Sofrimento e dor no autismo: quem sente? BORGES, Bianca Stoppa Universidade Veiga de Almeida-RJ biasborges@globo.com Resumo Este trabalho pretende discutir a relação do autista com seu corpo, frente à indissociabilidade do pensamento do homem com o corpo, cuja imagem o captura como afirma Lacan em sua Conferência de Genebra sobre o sintoma (LACAN, 1975). E ainda, associar esta discussão aos diferentes posicionamentos dentro da psicanálise com relação à constituição da criança autista, e, consequentemente ao que diz respeito à posição do analista nesta clínica. Introdução Sabe-se que a formação da imagem especular para o infans pressupõe o surgimento de um corpo pulsional, desenhado pelos significantes do Outro, que uma vez inscritos neste corpo poderão fazê-lo palco da encenação de sua história inconsciente. No autismo, o fracasso da instauração do circuito pulsional (LAZNIK, 2004), faz com que reste um corpo não marcado pelo desejo, um corpo que não atravessando o estádio do espelho, não alcança a constituição subjetiva e fica sem consistência, sem borda. Diante das automutilações das crianças autistas percebemos que não parecem sentir dor. Vemos uma série de leituras sobre o autismo, que se ocupam, de certa forma, em responder ao enigmático nestas crianças. Em que posição está o analista, ou ao que é convocado quando testemunha as agressões desta criança ao próprio corpo? O que isto provoca? Constituição do sujeito Antes mesmo de nascer, a criança é investida de falas que a atravessam. Assim, as condições para que a constituição subjetiva se dê estão postas a partir de uma história
anterior ao surgimento do próprio sujeito, relacionada à fantasia dos pais, dirigida a seu filho. Esse processo de divisão subjetiva tem como importante precedente a linguagem que atravessa o infans a partir do momento em que ele é falado. No entanto, algo neste processo pode não se dar, o que impediria a criança de formular a pergunta acerca do desejo do Outro: o que queres (de mim)? (LACAN, 1962-63). Esta interrupção não se dá apenas pelo não endereçamento destas falas ao infans. Freud em seu Projeto para uma psicologia científica diz que a ação especifica como alteração do mundo externo possibilita o movimento reflexo e que sem ela não há experiência de satisfação. No entanto, é preciso destacar, que esta ação específica, externa, que se efetua por meio de uma assistência alheia, ocorre como forma de uma intervenção mediante à uma alteração interna (expressão das emoções, grito, inervação vascular) (FREUD, 1950, p.421). Lacan, em sua releitura do Projeto freudiano, afirma que este momento trata-se daquilo que pode representar o funcionamento normal do aparelho. (LACAN, 1959, p.56). E ainda que a reação motora que se produz é efetivamente reação, ato puro, descarga de uma ação (idem, p.56). Desta forma, é visível tanto na obra de Freud como de Lacan, que é preciso que haja uma ação do bebê, que precipite o que Freud chamou de ação específica. A ação específica responde a algo de enigmático que surge do bebê. Este movimento só pode se tornar enigmático se houver um Outro que o perceba desta forma. O movimento do bebê só é apelo quando é respondido, senão retorna ao vazio, ao silêncio. Mas que ele seja respondido com palavras, olhar, um gesto, desde aí se torna demanda (BERGÉS E BALBO(1994), apud NASCIMENTO, E. 2001, p.59). A relação do autista com seu corpo A constituição de um corpo simbólico passa necessariamente pelo Outro e sem este corpo não se é mais que seu real, não há sujeito, não há demanda. No autismo não parece haver efeitos do Outro no campo da palavra, antecipando significações ao choro do bebê, choro esse que não pode ser pensado no nível da demanda. Se não há passagem pelo espelho, fracassa a dimensão imaginária que lançaria as coordenadas da constituição subjetiva. O que resta então é puro organismo. (NASCIMENTO, 2001, p.58). Ao falar das vozes que alguns autistas escutam (LACAN, 1975) Lacan parece se
referir às falas que não encontram ancoragem num outro e por este motivo o invadem. Essas sensações que atravessam o corpo do autista, não podem ser por ele nomeadas, por não ter aonde se alojar. A criança autista não se situa nem no olhar nem na voz do outro para poder construir sua imagem. Desta forma, ao supor que não há Outro para o autista, sabe-se que isto torna impossível sua constituição enquanto sujeito do inconsciente. Torna impossível a constituição de um corpo que vá além do orgânico. Qual o trabalho possível então nesta clínica? O que pode a psicanálise diante do autismo? A fala do autista e a posição do psicanalista Há claramente uma inversão quando se trata da clínica com autistas. O autista não coloca o analista no lugar de sujeito suposto saber, como ocorre na clínica da neurose. Além disso, a não produção de uma cadeia de significantes no autismo, impede o analista de ocupar seu lugar tradicional de escuta. Por sua condição humana, o autista está no campo da linguagem. No entanto, não opera para ele a função da fala como Lacan a determina em Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise (LACAN, 1953). Ele está congelado, preso, não podendo ser representado num intervalo entre significantes. Este ponto em que se encontra o impossibilita de ser representado, que é o que acontece quando falamos. Fala-se a maior parte do tempo para significar algo de si ao outro (STRAUSS, 2001). Para além dos enunciados há uma demanda ao outro, há o desejo daquele que fala. Por este motivo, na clínica com autistas, ao lhe falarmos isto parece ser da ordem do insuportável. O desejo do psicanalista que escuta autistas o faz seguir tentando alternativas nesta clínica. Esta inversão/invenção faz com que o analista seja aquele que produz ditos. O autista faz com que o analista fale fale inclusive sobre o autismo e isto pode produzir efeitos. Portanto, o analista sendo aqui aquele que se propõe a escutar uma criança que não fala ou não se representa através de sua fala, passa a dar sentido às verbalizações desta criança. Significações do analista, que se põe a falar. Lacan em sua Conferência de Genebra sobre o sintoma, nos alerta para o fato de que o autista não conseguirá escutar o que temos a lhe dizer, enquanto nos ocuparmos
dele, assim como, da mesma forma, não conseguiremos escutar o que eles tem a nos dizer. (LACAN, 1975). O que o enigmático do autismo, ou a ausência de fala, ou de demanda, produz no psicanalista que tenta responder a isso? Maria Anita C. Ribeiro contribui com esta reflexão quando fala do momento em que algo se produz no autista frente ao vacilo do analista. Segundo ela, a clínica com autistas, exige que o analista opere com o coração de seu ser, uma vez que é no vacilo, no tropeço, na pisada de bola, na interpretação inadequada, em suma, no momento em que, ao acaso, a castração do analista se põe a nu, que algo acontece. (RIBEIRO, 2001, p.9). Conclusão Há, certamente, muito o que avançar nos estudos sobre o autismo e nas possibilidades de intervenção nesta clínica. No entanto, é importante lembrar, que a produção de saberes deve sempre buscar a possibilidade de trabalho com estas crianças, e não um saber que as congele em determinações e enquadramentos. Lacan, ainda em sua Conferência de Genebra sobre o sintoma, nos alerta: não há necessidade de saber que se sabe para se gozar de um saber (LACAN, 1975). As diversas produções e diferentes posicionamentos sobre o autismo parecem tentar responder a algo do qual não se sabe, não se conhece, e que produz ações, na clínica e na escrita. De certa forma, é a partir destes incômodos, desta movimentação, que algo pode ser compreendido, para que se produzam efeitos de um trabalho que se dê a partir da psicanálise, mesmo que não se configure uma análise, pois como nos ensina Lacan, apesar de todas as dificuldades que temos encontrado, há sem dúvida algo a dizer aos autistas (LACAN, 1975). Referências Bibliográficas FREUD, S. [1895] Projeto para um psicologia científica. In: Obras Completas. v.i, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1950. p. 395-450. LACAN, J. [1953] Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 238-324.
. [1964] Posição do Inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 843-864.. [1975] Conferência de Genebra sobre o sintoma. LAZNIK, M.C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2004. NASCIMENTO, E.M.V. "A questão da pulsão na clínica do autismo". In: Marraio, nº2, Autismo o último véu. Rio de janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 57-61. RIBEIRO, M.A.C Editorial da revista Marraio, nº2, Autismo o último véu. Rio de janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 7-9. STRAUSS, M. O autismo. In: Marraio, nº2, Autismo o último véu. Rio de janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 25-35.