Relato de Experiência Profissional

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Transcrição:

Relato de Experiência Profissional

Amor Ódio: devastação na relação mãe e filha H Flavia Gaze Bonfim HH Associação Fluminense de Reabilitação, Niterói, RJ, Brasil Resumo Na postulação freudiana, amor e ódio marcam a relação da menina com a mãe em função do destino do falo na mulher. Lacan propõe que a mulher está nãotoda submetida à lógica fálica e também nisto a devastação encontra seu terreno. Por esperar receber da figura materna mais do que esta é capaz de oferecer - ou seja, uma identificação de mulher a reivindicação e o ressentimento podem se instalar. Assim, proponho discutir como as duas vertentes da inscrição na mulher fálica e não-toda fálica contribuem para devastação, bem como capturo um fragmento de caso visando articular teoria e clínica. Palavras-chave : feminilidade; devastação; falo; não-toda fálica. Love Hate: devastation in the relationship between mother and daughter Abstract In the Freudian postulate, love and hate are the noted features of the motherdaughter relationship due to the destination of the phallus in women. Lacan proposes that women are not-all subject to the phallic logics and that it is at this point where devastation finds its path to develop. Owing to the fact that girls expect to get from their motherly figures more than they can provide them with that is, a feminine identification demand and resentment might set up. Therefore, I propose to discuss how both aspects of the women s inscription the phallic and the not-all phallic - contribute to devastation, also as I take a case to study aiming to articulate theory and practice. Keywords: femininity; devastation; phallus; not-all phallic. H Este artigo é resultado de trabalho apresentado no IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, cujo tema era O amor e seus transtornos Curitiba, Setembro/2010. Apoio: Programa de Pós-graduação da UERJ. HH Endereço para correspondência: Consultório particular, Clínica psicanalítica. Rua Dr. Borman, 23 - sala 505. Centro. 24020320 - Niterói, RJ - Brasil. E-mail: flaviabonfimpsi@yahoo.com.br

Flavia Gaze Bonfim Desde Freud, a problemática mãe e filha já se inscreve na psicanálise. Na postulação freudiana, amor e ódio marcam a relação da menina para com a figura materna durante a estruturação inicial da sexualidade feminina. Freud (1996[1925, 1931, 1932]) destaca esta temática, precisamente, nos artigos Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, Sexualidade Feminina e Feminilidade, ao descrever as implicações de uma fase pré-edipiana na mulher. Nesta fase, a menina assume a mãe como objeto de amor e revela uma sexualidade de caráter inicialmente masculino. Vale lembrar que a mãe é investida de desejos sexuais tanto pela menina quanto pelo menino, já que é ela quem frequentemente desperta na criança suas primeiras sensações prazerosas através dos cuidados oferecidos ao bebê. Isso nos leva a presumir que, para o menino, aí estão estabelecidas as raízes de seu complexo de Édipo o amor dirigido ao genitor do sexo oposto. Entretanto, não ocorre o mesmo com a menina. Para que ela ingresse no complexo de Édipo, seu arranjo amoroso deve sofrer uma modificação isto é, deve proceder a passagem do amor pela mãe para o pai. Por outro lado, a fase pré-edipiana revela tamanha importância na constituição da feminilidade que, conforme indica Freud (1996[1931]), a fase do Édipo da menina, com exceção da mudança de objeto amoroso, não acrescenta nenhum aspecto novo à sua vida erótica. Resumindo: a entrada no Édipo, no caso da menina, só é possível se for precedida pelo afastamento da mãe. Tal afastamento não ocorre sem complicações e é imerso em hostilidade, contribuindo para que o forte laço entre mãe e filha acabe por terminar em ódio. Muitas são as razões citadas por Freud para esse desligamento. São elas: ciúmes do irmãozinho, o desmame, a impossibilidade de conseguir satisfação amorosa em relação à mãe, a fantasia de não ter sido amada e amamentada o suficiente, e as proibições à masturbação por parte da figura materna. (FREUD, 1996[1931]) Todavia, de acordo com o percurso freudiano, tudo nos leva a crer que o motivo principal surge do efeito do complexo de castração sobre a menina. A castração materna e sua própria castração acarretam o distanciamento da figura materna, visto que a menina responsabiliza a mãe pela ausência do falo e não menos porque o amor dirigido à mãe estava vinculado ao fato de ela ser encarada como um ser fálico. Diante disso, o pai passa a ter um lugar para a menina, enquanto aquele que é o suposto portador do falo e capaz de dar um filho como substituto simbólico fálico. Logo, o caminho rumo à feminilidade descrito na premissa freudiana passa pela mudança de objeto amoroso da mãe para o pai. Ao discutir tal modificação, Freud assinala que a transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe. (FREUD, 1996[1931], p. 247) Seguindo, ele pontua que O caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto à menina, até onde não se ache restrito pelos remanescentes da ligação pré-edipiana à mãe, ligação que superou. (FREUD, 1996[1931], p. 247) 246 Fractal, Rev. Psicol., v. 26 n. 1, p. 245-252, Jan./Abr. 2014

Amor Ódio: devastação na relação mãe e filha Todavia, surge uma constatação clínica, conforme nos indica Colette Soler (2005): o forte e estranho vínculo com a mãe nunca é rompido fato que Freud hesitou em aceitar, interrompendo a discussão com o reconhecimento que a relação mãe-filha é intensa e ambivalente. Não se pode deixar de mencionar que ele próprio observou que algumas mulheres não chegam a estabelecer uma verdadeira relação com os homens, visto ainda permanecerem nesta ligação original com a mãe. Freud identificou no apego ao filho o único amor sem ambivalência, e teve dificuldade de admitir o que o tempo acabou por lhe impor: que, para a menina, o veredicto era mais sombrio, talvez até inapelável (SOLER, 2005, p. 99). É, nesse sentido, que catástrofe em Freud e devastação em Lacan referem-se aos laços construídos entre mãe e filha, que se inscrevem na constituição da feminilidade. Convém destacar que em Freud, a conflituosa ligação entre mãe e filha estaria estritamente relacionada com o destino do falo na menina. Lacan (1985[1972-1973], 2003[1972]), por sua vez, também discute a articulação entre feminino e falo, bem como ao final de seu ensino inaugura uma importante e crucial mudança teórica na abordagem da feminilidade, que podemos encontrar especificamente no Seminário 20 Mais ainda e no texto O aturdito, ambos formulados na década de 1970. Rigoroso ao abordar o tema da feminilidade, Lacan reconhece que a mulher está inscrita na lógica fálica, contudo, nos diz que ela não está totalmente submetida a ela. Sendo assim, ele introduz a noção de um gozo suplementar do lado da mulher - um gozo não-todo referido ao falo. Não-todo quer dizer que o ser feminino está submentido a um outro gozo, o suplementar, que não está excluído da referência fálica, mas que antes a ultrapassa. A questão principal acerca da feminilidade é como o gozo fálico e o Outro gozo se encontram na mulher (BONFIM; VIDAL, 2009, p. 545). Para Lacan, o falo não deixa de ser considerado o único significante da sexuação, porém isso requer que a mulher depare-se que ao nível inconsciente o outro sexuado não existe. A mulher não existe para usar um dos famosos aforismos lacanianos. A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. (LACAN, 1985[1972-1973], p. 98) Ou seja, não há para a mulher um significante que fundamente seu ser em termos de identificação como podemos encontrar do lado do homem. Isso, porém, impõe uma série de dificuldades para ascensão à posição feminina. De maneira pontual, Lacan (2003[1961-1962], p. 13) nos esclarece no Seminário 9 que o importante na identificação deve ser, propriamente, a relação do sujeito com o significante, colocando, assim, um distanciamento da noção da identificação tomada pela via imaginária imagem a qual me identifico. A identificação é de significante e levar em conta tal consideração se faz evidente na medida em que consideramos a função dos efeitos do significante na constituição do sujeito. Baseando-se nesta formulação, André (1998) argumenta que uma identificação imaginária só se estabelece como semelhança do sujeito se puder se apoiar sobre o traço simbólico, que é um traço unário uma espécie de significante mínimo que o sujeito toma do Outro para arrimar sua identidade. Fractal, Rev. Psicol., v. 26 n. 1, p. 245-252, Jan./Abr. 2014 247

Flavia Gaze Bonfim Nesse sentido, Gerard Pommier (1997) assinala que a mulher tem uma série de identificações e não uma identificação essencial o que impossibilita definir um modelo de feminilidade. Pormier (1997) escreve que mulher é uma palavra que existe, sem, contudo, remeter a nada que seja próprio ao feminino. Sendo assim, a feminilidade trata-se de uma invenção, na medida em que a mãe não pode fornecer qualquer traço único à sua filha, que possibilite dar suporte à sua identidade de mulher. Portanto, isso diz respeito à vertente do além do falo na mulher e é nesse além que a devastação pode encontrar seu terreno. Apontando para isso, Lacan nos fala de uma dolorosa realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai (LACAN, 2003[1972], p. 465). Em torno desta observação, Brousse (2004) propõe que a devastação se situa no campo da relação entre o sujeito e a mãe. Esse campo, chamado por Lacan de desejo da mãe`, comporta uma zona obscura, não saturada pelo Nome- -do-pai, e como tal sem limite definido. (BROUSSE, 2004, p. 209) Ou seja, ela observa na clínica que a função paterna, apesar de não estar excluída, não opera um apaziguamento e o pai se coloca a serviço do capricho materno. A impotência do pai é um traço característico. Não devemos esquecer, porém, que a metáfora paterna sempre falha, no sentido de não conseguir fornecer totalmente significado ao desejo da mãe. Acrescenta a autora que a devastação refere-se também ao modo particular com que a linguagem emergiu em um sujeito e que, portanto, traz a referência do Outro primordial. Diz da maneira como o sujeito foi nomeado por esse Outro, da marca do significante. Na clínica, observa, que é comum essa emergência de a linguagem se dar sob a forma de insulto. Sua hipótese é que a devastação seja apreendida no que ela denomina arrebatamento do corpo (ser descompletado, subtraído do corpo) pela falta de um significante da mulher, de sustentação, sublinhando a ausência de limite próprio do gozo feminino. Brousse explica que o arrebatamento do corpo é uma forma de perda corporal não simbolizável pelo significante fálico. Aqui, o gozo feminino aponta radicalmente seu caráter suplementar ao gozo fálico. O que temos, então, é uma não inscrição do corpo no desejo do Outro, na medida em que este não ter lugar no Outro não é apaziguado pela função paterna. (BROUSSE, 2004, p. 215). De outro modo, Maria Fuentes (2004, p. 145) escreve: Quando vacilam os semblantes que fornecem o enquadre fálico para mulher, a irrupção de um Outro gozo não limitado pela elaboração simbólica pode ser a resposta, sinalizada pela série angústia, tristeza e devastação. Diante disso, conclui Brousse (2004, p. 213): A disjunção operada por Lacan entre mãe, lado da universalidade fálica, e mulher, lado da inconsistência do universal, permite progredir em relação à questão da devastação. Sendo assim, a devastação pode então aparecer no ponto do gozo enigmático percebido da mãe pela menina, gozo não limitado pelo falo (BROUSSE, 2004, p. 213). Ela finaliza: Em resumo, podemos considerar que a devastação comporta uma face fálica de reivindicação articulada ao desejo da mãe, 248 Fractal, Rev. Psicol., v. 26 n. 1, p. 245-252, Jan./Abr. 2014

Amor Ódio: devastação na relação mãe e filha e uma face não-toda fálica que sustenta o arrebatamento do corpo, e que está ligada à dificuldade de simbolizar o gozo feminino (BROUSSE, 2004, p. 217). Assim, na experiência da constituição subjetiva e corporal feminina, a mulher depara-se com uma versão de gozo ilimitado, que aponta para o infinito ao qual não se faz barra. Diferentemente da posição masculina que possui um homem que escapa à castração encarnado pela figura do pai da horda, não existe do lado feminino nenhuma figura fundadora de um conjunto de mulheres. Isto é: nenhuma mulher faz exceção à regra, situando-se fora da castração o poderia constituir alguma universalidade. Lembremo-nos: o que a princípio se supõe uma contradição a relação existente entre a regra e a exceção é precisamente aquilo que confirma a proposição de Lacan. A exceção não somente confirma a regra, como lhe dá seu fundamento: o universal. Diante disto, a devastação diz de uma dificuldade de ordem estrutural característica da inexistência do todo feminino. Nesse ponto, capturo um fragmento de caso que nos permite articular teoria e clínica. Paciente, com grave episódio depressivo descreve seu estado da seguinte maneira: Fiquei dois meses sem sair de casa, tomar banho, escovar os dentes e comer. Logo na primeira entrevista fala de um desejo mortífero e devorador da mãe. Esta repetidamente dizia que a paciente não devia ter nascido, devia ter ido parar no rio como seus irmãos,... nasceu de teimosa referindo-se as tentativas maternas fracassadas de abortá-la. Suponho, baseando em Brousse, que o insulto marcou emergência da linguagem nesta paciente, no qual o desejo materno tem valor de morte. A paciente viveu num orfanato e teve alguns raros contatos com o pai na primeira infância, mas acreditava que este a amava e não conviveu com ela, pois sua mãe o impediu. Nesse sentido, o pai se mostrava impotente aos caprichos maternos. Sua mãe sempre a buscava no orfanato nos finais de semana, mas a tratava com extrema agressividade verbal e física, sendo o seu corpo alvo de inúmeros ataques o que sinaliza um gozo não limitado do lado da figura materna. Apesar disso, a mãe dela sempre esteve presente de alguma maneira em sua vida ajudando-a, mas permanecendo com os insultos e críticas. No discurso da paciente, sua mãe nunca lhe deu o que deveria ter dado o amor materno. Um ponto marcante que antecede o episódio depressivo, e que a paciente julga ser o motivo deste, tem relação com o fato de ela ter trabalhado em condições muito estressantes em função de uma chefe muito exigente, autoritária, que a submetia a situações humilhantes. Trabalhou neste lugar por anos e nunca questionou as atitudes de sua superior, sofrendo calada. Era enigmático para a paciente que embora isso ocorresse a relação das duas tinha algo de mãe e filha. Numa leitura psicanalítica, fica evidente: não foi essa situação em si que desencadeou o episódio depressivo, mas o fato de a chefe evidenciar a posição de submissão e objeto/ dejeto no qual ela foi constituída enquanto sujeito alienado ao desejo do Outro. Não é sem importância sublinhar que, a paciente traz relatos de uma incessante repetição em sua vida que se expressa na série de maus tratos de figuras femininas. Fractal, Rev. Psicol., v. 26 n. 1, p. 245-252, Jan./Abr. 2014 249

Flavia Gaze Bonfim A paciente relata que saiu do quadro depressivo subitamente após conhecer aquele que veio a se tornar seu noivo. Todavia, depois de um tempo continuou a se sentir deprimida, vivendo num estado de profunda prostração. A relação com o noivo, entretanto, durou pouco mais de um ano e foi permeada por inúmeras brigas e decepções. Na sessão seguinte ao rompimento com ele, a paciente diz querer um homem que a sustente. Ela formaliza que não se trata de sustento financeiro, mas sustento do seu ser. Em associações seguintes, diz que procura o pai nos homens que ela quer que a sustente. Sustento, que ausente, parecia lhe conferir uma desfalicização do corpo, um auto-desaparecimento. Em sua fantasia supõe que se tivesse vivido com o pai sua vida teria sido diferente, pois viveria com entusiasmo e disposição, ou seja, seu pai lhe teria dado sustento, sustentação. Disso extraio algumas hipóteses. O sustento ou a substância para usar o termo de Lacan que a paciente esperava do pai era uma metonímia da sustentação de mulher que ela demandava da mãe. A crença do amor do pai era para ela uma tentativa (penso eu: inoperante) de apaziguamento do gozo da mãe, sendo este mortífero e enlouquecedor. Seu destino particular, sob a forma de um oráculo expresso em seu estado de prostração, de dejeto jogado ao rio, traz a marca da devastação que é sua relação com a mãe, no qual a paciente se faz inteiro objeto do gozo do Outro, este Outro animado de um desejo de morte. (BROUSSE, 1988, p. 79) Para encerrar, convém apontar que no inconsciente é comum que as falhas maternas encontrem lugar, pois ela [a mãe] é, para o sujeito, uma imagem de suas primeiras angústias, lugar de um enigma insondável e de uma ameaça obscura. (SOLER, 2005, p. 91) No entanto, quando se trata da filha, tais falhas podem chegar à devastação. O motivo de tal enquadre pode ser pesquisado nas duas vertentes da inscrição da mulher: fálica e além do falo. No nível fálico, a ausência do falo, como sendo de responsabilidade da mãe, estaria na base da decepção da menina, podendo fixar a mulher numa posição de reivindicação e ressentimento diante da figura materna e também dos homens. Aqui, temos implícita a exigência quanto ao falo e a demanda amorosa frente à mãe, na qual se articula o registro da reprovação, culpabilidade e ódio. No nível além do falo, situa-se a inexistência do significante feminino, podendo igualmente favorecer a posição de querela, como se a mãe pudesse conceder à filha uma identificação de mulher. Se é possível deslocar-se de tal demanda, seria ao passo que a mulher subjetivasse que, se a mãe não lhe pode dar o que espera, é porque ela também se encontra afetada por esta falta. Não obstante, caso os ressentimentos da menina encontrem eco na mãe, a situação se torna um círculo vicioso de exigências, reivindicações e decepções [...] É nesse contexto de devastação que se inserem as batalhas e guerras tão frequentes na relação entre a menina e a mãe (LAMY, 1998, p. 85). 250 Fractal, Rev. Psicol., v. 26 n. 1, p. 245-252, Jan./Abr. 2014

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