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A música contando a vida: Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção Marcela Boni Evangelista
Marcela Boni Evangelista A música contando a vida: Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção Marcela Boni Evangelista 1 MARGOLICK, David. Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac & Naify, 2012. 144 p. 1 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP). Membro da Comissão Editorial Executiva da : Revista de História Oral. E-mail: marcela.boni@gmail. com. Ano 7 N.12 Jan-Dez/2013 263
A música contando a vida: Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção Marcela Boni Evangelista Escrever uma biografia é um desafio que envolve a entrega do biógrafo a um universo outro. Universo esse permeado de subjetividades e versões. Universo que passa gradativamente a ser também parte de sua vida. Escrever uma biografia é mergulhar em uma história de vida e, muitas vezes, considerar as muitas vidas que se enlaçam na trajetória do biografado. As formas de produzir um documento biográfico podem ser muitas e, geralmente, demandam trabalho intenso de pesquisa em fontes diversas, tais como outras biografias e autobiografias, diários, matérias publicadas em periódicos, livros sobre o contexto em que viveu o biografado e, sobretudo, entrevistas. David Margolick lançou mão de todos esses artifícios para escrever uma biografia sobre Billie Holiday, grande ícone da música negra norte-americana, mas foi além. Margolick inspirou-se em uma das muitas músicas cantadas por Billie Holiday, Strange Fruit, e, assim, construiu Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção. A autenticidade do trabalho desempenhado é claramente identificada desde o seu título. Trata-se de uma biografia de Billie Holiday, mas também de uma canção, que em seus escritos parece ganhar vida própria e nos remete a momentos marcantes da história norte-americana, da luta pelos direitos civis dos negros e de experiências vividas ou sentidas por tantos quantos ouviram Billie Holiday interpretá-la. Lançado nos Estados Unidos em 2000, o livro foi traduzido por José Rubens Siqueira e publicado no Brasil pela Cosac Naify em 2012. Tomando como fonte a canção Strange Fruit, David Margolick desenhou a trajetória da cantora, do autor de sua letra e de um momento peculiar na história do século XX. Ao trazer à tona em forma de versos o cenário de um linchamento no sul dos Estados Unidos, Strange Fruit conferiu visibilidade a uma experiência que fez parte do cotidiano dos negros que viveram naquele lugar e, mais que isso, tornou-se uma espécie de lema para a discussão sobre a situação de violência e racismo sob os quais muitas vidas se transformaram. O que torna essa história tão surpreendente, no entanto, tem a ver menos com o que ela traz à tona do que com a peculiar condição de sua produção e difusão. Curiosamente, a canção é de autoria de Abel Meeropol, um professor branco e judeu, engajado na escrita de letras de cunho político e social. Porém, a efervescência em torno dessa música tem íntima relação com sua interpretação por Billie Holiday. E é partindo dessa contradição que Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção ganha sua cor particular. A leitura nos convida a uma viagem à década de 1930, mais particularmente à atmosfera cultural e musical de Nova Iorque, onde no Café Society Strage Fruit foi cantada por Billie Holiday pela primeira vez em 1939. Mesmo tendo sido musicada anteriormente pelo seu autor e algumas outras pessoas, é na voz de Billie Holiday que a canção se torna conhecida do público e traça um divisor de águas em sua história como intérprete e, de acordo com Margolick, também em sua trajetória pessoal. Strange Fruit destoaria de tudo o que Billie fizera até então, sobretudo em termos de temática. Diferente das letras em que o amor e as desilusões são o assunto por excelência, aquela canção trouxera uma nova e enigmática feição às apresentações da cantora. O silêncio do público, o nervosismo daqueles que se posicionavam contra os direitos civis, a vergonha dos brancos perante a verdade contida nos versos, o sofrimento dos negros que podiam se sentir identificados em suas palavras passaram a fazer parte dos inúmeros artigos publicados a respeito. São tais registros da imprensa parte indispensável do trabalho de pesquisa de Margolick, que os utiliza abundantemente para constituir o cenário de recepção da canção e da postura de Billie Holiday. São as palavras de músicos, críticos, estudantes, produtores, jornalistas dos mais diversos periódicos as principais fontes do autor que nos apresenta de forma, em muitos casos controversa, o que a performance da cantora causava ao público. Também sua autobiografia é acionada para problematizar o que a canção representou para sua principal intérprete. Muitas vezes, um tom de desconfiança é lançado aos leitores quando o foco é justamente o entendimento da tão inebriante letra. Diante da dúvida acerca das convicções de Billie Holiday sobre o 264 265 Ano 7 N.12 Jan-Dez/2013 Ano 7 N.12 Jan-Dez/2013
A música contando a vida: Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção assunto e mesmo das origens de sua autoria, é indiscutível a importância que sua voz e dramatização trouxeram para as reflexões acerca da história dos negros norte-americanos. As interpretações que se sucederam também têm seu espaço na obra de Margolick, sempre enfatizando nas palavras dos outros cantores a particularidade da apresentação de Billie Holiday. A carreira da cantora, permeada por problemas com drogas, álcool e relacionamentos desastrosos, se encerra com sua morte em 1959, mas seu legado e o encantamento desencadeado por uma performance diferenciada permanecem encantando os públicos mais diversos. Não por acaso, essa biografia enlaça sua história de vida e de tantas outras vidas. Strange Fruit, enquanto mote para a publicação, aqui é também símbolo para abordar as diversas fases da vida da cantora. Estamos, sem dúvida, diante de uma biografia múltipla: a de uma das mais importantes representantes da música norte-americana e a de uma canção que descortina o contexto de sua produção e difusão, mas também aquele suscitado pelos seus versos, os quais de forma poética dramatizam a experiência dos linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos. A publicação brasileira traz, em sua estética restrita às cores branca e preta, a sensibilidade do conflito racial inerente à canção e, em páginas negras, traz em letras brancas as impressões sobre a Strange Fruit e sua intérprete mais marcante. As imagens são poucas e dizem muito: a primeira, que abre as páginas do livro, reflete Billie Holiday como tantos a descreveram ao cantar Strange Fruit ; o texto é finalizado por outra imagem, desta feita remetendo ao conteúdo da canção a cena do linchamento de um negro... Esse é o resultado de um trabalho de imersão na história de vida de Billie Holiday e daqueles que fizeram de Strange Fruit uma canção digna de nota quando o assunto é o racismo. A biografia de uma canção, assim, se assenta em fontes diversas em que as versões e as verdades cedem lugar a novos sentidos, aqueles que os leitores irão conferir a um fruto estranho e cujas significações terão sempre novos sabores e conotações. 266 Ano 7 N.12 Jan-Dez/2013