalho de campo e sua complexa condução, a construção dos dados de pesquisa, geralmente leva muito tempo e exige paciência: é preciso ter acesso ao grupo, familiarizar-se com ele, enfrentar conflitos, aprender regras a duras penas, até que se estabeleça um clima de confiança mútua e colaboração.

Confiança que não esgota, nem resolve a questão da alteridade, implicada na pesquisa em Ciências Humanas, como assinala Amorim (2004, p.28 e 29): 27 [...] em torno da questão da alteridade se tece grande parte do trabalho do pesquisador. Análise e manejo das relações com o outro constituem, no trabalho de campo e no trabalho de escrita, um dos eixos em torno dos quais se produz o saber. Diferença no interior de uma identidade, pluralidade na unidade, o outro é ao mesmo tempo aquele que quero encontrar e aquele cuja impossibilidade de encontro integra o próprio princípio da pesquisa. Sem o reconhecimento da alteridade não há objeto de pesquisa e isto faz com que toda atividade de compreensão e de diálogo se construa sempre na referência aos limites dessa tentativa. É exatamente ali onde a impossibilidade de diálogo é reconhecida, ali onde se admite que haverá sempre uma perda de sentido na comunicação que se constrói um objeto e que um conhecimento sobre o humano pode se dar. No âmago do desafio da alteridade, construí os dados da pesquisa a partir do registro da dinâmica interlocutiva produzida nos encontros. São dados de linguagem, uma prática social conforme a concepção bakhtiniana, produzidos, portanto, nas condições de um grupo de estudos ; configurando-se no fazer, no interior de um texto, marcado por certos olhares teóricos. A próxima questão que se apresentava era de como ouvir, como olhar para aqueles dados reunidos ao longo dos quinze encontros. Perscrutando os indícios dos sujeitos, embrenhei-me no movimento do grupo.quantas histórias, quantos dizeres, quantos caminhos a se cruzarem! Por onde ir? Na tentativa de dar visibilidade, a mim mesma, da diversidade de dados reunidos, organizei um quadro descritivo em que listei, encontro a encontro: a dinâmica do encontro (as atividades por nós realizadas, quem as propôs, quem as conduziu e como), o material que suscitou nossas interlocuções ou que circulou entre nós (livros, textos, filmes, músicas, fotografias, programas de televisão) e os assuntos abordados. Neste quadro, visualizei as temáticas que marcaram nossas interlocuções: Expectativas em relação ao grupo e dificuldades para mantê-lo. A condição de participantes: o olhar dos sujeitos para a pesquisa em andamento, o compromisso deles para com ela. A relação universidade-escola: o olhar das professoras para a academia e o olhar da academia para escola. A docência. A aula. O cotidiano escolar: relação professor/aluno, relações de poder (tomada de decisões, autonomia, hierarquia), relações entre pares, organização. A escola ideal e real.